Concomitante a isso, marcas como Nike e H&M, buscando se distanciar de utilizar trabalho escravo, também pararam de comprar o algodão do território no noroeste da China, que representa não só 85% da produção nacional da fibra, como também 20% do abastecimento mundial.
Em meio à escalada de tensões políticas e econômicas, o governo chinês se defendeu afirmando que a investida é uma tentativa de isolar a China do centro da economia global. No meio dessa briga, notamos o que realmente não está sendo falado: a permissão dada, inclusive por lei, para o trabalho escravo de Uigures, promovido unicamente pela retórica do capitalismo.
O embate atual se dá por um histórico de sanções iniciadas no fim do governo de Donald Trump, exigindo a contextualização dos fatos para de forma cronológica para melhor entendimento sobre o atual embate geopolítico internacional envolvendo a moda. Primeiramente, é preciso entender quem são os Uigures, minoria étnica muçulmana e peça central no conflito, e o histórico de ações separatistas da região de Xinjiang. No início de 2020, fizemos uma matéria a respeito, com foco em um relatório publicado pela Workers’ Rights Consortium, que traz evidências concretas sobre o uso de mão-de-obra escravizada na produção de vestuário e eletroeletrônicos de pelo menos oitenta marcas globais.
Desde então, marcas como a Lacoste deixaram de contratar empresas da região, e demais empresas, como H&M, sinalizaram estarem “profundamente preocupados com relatos de organizações da sociedade civil e mídia que incluem acusações de trabalho escravo e discriminação de minorias étnico-religiosas em Xinjiang”. O governo chinês promove a migração forçada de Uigures há pelo menos 20 anos, mas o país só admitiu a existência de tal sistema, e dos campos, em 2018, depois de muita pressão internacional. Ainda sim, a fala é positiva: para os porta-vozes oficiais, o governo está apenas combatendo o extremismo.
O sentimento de unidade é tão forte no país que, após as sanções políticas e econômicas, diversas figuras públicas chinesas – entre times de futebol e atores – romperam seus contratos com gigantes internacionais, como Nike e Tommy Hilfiger. E, desde o final de março, a população vem promovendo um boicote online e offline às marcas que se posicionaram contra o tratamento dado à minoria étnica.
O início das restrições
Apesar dos embates sobre a escravização dos Uigures acontecerem entre as organizações da sociedade civil e o governo chinês há pelo menos quatro anos, o caso só ganhou repercussão ampla com as primeiras sanções feitas pelo governo Trump em novembro de 2020. A alfândega americana emitiu ordens que bloqueavam a entrada de certos produtos da região de Xinjiang, como algodão, peças de computadores, produtos para cabelo e roupas feitas por certas empresas chinesas suspeitas de usar o trabalho escravo da minoria étnica. A sanção também incluiu todos os produtos de um campo de “reeducação” – chamado pela mídia e governo chineses de “localidades” – que o vice-secretário de segurança interna dos Estados Unidos, Ken Cuccinelli, descreveu como “escravidão moderna”.
Segundo Ken, a sanção se manteria até que a China fechasse seus “campos de concentração, libertasse seus prisioneiros e encerrasse seu programa de trabalho forçado patrocinado pelo Estado”.
Já em dezembro de 2020, um relatório produzido pela think thank Center for Global Policy Solutions afirmou que havia grandes chances de que o algodão de Xinjiang estivesse “contaminado com trabalho forçado”. Segundo o relatório, a China é acusada de coagir 570 mil pessoas a colher algodão na região, em um programa de trabalho forçado voltado para Uigures e outras minorias étnicas. O documento ainda afirma que os catadores de algodão foram submetidos à vigilância governamental intrusiva e sessões de doutrinação política – uma prática presenciada por repórteres como relatado nessa reportagem da BBC e nessa da Vice.
No mesmo mês, os Estados Unidos proibiram as importações de algodão da Xinjiang Production and Construction Corps, uma empresa descrita como “organização econômica e paramilitar estatal”, que tem autoridade administrativa sobre várias cidades de médio porte na região de Xinjiang, bem como assentamentos e fazendas de algodão. Também conhecida como XPCC, a empresa foi fundada em 1953 para assegurar a colonização chinesa na região e produz cerca de 1 ⁄ 3 do algodão de Xinjiang. Já em janeiro, houve uma escalada de tensão quando o governo americano, agora sob comando de Biden, anunciou a suspensão de todas as importações de algodão da região chinesa.
A sanção ocidental coletiva, protagonizada não só pelos Estados Unidos, mas também pelo Canadá, Reino Unido e União Europeia, veio no final de março. Essa, em especial, contra dois funcionários do governo chines: Wang Junzheng, secretário do Comitê do XPCC, e Chen Mingguo, diretor do Departamento de Segurança Pública de Xinjiang. Segundo o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, a dupla está “ligada a graves abusos de direitos humanos contra minorías étnicas em Xinjiang, que supostamente incluem detenção arbitrária e abusos físicos graves”.
O governo chinês promove a migração forçada de Uigures há pelo menos 20 anos, mas o país só admitiu a existência de tal sistema, e dos campos, em 2018, depois de muita pressão internacional. Ainda sim, a fala é positiva: para os porta-vozes oficiais, o governo está apenas combatendo o extremismo.
Enquanto isso, gigantes do vestuário, cujos negócios estão vinculados à produção em Xinjiang, têm se manifestado de formas diferentes. A Gap Inc, Patagonia Inc e a dona da Zara, Inditex, afirmaram que não compraram de fábricas de Xinjiang em 2020 – porém, as empresas não puderam confirmar se suas redes de abastecimento não continham algodão da região. Outro grupo de empresas decidiu se manifestar em comunicados oficiais, como é o caso da Nike, H&M e Burberry. O Professor de Negócios da China e do Leste Asiático do Instituto Lau China na King’s College London, Xin Sun, afirmou à NBC News que está ficando cada vez mais complicado para as marcas ocidentais operarem em ambos mercados. “Eles tentam responder ao crescente escrutínio de clientes ocidentais sobre suas redes de suprimento”, explica, “e, claro, o mercado chinês é muito grande para eles, então você vê pressão política de todas as direções”.
A resposta chinesa às acusações de trabalho escravo
Os consumidores chineses também são peça fundamental desse conflito – afinal, eles representam a segunda maior economia do mundo e 1,4 bilhão de pessoas. A reação dos consumidores se mostrou por postagens energéticas nas redes sociais: a hashtag #ISupportXJCotton – criada pela mídia estatal People’s Daily – gerou mais de 3 milhões de curtidas em um dia na plataforma de mídia social chinesa Weibo, uma espécie de Facebook no país. Fora da internet, os protestos foram desde a queima de tênis da Nike a boicotes a marcas que seguem endossando a fala de mão-de-obra Uigur escravizada.
Em 48h, mais de 30 celebridades chinesas também se posicionaram a favor do boicote, se desassociando de empresas e cortando contratos de patrocínio. Alguns exemplos dessa lista são: o ator Wang Yibo e a rescisão do seu contrato com a Nike, informada pela sua empresa no Weibo; o ator Huang Xuan, porta-voz da H&M na China, que afirmou se opor a qualquer tentativa de difamar ou espalhar boatos sobre seu país; a retirada do logo da Nike na Super Liga Chinesa, 1º divisão do futebol chinês e de todas as 16 equipes participantes. Não é a primeira vez que os consumidores chineses usam do nacionalismo como ferramenta para boicotar marcas estrangeiras.
Já o governo chinês tem respondido à questão dos Uigures da mesma forma desde que foram forçados a admitir a existência dos campos de concentração. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, rejeitou as acusações, afirmando que “ajudar pessoas de todos os grupos étnicos a garantir empregos estáveis é totalmente diferente de ‘trabalho forçado”’. A fala foi dita em uma entrevista coletiva em Pequim, no qual o porta-voz reforçou que quase 3 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza na região de Xinjiang.
Já o porta-voz do Ministério do Comércio da China, Gao Feng, se referiu às acusações como “completamente falsas” e exigiu que as empresas estrangeiras “corrijam seus erros e impeçam que atividades comerciais se tornem questões políticas”. Já a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Hua Chunying, postou fotos no Twitter, comparando escravos negros colhendo algodão nos EUA, no início do século XX, à Uigures sorrindo em campos de algodão em Xinjiang. O governo chinês, como um todo, reforça a ideia de que os campos são centros de treinamento vocacional necessários para combater o extremismo.
Em resposta às sanções, Pequim também adotou medidas punitivas contra a União Europeia, proibindo que parlamentares, diplomatas, suas famílias e institutos façam negócios com a China. Eles também estão proibidos de entrar no país.
Narrativas atravessadas
Em paralelo ao conflito político-econômico, existe uma narrativa sendo posta que descredibiliza as investidas dos países ocidentais sobre a China. A mídia americana The Grayzone, conhecida pelo antagonismo à política intervencionista externa americana, fez uma análise robusta sobre os relatórios publicados nos últimos meses que serviram de base para a decisão dos Estados Unidos e aliados a restringir os produtos chineses de Xinjiang. Dois relatórios publicados pelo Newlines Institute for Strategy and Policy e o Congresso Mundial Uigur em 8 de fevereiro e 8 de março de 2021, respectivamente, alegam que o governo chinês está comentendo genocídio contra o povo Uigur.
Os autores afirmam que seus estudos são imparciais e que não defendem nenhum curso de ação, mas segundo reportagem do The Grayzone, traduzida para o português pelo Outras Palavras, “os think thanks por trás do relatório defenderam fervorosamente que o Ocidente ‘combata’ e sancione a China”. Ainda segundo o texto: “o relatório se baseia substancialmente na ‘experiência’ de Adrian Zenz, ideólogo evangélico de extrema direita, cuja ‘incursão acadêmica’ sobre a China mostrou-se crivada de erros grosseiros, falsificações e manipulação estatísticas tendenciosas”.
Esta reportagem não tem o intuito de analisar os documentos criados por Adrian, muito menos conferir as argumentações do The Grayzone a respeito do que ele alega ser “o velho método da mentira, protagonizado mais uma vez pelos Estados Unidos e as mídias ocidentais”. Porém, pontuamos algumas alegações que soam preocupantes, visto que, desde 2017, existem incontáveis provas que denunciam as violações de direitos humanos sofridas pela minoria étnica muçulmana. Nos atentamos também a uma fala de Max Blumenthal, fundador e editor do The Grayzone, para um programa de TV de uma estatal russa: “não tenho motivos para duvidar que algo está acontecendo em Xinjiang, que pode até haver repressão”, mas não vimos evidências para essas afirmações massivas”.
As evidências existentes foram produzidas por diversas mídias, inclusive por jornalistas in loco que arriscaram serem presos e foram coibidos pela polícia local. No entanto, a situação é um emaranhado complexo envolvendo questões culturais, políticas e econômicas. Nesse sentido, seria muito simplório pensar que a China omite suas ações para o ocidente por puro desvio de caráter. Existe um contexto que, ainda que não “defenda” o que é feito, pode explicar, em partes, tal mentalidade desenvolvida ao longos dos milênios. A China coleciona milênios de história. Ela é muito mais extensa que a brasileira, é marcada por diversas guerras separatistas, guerras para conquista do território e um entendimento que o Estado necessita ser unificado para que ele não perca seu poder de unidade.
Segundo o relatório do Instituto Australiano de Política Estratégia (ASPI), utilizado quanto primeiro abordamos o assunto, a legislação chinesa também incentiva que empresas “comprem” e “vendam” mão-de-obra Uigur em todo território chinês.
A campanha “Strike Hard contra o Extremismo Violento”, lançada em 2014, colaborou para um aumento “dramático” dos processos de “reeducação” e transferência de trabalhadores para outras províncias. Em 2017, de acordo com relatórios da mídia estatal chinesa, traduzidos pela ASPI, “20 mil ‘trabalhadores rurais excedentes’ de Xinjiang foram transferidos para trabalhar em outras províncias”, em 2018, foram 32 mil. Em fevereiro de 2019, anúncios de mão-de-obra patrocinados pelo governo chinês também começaram a aparecer online. Em um deles, uma empresa anuncia um número de trabalhadores uigures “liderados pelo governo […] qualificados, seguros e confiáveis”.
Outro anúncio se refere às vantagens dos trabalhadores de Xinjiang: “gestão de estilo semi-militar, pode resistir a adversidades […] Pedido mínimo de 100 trabalhadores”. Ainda segundo o relatório, o anúncio permite que os gerentes das fábricas possam solicitar que a política de Xinjiang esteja em sua fábrica 24h por dia. Tudo isso sob o olhar aprovador do governo chinês. Com o interesse econômico na região de Xinjiang, somado aos modos asiáticos de governar, não é surpreendente que Pequim entenda a diferença étnica-religiosa como uma ofensiva à nação.
É necessário que todos os contextos sejam levados em consideração, não só a xenofobia e interesse econômicos, mas também as prisões, encarceramentos, lavagem cerebral e demais desrespeitos pelos quais o governo chinês está sendo acusado e demandar transparência e mudança em sua legislação permissiva.