Por outro lado, principalmente pelos nomes que davam cara ao projeto (Alexandre Herchcovitch, Marcelo Rosenbaum e Patricia Centurion), o projeto insistia em me soar como mais do mesmo: grandes marcas se aliando a figuras carimbadas do universo da moda e do design para falar sobre um tema recorrente e atual, no caso o upcycling (e a sustentabilidade) na economia criativa. Algo como o bom e velho marketing empresarial.
Não passou muito tempo e descobri que o Trama Afetiva era, na verdade, um projeto coordenado pelo consultor e pesquisador Jackson Araújo, e que ganhou vida por meio do patrocínio da Fundação Hermann Hering. Como acompanho o trabalho do Jackson há algum tempo, achei que seria muito mais interessante conversar diretamente com ele, colocar minhas questões na mesa, e entender seu ponto de vista e inspirações para colocar o projeto no ar.
Sem nem me conhecer, ele foi totalmente solicito em receber minhas questões e me convidou para participar do terceiro encontro das imersões, que aconteceria na mesma semana, no ateliê de uma das criativas convidadas, a Patrícia Centurion, nos Jardins em São Paulo.
Lá fui eu acompanhar o encontro que aconteceu à tarde, em horário comercial. Fiquei feliz em notar a quantidade de mulheres inscritas participando dessa primeira edição, mas, em contrapartida, nenhuma mulher ou homem negro. Notei também durante as apresentações que a realidade ali era de uma classe média alta, com excessão do grupo de costureiras escolhidas para auxiliar o projeto, o que não é particularmente nada novo dentro da economia criativa brasileira.
O projeto começou a fazer muito mais sentido, principalmente conceitualmente, se propondo a pensar o upcycling sobre diferentes perspectivas e como uma das formas de ressignificação da produção do que o Jackson chama de economia afetiva. Sai de lá com algumas das primeiras impressões com as quais entrei reforçadas e algumas outras dissipadas.
Foi bastante interessante ver essa iniciativa de perto e me parece ser algo de vida longa e que possivelmente se amplificará a cada edição. Mas para explicar melhor todo o projeto, deixo vocês com a entrevista que fiz com Jackson e que você lê a seguir.
Modefica: Para contextualizar, você pode contar um pouco sobre sua trajetória, sua relação com a moda e sobre seu trabalho como pesquisador?
Jackson Araújo: Eita! São tantos anos de trabalho, vou pinçar pontos que acho relevante na minha trajetória.
Tenho 52 anos, sou Comunicólogo especializado em Análise de Comportamento e Tendências de Consumo de Moda, Mídia e Comunicação. Atuo como Consultor Criativo e de Conteúdo para empresas e grandes grupos desses segmentos.
Sou pesquisador e estudioso de movimentos e expressões ligados à Economia Afetiva, termo que cunhei em 2014 sobre uma nova perspectiva de mercado pautada na valorização e desenvolvimento do coletivo, para o desenho de produtos inovadores e disruptivos. Ministro palestras, workshops e dirijo projetos sobre o tema.
Como colaborador da Mindset/WGSN, atuo no grupo multidisciplinar FLUX que estuda as ondas comportamentais brasileiras sob uma perspectiva global. Faço parte do time Mindset/WGSN que atua no projeto Senai Brasil Fashion desde 2014, colocando o ensino técnico em contato com as novas práticas criativas.
Entre 2007 e 2009, trabalhei na BOX 1824, como gestor do núcleo de análise de tendências, onde conheci Luca Predabon, comunicóloga como eu e minha parceira em projetos de pesquisa de comportamento aplicados ao mercado, caso do Retrato Brasília, que criamos e desenvolvemos entre 2014 e 2015, com patrocínio do Banco do Brasil e realização do CCBB e do Correio Braziliense.
Retrato Brasília virou livro apresentando uma cartografia cultural e estética da juventude que está transformando a capital do Brasil em um ambiente mais criativo. Conteúdo gerado a partir de pesquisa qualitativa e atitudinal e fundamentado por uma série de encontros e workshops mensais.
Como crítico de moda, ganhei o Prêmio Abit de Melhor Jornalista de Moda do Brasil em 2003. Sou autor da biografia de Lino Villaventura na coleção Moda Brasileira da Cosac & Naif.
M: Teve algum ponto muito marcante na sua trajetória dentro da moda (ou na vida mesmo) que te levou de encontro ao que você chama hoje de economia afetiva?
Sim. Alguns. O primeiro foi um problema de saúde que me fez repensar todo o meu consumo pessoal. Perdi 10kg e passei a caber em todas as roupas, mas ao mesmo tempo iniciei um processo de tratamento nutricional para a vida toda, que me é caro. Coloquei tudo na balança e decidi ser o que como e não mais o que vestia. Parei de comprar roupas por três anos e o pouco que comprei depois disso sempre está ligado de alguma forma com minhas preocupações com os métodos de produção.
Além disso, o meu próprio trabalho de pesquisa e muita leitura me leva diariamente a repensar atitudes e buscar ser um propagador de práticas comportamentais éticas.
Cunhei o termo Economia Afetiva em 2014 durante o Santa Catarina Moda e Cultura, plataforma da qual fui consultor criativo por quatro anos, linkando a indústria com as escolas de moda do estado. No final de um ano de estudos e investigações comportamentais, entendi que a prática do ganha-ganha, da transparência e da colaboratividade estava assumindo contornos inevitáveis no Brasil e no mundo.
Depois, foi uma grata supresa encontrar nos pensamentos de Michel Maffesoli uma reverberação intelectual positiva, no que ele chama de Era do Afeto. Para ele, a passagem da modernidade em meados do século 20 marca o fim do racionalismo. O individualismo dá lugar à “pessoa plural” e o racionalismo cede espaço ao sentimento. É no que acredito.
M: Pode contar, nas suas palavras, o que é economia afetiva?
JA: Vivemos num mundo em que o faça-você-mesmo abriu espaço para o faça-com-os-outros e faça-para-os-outros. Esse é um ponto de partida essencial para entendermos essa nova prática. O foco antes era a produção, o crescimento econômico e o acúmulo do patrimônio. Agora a palavra é sintonia: as pessoas acentuam o sentimento, as vibrações espirituais e artísticas.
Nesse cenário, a prática do ganha-ganha se fortalece, uma estratégia de resolução de conflitos em que todos os participantes podem se beneficiar de alguma forma. Ela foca na importância da cooperação e compartilhamento a fim do sucesso do grupo, em contraste com a dominação, o egoísmo e o ganho pessoal. Nossa Economia Afetiva é isso: a valorização de uma mensagem ética de fraternidade com o ambiente e uma visão holística da vida e da sociedade.
M: Como rolou a concepção do Trama Afetiva? Você pensou nele e depois foi procurar a Hering ou foi ao contrário?
O projeto Trama Afetiva vem sendo desenhado há pelo menos dois anos. Foi pensado como um projeto a ser aplicado com patrocínio de alguma empresa, marca ou grupo (não necessariamente de moda) que estivesse interessado em promover uma reflexão sobre essa pauta tão urgente, que amplifica a questão da preocupação socioambiental para além da ressignificação de matéria-prima, mas com a potencialização de um novo profissional mais conectado com as novas práticas colaborativas e com processos horizontais de produção.
Desenvolvo uma relação de trabalho com a Fundação Hermann Hering já há alguns anos, quando apliquei uma série de workshops criativos para desenvolvimento da identidade visual do Museu Hering, assim como geração de conteúdo audiovisual e sua expografia. Também tenho participado de processos educativos e de pesquisa de consumidores com a Cia.Hering.
Como você vê, um processo cheio de afeto e respeito construído ao longo de pelo menos seis anos ao lado de Amelia Malheiros, gestora da Fundação Hermann Hering. Assim, durante uma reunião de estratégias sobre causas a serem adotadas pela Fundação, surgiu a oportunidade de colocar o Trama Afetiva como uma possibilidade de potencialização de algumas de suas bases de atuação, como empreendedorismo e cultura criativa, já que a Fundação Hermann Hering dedica-se a desenvolver projetos e programas de formação de profissionais motivados a utilizarem seus talentos como uma lente para as futuras transformações.
A Fundação acreditou no potencial educativo do Trama Afetiva e juntos estamos colocando ele em prática, no que chamamos de projeto-piloto, pois temos a ideia de amplificar sua estrutura a partir de uma análise final do processo desenvolvido nesses dois meses de 2016.
M: Quando você o criou, já pensou para além dessa edição?
JA: Sim, já estamos desenhando uma continuidade.
M: Quando eu vi o projeto, a primeira coisa que me chamou atenção foi perceber que ninguém ali pode ser considerado especialista em upcycling de roupas. Herchcovitch fez apenas uma coleção que trouxe o tema nas passarelas. Senti falta de alguém no time que já faz isso há anos. A sensação que tive foi de apagamento de quem vive e respira essa moda mais consciente e afetiva apesar de entender a importância de ter nomes de peso no projeto. Você pode me explicar melhor o que levou você a escolher esses três nomes?
JA: A partir do próprio subtítulo do projeto – Experiência Colaborativa de Criação em Upcycling – não queremos falar apenas de “upcycling de roupas” nem focar somente em “moda mais consciente”. Estamos muito mais preocupados em entender processos de ressignificação que usa o design como ferramenta de transformação social, profissional e de produtos.
Patricia Centurion e Marcelo Rosenbaum, por exemplo, nunca fizeram roupas. Como eles, Alexandre Herchcovitch, por sua vez, não está no projeto por ser um “nome de peso”, mas porque tem um entendimento de construção de marca, desenvolvimento criativo e profundo entendimento dos processos industriais, que podem ser aplicados como estratégias vitais para a formação de um método educativo questionador da própria falta de sinergia entre o aprendizado formal de design e moda e a nova realidade de mercado que vem se estabelecendo. Nossa proposta, portanto, é aquecer a formação de profissionais dentro desta nova visão de mercado.
O que me levou a escolher esses três nomes, além do respeito e admiração que tenho por suas trajetórias e de termos trabalhado juntos em vários outros projetos colaborativos, é o fato de que são profissionais dispostos a ressignificar e compartilhar seus aprendizados de maneira bem aberta e simples, como pode ser visto em nossas transmissões ao vivo no Facebook, que ficam como videos de pesquisa e referência para as pessoas interessadas nesta linguagem.
Por fim, o upcycling de resíduos têxteis da Cia.Hering é apenas a ferramenta da construção de um resultado final para o processo, que será exposto no dia 9 de novembro, material este que não necessariamente será composto de roupas, visto que nosso time multidisciplinar de 11 selecionados (entre os 342 inscritos do Brasil e exterior) é formado por designers de joias, gráficos, de produto e de moda, arquitetos, artistas visuais e plásticos. Só o processo colaborativo vai revelar que tipo de produtos iremos apresentar ao final do processo.
M: Quando falamos de uma moda afetiva, consciente, e com responsabilidade socioambiental é muito difícil conseguirmos alinhar esses pensamentos às ações e modus-operandi de grandes marcas como a Hering. Como você enxerga a aliança do Trama Afetiva com a Hering – a importância ou não das parcerias com gigantes do setor, os limites entre discurso e prática, os objetivos da parceria, etc?
JA: Por envolver diretamente o nome da Cia.Hering na sua pergunta e por não ser eu um porta-voz da empresa, pedi que Amelia Malheiros – gestora da Fundação e, portanto, nosso elo maior de ligação com a marca – colaborasse aqui com uma reflexão muito clara sobre suas observações e questionamentos.
Primeiro e mais importante é dizer que sim, reconhecemos que a economia tradicional está aí a nos desafiar e a sociedade a cada dia se questiona mais e mais sobre o futuro, pois temos uma certa incapacidade de prever todas as transformações que virão. Óbvio, até, caso contrário, não seria mais futuro que é incerto, ambíguo e pode ser absolutamente surpreendente.
Para fazer curta uma resposta que poderia ser quilométrica, a economia tradicional também lê sinais das mudanças dos tempos em todos os sentidos. A elevação do nível de consciência em relação a questões socioambientais está posta. A Cia. Hering poderia ter duas reações iniciais, rejeitar e seguir em frente, ou dialogar com todo esse mindset que se forma e tentar construir alguma resiliência, para entender o inevitável, e buscar novas possibilidades de forma compartilhada.
Assim, o Trama Afetiva traduz uma inquietação da Fundação Hermann Hering, com apoio da marca Hering, que se propõe a trabalhar o empreendedorismo com protagonismo, para a moda, através do design consciente e afetivo. Simples assim, sem negar nada, sem excluir nenhuma possibilidade ou caminho, apenas compreendendo com afeto as transformações.
M: Qual é a missão/desejo/objetivo do Trama Afetiva?
JA: Além do que já está falado anteriormente, podemos reforçar o seguinte objetivo: democratizar processos criativos e construir uma possibilidade de interação entre técnicas, conhecimentos e experiências empreendedoras a partir de uma reflexão sobre o fazer manual como fio condutor de novas linguagens e saberes em design.
M. Quando falamos em métodos de produção disruptivos ou que desafiam o sistema econômico e capitalista como entendemos hoje (como acredito ser o caso da economia afetiva), como não sermos abocanhados – como criadores e agentes da moda e de transformação – pelo sistema tradicional e mesmo assim fazer as coisas acontecerem?
JA: Acho que sua pergunta é pertinente para muitos processos contemporâneos, não só para a moda. Tudo muito aplicável aos dias de retrocesso que vivemos. Como defende Maffesoli, apesar das rupturas políticas e econômicas que estão dando espaço às manifestações mais conservadoras e nacionalistas, é importante construir um cimento ético a partir das emoções e do compartilhamento dos afetos, em busca do espírito coletivo.
Nos colocarmos à parte de um mercado estabelecido e que não dá mostras de que vai desaparecer, não vai nos permitir provocar alguma mudança. Pensamentos binários e maniqueístas só causam rupturas e não evolução. O importante é estar inserido nessas estruturas para questioná-las e promover transformações a partir de seus próprios contextos.
M: Uma última questão que me chamou a atenção é que dos selecionados, nenhum era negro. Penso que nada é inovador ou disruptivo o suficiente se não incluir essa pauta. Com tua experiência, por que você acha que não estamos conseguindo transpassar essa barreira social e como essa economia afetiva pode deixar de ser majoritariamente feita e liderada por brancos classe média alta?
JA: Excelente questão. Talvez, porque a Moda e o Design por si só, em sua origem e evolução, sejam ainda disciplinas elitistas? Vale observar que só agora em 2016 é que toma corpo, por exemplo, a discussão sobre o cabelo crespo. Acompanhamos a pauta sobre a inclusão de modelos negros nas passarelas brasileiras já há algum tempo; só agora também temos uma presença mais marcante nesse sentido.
No Trama Afetiva, a inscrição foi aberta para qualquer profissional e estudante interessado em design, práticas empreendedoras e upcycling, sem pré-requisito de graduação ou faixa etária. A única condição limitante era o calendário de trabalho e o local de realização. Por sua vez, a sua divulgação foi feita democraticamente pelas redes sociais. E a seleção, baseada única e exclusivamente no portfólio dos inscritos.
O que leva as pessoas a participarem de projetos e chamadas culturais é o interesse pelo tema. Temos trabalhado as pautas da diversidade sob o viés da tendência de comportamento. Será, então, que se quisermos atrair representatividade nessas pautas específicas precisaremos fazer uma comunicação mais direta?
Como você, temos mais perguntas do que respostas. O assunto exige profundidade e talvez só uma pesquisa de opinião sobre o assunto poderá nos trazer caminhos mais potentes.
Para acompanhar o Trama Afetiva, siga pelo Facebook ou Instagram. Você pode acompanhar o Jackson Araújo no Medium e no www.shhh.fm.