Na semana passada, a Renner lançou oficialmente o selo Re – Moda Responsável, utilizado a partir de agora para simbolizar o jeito das Lojas Renner pensar e praticar sustentabilidade. A apresentação do selo aconteceu junto com o lançamento da primeira coleção Re Jeans da varejista, composta por peças feitas a partir de algodão reciclado pré-consumo e PET reciclado, e oficializou também o início da corrida rumo à implementação de uma economia circular dentro dos processos produtivos da marca. Eu estive por lá e já compartilhei algumas opiniões no Instagram do Modefica.
O evento de lançamento contou com a presença do Diretor Presidente José Galló, a jornalista de moda Lilian Pacce e o Gerente Sênior de Sustentabilidade da Renner, Vinícios Malfatti. Depois de uma apresentação breve sobre o jeito Renner de pensar e fazer sustentabilidade, Cristal Muniz, do blog Um Ano Sem Lixo, chamou atenção para importância de pensar como e quantas vezes estamos lavando nossas roupas – e as possibilidades de gerar menos impactos negativos no processo.
Quem esteve presente pôde conferir a coleção em primeira mão, ter uma noção visual de como funciona o processo de reciclagem do jeans pré-consumo, e ainda levar para casa uma amostra do sabão em pó caseiro que a Cristal ensina fazer no seu blog mais um canudinho de vidro, produzido em parceira com a Mentha.
A história da Renner com a sustentabilidade
O selo Re não é o primeiro ponto de contato das ações de sustentabilidade da marca com o público. A maior varejista de moda brasileira (lucro líquido de R$ 732,7 milhões em 2017) já está comercializando peças produzidas com o que eles chamam de matérias-primas menos impactantes há algum tempo como o fio reciclado, criado a partir de material têxtil e/ou plástico (PET); o liocel, fibra de origem renovável extraída da fibra de madeira de árvores de fácil crescimento num processo de baixo impacto; e o algodão certificado Better Cotton Iniciative. Já foram 3 milhões de peças vendidas no mix de produtos de moda e para 2018 a previsão é de que esse número chegue a 10 milhões.
Ela também foi uma das primeiras empresas de moda a incorporar um departamento de sustentabilidade, lá em 2007, e trabalhar de forma ativa para diminuição de impacto ambiental e maior eficiência nos processos produtivos. Inclusive, junto com o lançamento do Re – Moda Responsável, a empresa divulgou alguns compromissos para 2021: ter 80% dos produtos feitos com matérias-primas e processos menos impactantes; utilizar algodão certificado em 100% de sua cadeia de fornecimento; ter 75% do consumo corporativo de energia proveniente de fontes renováveis; reduzir em 20% as emissões absolutas de gás carbônico (CO2); e ter 100% dos fornecedores certificados por entidades internacionais.
Durante o evento, a Renner montou uma instalação com as sobras de jeans pré-consumo, o produto desfibrado e depois fiado novamento com PET reciclado.
Mas que algodão reciclado é esse?
Apesar das boas iniciativas, há muito espaço para discussão e reflexão. Começando pela necessidade de esclarecer dois dos principais conceitos da coleção Re Jeans: o que a empresa está chamando de algodão reciclado e o que ela está chamando de economia circular. Primeiro, é importante destacar que o algodão reciclado utilizado para produzir os tecidos da coleção não são provenientes de roupas. O “algodão reciclado” utilizado para produção de todas as peças feitas com algodão reciclado disponíveis hoje no mercado é, em grande parte, um aproveitamento de matéria-prima da tecelagem e, em menor parte, um aproveitamento de matéria-prima da confecção; por isso chamamos de algodão reciclado pré-consumo.
No modelo de aproveitamento das sobras da tecelagem, a própria empresa responsável por transformar o fio em tecido faz o trabalho de desfibrar e reutilizar as partes residuais provenientes da formação do rolo de tecido. Os tecidos que sobram são desfibrados e transformados em fios novamente, mas como se perde qualidade no processo, é necessário alongar o fio com algodão virgem ou fibras sintéticas, como o poliéster ou PET reciclado. O mesmo acontece com as sobras de tecidos do corte – durante o processo de corte e costura de uma peça cerca de 20% a 30% do tecido é descartado ainda nas oficinas. Nesse caso, o resíduo têxtil é recolhido, desfibrado e reutilizado, no mesmo processo das sobras de tecido da tecelagem. Segundo as informações colhidas durante o evento, o tecido reciclado para coleção Re Jeans é proveniente de confecções parceiras da marca num processo feito em parceria com a EcoSimple.
É muito importante destacar o “pré-consumo” nessa conversa. Ao dizer que o algodão foi reciclado, podemos passar a impressão de que nossas peças de roupas usadas estão sendo recicladas, aliviando preocupações com o destino final da roupa e gerando uma sensação de “consumo sem culpa” quando, na verdade, isso está muito longe de acontecer. Ausência de logística reversa e de ações para reciclagem de roupas, até mesmo aquelas que estão paradas em estoques e nunca foram usadas, tornam o processo de transformar uma calça jeans em uma nova calça jeans, um sonho distante.
Economia circular manca com PET e ausência de metas para logística reversa
Um outro ponto de atenção é uma falta de cuidado ao misturar PET reciclado com algodão. Quando isso acontece nascem verdadeiros monstros híbridos, que nunca mais poderão ser reciclados. Enquanto o PET poderia ser reciclado em PET ou outras formas de plástico com chances de realmente voltar para o ciclo produtivo, e o algodão poderia ser desfibrado para virar outros itens de algodão numa incorporação de logística reversa, a mistura de fibras garante aterro sanitário ou lixão como destino final da peça. Ao fazer essa escolha, a Renner não só adota uma economia circular manca, como também deixa de olhar para seu próprio lixo: o poliéster das suas peças produzidas e descartadas. No meio do caminho, ela também cria produtos que soltarão milhares de micropartículas de plástico, altamente prejudiciais ao meio ambiente, por serem produtos que necessitam de lavagem frequente – como calças, saias e camisetas.
Coleção Re Jeans, primeira a levar o selo Re – Moda Responsável, conta com calças, saias, camisetas e vestidos.
A necessidade de olhar para essas iniciativas com cautela é crucial principalmente porque, por mais que as marcas tentem nos vender PET reciclado com algodão reciclado de pré-consumo como inovação para sustentabilidade, a prática não só é mais prejudicial do que uma solução real de longo prazo, como também existe há mais de uma década e pouco ajudou a diminuir a produção e descarte de lixo plástico e o uso de poliéster virgem na moda. É difícil entender porque, 15 anos depois, marcas ainda insistem na adoção desse discurso como prática de sustentabilidade.
Outra questão que fica é: da onde vem esse PET reciclado? Quando as taxas de uso de PET virgem só aumentam, e nós não temos uma rastreabilidade da logística reversa do PET descartado e reciclado, é muito difícil garantir a origem desse material e se ele está, de fato, atrelado à uma cadeia sustentável e que beneficia a economia da reciclagem e quem vive dela.
Menos ruim é melhor do que nada?
Por mais que eu defenda que perfeito é inimigo do feito, eu também defendo que, às vezes, fazer nada é melhor do que fazer algo menos ruim e acreditar que se está fazendo algo bom. Muitas práticas vendidas como ferramentas eficazes para sustentabilidade são, na verdade, um atraso para implementação de práticas realmente capazes de gerar transformações sistêmicas e causar impactos positivos.
A agenda de sustentabilidade assumida pelas Lojas Renner para 2021 tem seu charme, mas poderia abraçar o algodão orgânico ao invés do PET; esboçar uma implementação de logística reversa, mesmo que ainda em forma de teste, ao invés de trabalhar de forma dependente do erro de design de outras indústrias; desenvolver uma estratégia de comunicação sobre a importância da sustentabilidade na moda para conscientizar consumidores; garantir que 100% da viscose utilizada pela marca não venha de florestas virgens desmatadas; e trabalhar com ONGs e Institutos para fomentar o desenvolvimento social e independência econômica dos seus fornecedores, principalmente subcontratados.
É positivo e importante a Renner entrar nessa conversa (apesar de não ser coincidência) agora. Uma das falas de Galló durante o evento foi sobre a preocupação real da empresa com a pauta da sustentabilide para muito além do marketing. Sendo assim, entendo que seja igualmente uma preocupação da empresa adotar ferramentas realmente capazes de gerar transformações sistêmicas, ao invés de soluções paliativas e ineficazes a longo prazo, para sustentabilidade na moda. Ao mesmo tempo, nós continuamos à espera do dia em que essas ações virão acompanhadas de uma conversa aberta sobre modelo de negócios.
O Modefica entrou em contato com a Renner, mas não teve retorno antes da publicação desta matéria.