A concentração de terra está relacionada com poder, mas não só. Está relacionada também com as dinâmicas socioeconomicas no Brasil. Está relacionada com as monoculturas e com o uso intensivo de agrotóxicos (ou defensivos agrículas, chame como preferir, é tudo a mesma coisa). A morte em massa das abelhas e as mudanças climáticas são consequências de, entre outras coisas, como lidamos com a terra.
A terra e a posse da terra está relacionada até com a moda, veja só. A maior parte do algodão das nossas roupas é plantado em grandes latifúndios com rotação de culturas (intercala-se soja, milho e algodão), exigindo uso expressivo de agrotóxicos. O Brasil tem a maior empresa agrícola do mundo plantando sob essa lógica. Dona de, pasmem, 440 mil hectares, a SLC Agrícola é o exemplo da concentração de terra no Brasil. As madereiras, que chegam primeiro para desmatar e abrir campo para agropecuária, que vai plantar milho e soja pra gado, ou que vai fazer pasto pra gado, também se relacionam, de uma forma ou de outra, com a moda.
Mas como essas terras foram – e continuam indo – parar na mão de algumas pessoas? O que a reforma agrária tem a ver com sustentabilidade e o que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra demandam, no fim das contas? Na mídia de massa, pouco se explica sobre o MST, pouco se fala sobre o agronegócio de verdade e menos ainda sobre como a posse da terra e o movimento rural se desenvolveu desde o Brasil Colônia. Sabemos que o “agro é pop” – e mais nada.
Na verdade, para alguns poucos que detêm muito poder, é pouco interessante levar o tema à público e permitir que a sociedade se envolva na pauta. Para esses, seguir sedimentando a imagem dos movimentos rurais (e indigenistas) pela posse da terra como “ladrões” e “terroristas” é uma forma, bastante eficaz, de manter a hegemonia no campo, veneno na mesa e nas roupas, e comida industrializada a preços baixos. O MST é alvo porque ele é um ator chave para quebrar essa hegemonia, democratizar (no sentido real da palavra) o acesso à terra, à produção agroecológica e aos alimentos – e roupas – sem veneno.
Na nossa série de textos terra com t minúsculo: MST e sustentabilidade nos propomos a olhar para o passado e para o presente como forma de imaginar futuros melhores para a terra e para a Terra. Você é a pessoa convidada para ler e ir além – separamos também uma série de conteúdos extras que vão te ajudar a refletir sobre o tema, fazer as conexões e formar sua própria opinião.
Por que o MST incomoda tanta gente?
“O preconceito contra o MST é antigo. Tem origem no preconceito contra o pobre, que sempre existiu no Brasil”, avalia Clóvis de Oliveira, pesquisador científico do Instituto Botânico e ativista do MST, MUDA e Articulação Paulista de Agroecologia. Além disso, segundo o pesquisador, a mídia explora apenas o lado negativo do movimento: os enfrentamentos que ocorrem em ações de ocupação e despejo. “As ações de restauração e de produção não são divulgadas, não aparecem na TV”, afirma ele.
Mas elas existem. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é atualmente o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. Já recebeu vários prêmios, entre eles o prêmio Juliana Santilli de Agrobiodiversidade, em 2017, pela produção de alimentos livres de agrotóxicos junto à recuperação da Mata Atlântica no litoral norte do Paraná. De acordo com o site oficial do movimento, o MST tem 100 cooperativas, 96 agroindústrias, 1,9 mil associações, e 350 mil famílias assentadas.
O MST é um movimento popular cujo objetivo é lutar pela terra, pela reforma agrária e pelas transformações sociais. Talvez seja tão perseguido e criminalizado pois tem como principal foco de atuação a propriedade da terra. Mas para fazer uma reforma agrária de fato no Brasil, que distribua a terra e as riquezas, é preciso um processo de transformação mais profunda do ponto de vista político. A reforma agrária depende de uma luta política em que outras reformas estruturais estejam colocadas. Lutar pela reforma agrária não é uma tarefa do MST, é uma tarefa política da classe trabalhadora.
— Gilmar Mauro, dirigente da coordenação nacional do MST
Talvez o maior problema do MST seja a causa que ele pleiteia e como ela incomoda gente poderosa. “Jango foi derrubado em 64 porque queria levar adiante a reforma agrária”, diz Clóvis. “Nem ia ser uma reforma ampla e distributiva como queriam as ligas camponesas, o partido comunista e a igreja católica, que era quem organizava os sem-terra nessa época”, completa Débora Lerrer, professora-adjunta do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. O objetivo do então presidente João Goulart era apenas o de desapropriar terras nas margens das grandes rodovias federais.
O golpe militar de 1964 marcou, assim, a gênese dos bolsões de pobreza nas grandes cidades. “Havia sido aprovada, em 1963, uma reforma trabalhista que beneficiava os trabalhadores rurais, que antes não tinham direito a nada. Então os patrões resolveram demitir todo mundo, porque não tinham condições de pagar salário. Sem reforma agrária as pessoas não puderam permanecer no campo. Foram expulsas das terras dos patrões e vieram para as cidades. Trinta milhões de brasileiros saíram do interior entre as décadas 60 e 80 e foram jogados numa urbanização patológica”, avalia Débora.
Na região de Eunápolis, na Bahia, 27% das terras são públicas, segundo o Incra. A empresa Veracel comprou a posse de uma área e o Estado reconheceu. A Veracel chegou lá, plantou eucalipto, criando um “deserto verde”, e os trabalhadores das fazendas que existiam antes da compra tiveram que ir embora, porque a empresa não precisava dessa mão de obra. Mesmo as pessoas que tinham suas pequenas propriedades começaram a sair fora, depois de se verem cercados por eucalipto.
Esse pessoal todo fica sem emprego. A única coisa que eles sabem fazer é plantar. Vão para a periferia e começam a se marginalizar. Os filhos entram no tráfico, na violência, as filhas se prostituem. Eles não são preparados para fazer outro tipo de trabalho, muitas vezes não são nem alfabetizados. Conheci um senhor que tinha 11 filhos num acampamento numa terra devoluta. Ele ficou me mostrando, orgulhoso, as mandiocas que estava plantando ali, onde antes só tinha eucalipto. Ele fundou o sindicato dos trabalhadores rurais da sua cidadezinha, mas com a chegada da Veracel acabou o trabalho e ele estava vivendo da venda do jogo do bicho.
— Débora Lerrer
De quem é a terra que o MST ocupa?
Para a opinião pública, reforma agrária pode soar como “roubo” de terras. Sabe aquele história do sítio do primo de um amigo de um tio que foi ocupado pelo MST? Então. Mas, na prática (e não na lenda) a luta pela reforma agrária não é feita a partir de terras onde tem gente. “A maior parte das terras ocupadas pelo MST são improdutivas ou devolutas”, explica a professora – que é autora de dois livros sobre o movimento, “Reforma Agrária: Os caminhos do impasse” e “A “degola” do PM pelos sem-terra em Porto Alegre: De como a mídia fabrica e impõe sua verdade”.
Terras devolutas pertencem ao Estado, ou seja, não têm proprietários pessoas físicas ou jurídicas. As improdutivas são as que têm dono, mas não cumprem a função social descrita na Constituição de 1988. São terras em que nada é plantado. Servem a propósitos de especulação. Quem decide se uma terra é improdutiva não é o MST, é o Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. “Tem muita terra no Brasil que é reserva de valor e que poderia estar sendo trabalhada. Terra de negócio, que fica parada”, lembra Débora. O Atlas da Terra Brasil 2015, feito pelo CNPq/USP, mostra que 175,9 milhões de hectares são improdutivos no Brasil.
Mas o que é grilagem?
Débora explica que a especulação encarece a terra e a agricultura familiar só pode produzir quando tem terra barata. “A terra é cara no Brasil porque tem muita grilagem: gente que toma a terra e não usa, fica esperando ela valer algum dinheiro”.
“Cerca de 1% dos proprietários de terras são donos de 47,5% da terra no Brasil”, ressalta a professora. Como tanta terra foi parar na mão de tão poucos está relacionada ao período colonial. “Toda entrada luso-brasileira pelo interior do Brasil encontrou indígenas. Não havia terra vazia no Brasil”. As populações originárias foram sendo dizimadas, caçadas e expulsas de seus lugares. Até meados do século 20 existiam “bugreiros” em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, pessoas encarregadas de perseguir e matar indígenas.
A propriedade absoluta da terra não existia até a metade do século 19. O domínio da terra era da coroa portuguesa. “O que garantia permanência das famílias na terra era a posse. Esse era o método tradicional de ocupação de terra no Brasil”, conta Débora. As comunidades tradicionais tinham a posse da terra em que moravam. “Uma posse mansa e pacífica, reconhecida pela vizinhança. Várias áreas, inclusive, eram de uso comunitário, sem cerca. Na época colonial, a terra não tinha valor de mercado. O que tinha valor era o escravo. Quando se aboliu a escravidão, a terra passou a ter valor”.
Em 1850 é criado o regime da propriedade privada, com a lei nº 601. Ao invés da posse, quem tinha o papel passou a ser reconhecido pelo estado como dono. Mas papel é fácil de forjar. Segundo a professora, isso acontece no Brasil todo. “Quando se abre uma estrada, por exemplo. Chega junto o pessoal que tem contatos políticos e forja papel falso ou compra posse bem barato”. E se tornam donos das terras onde até então moravam indígenas e populações locais. “Quem mais invade no Brasil são os latifundiários que forjam documentação, falsificam no cartório e apresentam. Grandes famílias brasileiras têm origem grileira”.
Terra para quem nela trabalha
As terras que estão na mão do Estado, as devolutas, já fariam uma grande diferença se fossem utilizadas por pequenos agricultores. “Pelo menos 34% das terras no Brasil poderia ir para reforma agrária (Delgado – 2010, p.012-103), ou seja, tem terra pra todo mundo”, salienta a professora Débora. E sem expulsar nenhum agricultor que produz.
O monopólio fundiário no Brasil (de novo: 1% dos proprietários de terra no Brasil são donos de 47,5% da terra do país) mantém estruturas de dominação. “As pessoas não têm outra alternativa a não ser trabalhar por salários baixos. Se o camponês tem terra, ele pensa duas vezes antes de aceitar qualquer trabalho, porque tem garantida a comida que a família vai comer”.
Eu li um artigo que faz uma análise do cardápio dos assentamentos no interior de SP e fiquei com água na boca. O assentado tem árvores frutíferas, planta verduras e legumes, tem animais, e às vezes uma lavoura de arroz. O autor encontrou agricultor que trazia sementes do nordeste, então tinha feijões diferentes. A família come muito melhor. Esse cara não vai trabalhar por qualquer coisa. Isso incomoda muito a classe média no Brasil: não ter mão de obra disponível para ser explorada. Por conta da escravidão, as pessoas dão um valor muito baixo ao trabalho manual aqui.
– Débora Lerrer
“O MST é tão estigmatizado porque traz uma bandeira que desestrutura o domínio oligárquico brasileiro” — baseado na posse de terras para o agronegócio ou especulação. “O pessoal que tem monopólio fundiário tem muito poder político, e os donos dos meios de comunicação são articulados com essa classe. Esses grupos dominantes querem criminalizar o MST porque a luta do movimento ameaça a estrutura do poder deles”, opina a professora.
Ao propor a reforma agrária, o Movimento Sem Terra ameaça a manutenção desse privilégio rural tão enraizado na história do país. E, de certa maneira, a continuidade do próprio sistema que aprisiona tantos brasileiros na miséria.
Conteúdos Para Ir Além
Por que o Movimento Vegano Deve Apoiar o MST – Parte 1 e Parte 2 por Sandra Guimarães.
Para entender mais sobre a criação do espaço agrário brasileiro, o que são latifúndios e por que eles representam uma ameaça à nossa soberania alimentar, ao meio ambiente e à justiça social. Depois, olhar para a importância da Reforma Agrária no Brasi.
O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro.
Para entender a formação do Brasil e a posse de terras.
Combatendo a Desigualdade Social – O MST e a Reforma Agrária No Brasil, organizado por Michel Carter. Ensaios que fornecem antecedentes históricos essenciais para a compreensão do MST.
Educação Democrática e Trabalho Associado no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e nas Fábricas de Autogestão, de Neusa Maria Dal Ri e Candido Giraldez Vieitez.
Analisa a importância do MST na construção do pós-capitalismo.
Os Camponeses e a Política no Brasil e O Poder do Atraso, ambos de José de Souza Martins.
Um olhar sobre a persistência do passado nas estruturas sociais, políticas e econômicas do Brasil contemporâneo. E como essa permanência é compreendida de modo totalmente imbricado à questão fundiária.
Land and Freedom: The MST, the Zapatistas and Peasant Alternatives to Neoliberalism (sem tradução para o português) por Leandro Vergara-Camus.
Afiado, Vergara explica como esses movimentos se organizam e como o controle territorial, a politização e o empoderamento de seus membros e a decomodificação das relações sociais são fundamentais para entender seus potenciais radicais de desenvolvimento.
Nos próximos textos da série terra com t minúsculo: MST e sustentabilidade nós vamos falar sobre outras possibilidades de cultivo e manejo da terra, como agroecologia e agrofloresta, utilizadas pelos trabalhadores rurais nos assentamentos; a relação entre algodão orgânico e o o MST; e as mulheres do movimento que estão unindo a luta pela terra com o movimento da libertação das mulheres. Confira a série completa aqui.