Em se tratando de moda, a realidade não é diferente. Estima-se que o setor tenha cerca de 30 mil micro e pequenas empresas espalhadas por todo o país, que já estão sentindo um impacto econômico gigantesco por não trabalhar com itens de primeira necessidade. Os efeitos devem ser sentidos inclusive após a normalização. Em entrevista ao O Globo, Carlos Ferrerinha, presidente da MCF Consultoria, afirmou que “ninguém sai de uma crise como essa sem rever valores e isso será o que eu chamo de uma segunda onda. Vai ser necessário estimular as pessoas a terem vontade novamente daquilo que não é necessário. Ocorrerá uma profunda transformação da dinâmica econômica”.
Se olharmos para um nicho ainda mais específico, as marcas e empresas de moda falando e atuando para sustentabilidade, manter as portas abertas era um desafio diário bem antes do Covid-19. Produzir sobre uma outra lógica, ter responsabilidade com todas as partes interessadas, construir um negócio em cima de outros paradigmas e cuidar dos processos de perto já é trabalho de “vender o almoço para comprar a janta”. Mas a crise sanitária do novo coronavírus no Brasil impõe um novo desafio a todas elas: sobreviver à queda das vendas, à parada na produção e às incertezas do fluxo de caixa.
O que pode ser feito num cenário tão imprevisível e quais medidas adotar para garantir resiliência no momento de caos? Quais os impactos imediatos e como remediar a situação até retornarmos a uma certa estabilidade?
Ir para o online, cortar custos não essenciais e negociar prazos
Bárbara Mattivy, da Insecta, afirma que 50% das vendas da marca já aconteciam no online. A empresa começou no digital e só depois apostou nas lojas físicas, o que torna a Insecta muito mais preparada para um momento onde tudo está acontecendo digitalmente. Porém, o clima não está para compras, ainda mais de itens de moda. “Tivemos uma queda de 60% nas vendas do online”, contou Bárbara. Para ela, há muitas incertezas e inseguranças até mesmo entre quem tem uma renda estável, o que afeta diretamente o consumo de itens não essenciais.
Já Flávia Aranha sempre foi muito analógica. Com duas lojas, uma fábrica, um fluxo de cursos e workshops presenciais, o ambiente online nunca foi o forte da marca apesar do e-commerce existir há algum tempo. “Nós estamos correndo atrás disso, sempre fomos muito offline e agora estamos entendendo como aproveitar melhor o digital”, relata Flávia. Ainda assim, ela sabe que a contenção afetará as vendas, que não devem ser suficientes para gerar liquidez e garantir o pagamento das contas no fim do mês. “Mesmo se o governo liberar, a gente não vai voltar. É uma questão de ética, não colocar as pessoas em risco e respeitar o isolamento. É uma situação muito difícil e não temos muito como prever, é viver um dia de cada vez”, conta.
Para a Roupateca, totalmente offline e cujo modelo de negócios se baseia na troca de roupas por meio de um guarda-roupas coletivo, suspender as operações foi a única saída viável nesse momento. “A gente comunicou às assinantes que permaneceríamos fechadas, que todas poderiam ficar com as peças, atenderíamos necessidades específicas e pontuais e sinalizaríamos quando entendêssemos que fosse o momento de retomar às trocas”, contou Daniela Ribeiro, sócia da Roupateca. A pausa tem servido para a empresa dar continuidade na estruturação do serviço online, algo já programado para o primeiro semestre de 2020. Mas o lançamento será adiado. “A sorte é que a gente já tinha se estruturado financeiramente para que ele acontecesse. Então, quando isso tudo passar, a gente vai ter não só o espaço físico, como o online também”, completa.
Célia Kanto, Diretora da Rede Mulher Empreendedora, responsável por fortalecer mulheres empreendedoras pelo Brasil, alerta que o digital é importante, mas é preciso avaliar bem o quanto de investimento será necessário para ativar o online. Se for comprometer demais as reservas, talvez não valha à pena. “É importante ter um fotografia clara do negócio, quais são as entradas previstas e quais as saídas, para tomar qualquer tipo de decisão”, orienta ela. Depois de ter essa clareza, é priorizar o pagamento de contas que mantêm o negócio funcionando e cortar gastos não essenciais. “Entenda o que é imprescindível, o que pode ser atrasado e o que pode ser negociado”, indica. Impostos, por exemplo, podem ir para o fim da lista.
Criativizar, ser transparente e se apoiar na comunidade construída
Também é o momento de testar coisas novas, que tenham baixo custo. “Nosso time de vendas está ocioso, então estamos trabalhando via WhatsApp, dando um atendimento mais humanizado e pessoal para quem não está tão acostumado com as compras online”, contou Bárbara. Pensando em atender um grupo de clientes fiéis e já conhecedores da marca, a Insecta vai testar serviços de malinha: uma quantidade de produtos é enviada à casa de cada cliente. A pessoa pode experimentar, ficar com o que gostar e devolver os outros produtos. “É hora de se reinventar e testar; o que não der certo, não deu. Precisamos experimentar”, afirmou.
Outra carta na manga para as marcas pequenas do nicho é se apoiar na comunidade construída por meio de uma comunicação transparente. A Flávia Aranha criou uma campanha de vale compras, de valores que vão de R$ 100 a R$ 5.000, com possibilidade de resgate durante todo o ano. Quem garantir o vale compras também pode parcelar em mais vezes e ganha 20% a mais do valor escolhido. “São nossas clientes mais fiéis que estão comprando e nos apoiando nesse momento”, contou Flávia.
As marcas que construíram uma comunidade, principalmente envoltas em valores de sustentabilidade, têm a quem recorrer e terão mais facilidade quando o cenário normalizar. Há grandes chances da percepção de valor de algumas pessoas mudar e aumentar a identificação com marcas que têm mais do que uma roupa para oferecer. Quem não se preocupou com isso em épocas de bonança, levará essa lição de casa da crise.
Daniela, da Roupateca, tem apostado em conversas mais significativas com seu público, nesse esforço contínuo de aproximação e convencimento. “Para nós, não é momento de falar sobre produtos ou serviços”, explica ela. “Estamos focando em falar sobre a importância da colaboração, dos novos modelos de negócio e contar o por quê a Roupateca existe”. Na mesma toada, a Insecta tem produzido e lançados conteúdos como ebooks, para garantir que as pessoas sigam em contato com a marca independente do ato da compra.
As marcas que construíram uma comunidade, principalmente envoltas em valores de sustentabilidade, tem a quem recorrer e terão mais facilidade quando o cenário normalizar. Há grandes chances da percepção de valor de algumas pessoas mudar e aumentar a identificação com marcas que têm mais do que uma roupa para oferecer. Quem não se preocupou com isso em épocas de bonança, levará essa lição de casa da crise.
Algumas marcas também estão pensando em produtos que façam sentido para o público neste momento: peças de loungewear – itens confortáveis para usar em casa. Apesar de quase toda a produção estar parada, algumas oficinas familiares continuam: “nós temos um pequeno fornecedor que já passou por uma falência e não quer parar de jeito nenhum. Ao mesmo tempo, não temos pedidos, nosso estoque está suprido até o fim do ano nesse ritmo de vendas. Mas estamos pensando em um produto diferente e específico para essa época, para que ele continue tendo entradas e nós vendas”, antecipa Bárbara sobre um lançamento que deve acontecer em abril.
Colaborar e se apoiar mutuamente
Nenhuma marca passará pelo coronavírus sozinha. Inclusive, a pandemia escancarou o quanto estamos conectados não só no âmbito físico, mas também econômico. “Se eu peço carência do aluguel, o locatário também fica sem o recebimento e provavelmente vai precisar pedir alguma ajuda para suprir essa carência e assim por diante. É uma bola de neve, todo mundo depende um do outro”, ressalta Bárbara.
Existe uma articulação de marcas se unindo e divulgando umas às outras, ou trocando ideias nos bastidores sobre o que pode ser feito, o que está funcionando e o que não está. “Entre as marcas pequenas já existia esse movimento antes, a questão é que a gente não sabe muito o que fazer ou como fazer”, afirma Flávia, “tem até um pouco de constrangimento entre as marcas de pedir ajuda publicamente sabendo que existe uma infinidade de outras empresas e outros sistemas mais frágeis que o nosso, mas no fim somos todos frágeis, porque estamos todos conectados numa rede”.
Flávia, especificamente, tem uma rede vasta para além dos 20 funcionários fixos, que se estende até a produção rural, com o algodão agroecológico e as plantas tintóreas, passando pelas artesãs em comunidades afastadas. Ela também trabalha com oficinas de costura menores por meio do Instituto Alinha. Hoje, praticamente toda a produção das oficinas está zerada; um elo extremamente sensível da rede produtiva.
Dariele Santos, presidente do Instituto Alinha, afirma que a produção nas pequenas oficinas em São Paulo está praticamente zerada: “o que está surgindo é oportunidade para costurar máscara ou avental, mas é produção de centavos a peça e não é suficiente para gerar renda para tantas oficinas”, conta ela. “Estamos mobilizando recursos para cestas básicas e, se conseguirmos bastante apoio, sonhando em garantir uma renda básica para auxiliar nas contas, como energia, água e gás”.
São mais de 100 oficinas na base da Alinha, com cerca de 400 pessoas, fora as crianças. Mas inicialmente, o auxílio, arrecadado por meio de um financiamento coletivo, será destinado a 21 famílias, 100 adultos e 40 crianças para quatro meses. “Ampliar para além da rede Alinha é falar de cerca de 10 mil oficinas”, explica.
Algumas marcas mantiveram a produção por reconhecerem as oficinas como um ponto extremamente vulnerável à paralisação. Mas se o período sem vendas se estender, é difícil sequenciar a produção; é por isso que o Instituto Alinha já está se mobilizando para conseguir ampliar o auxílio.
Lançar mão das medidas de auxílio e se preparar para o pior cenário possível
Entre as medidas anunciadas por Meirelles estão empréstimos por meio do Desenvolve São Paulo, com taxas de juros abaixo do normal com carência estendida até o primeiro pagamento e prazos maiores para quitação dos valores arrecadados. Há também um pedido do Governo do Estado às instituições bancárias para manter as linhas de crédito, aceitar atrasos e renegociação de dívidas sem prejuízos às empresas, porém, segundo relatos, isso não está acontecendo na prática.
Por parte do Governo Federal, a Medida Provisória nº 927 (resguardadas brechas e polêmicas) prevê algumas coisas positivas para as micro, pequenas e médias empresas como diferimento do prazo de pagamento do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) e deferimento da parte da União no Simples Nacional por três meses e e crédito adicional de cinco bilhões de reais do Proger/FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) para micro e pequenas empresas.
Para Rebeca Nevares, sócia-fundadora da Ella’s Investimentos, é preciso prestar atenção em todas as medidas anunciadas e aproveitar juros mais baixos e períodos de carência. “As empresas vão precisar de caixa. Não tem para onde correr”, explica ela. “Porém, antes de pedir o empréstimo é preciso avaliar as receitas e despesas da empresa e fazer uma análise do valor que você precisa provisionar. Não adianta se alavancar, ou seja, pegar muito dinheiro emprestado e não conseguir pagar depois”, ressalta. A consultora indica fazer um provisionamento de gastos para os próximos seis meses e tentar encaixar as despesas dentro deste cenário de crise para ter uma visão de longo prazo dentro do pior cenário possível.
Manter a calma e aprender com o momento
Segundo Célia, as mulheres empreendedoras tendem a ficar um pouco mais abaladas em momentos de crise porque fazem jornada dupla, cuidam da casa, dos filhos. “É preciso manter a calma e tranquilidade para tomar decisões e liderar uma equipe”, alerta ela. “Também fica claro a necessidade de ter uma reserva, um capital de giro resguardado para momentos como esse”.
Ainda é cedo para tirar lições e aprendizados, mas Rebeca deixa a dica: “se sobrar algum dinheiro ao final da crise, o ideal é aplicar tudo na renda fixa. Não é hora de arriscar nenhum centavo. É hora de montar a reserva de emergência, principalmente da empresa, e então deixar esse dinheiro guardado na renda fixa que não tenha oscilação como fundos referenciados DI’s e CDB’s”.
Apesar da tensão, Daniela, Flávia e Bárbara tentam balancear o receio com a possibilidade de surgir algo positivo do momento. “Tenho uma certa esperança de que, nesse caos, a gente consiga, enquanto sociedade, compreender que somos um sistema, estamos interligados num grande organismo. E que sejamos capazes de reinventar o sistema econômico. Um novo modo de produzir, criar, consumir”, afirma Flávia. Para Daniela, “quando isso tudo passar, a Roupateca e todos os serviços compartilhamento já estarão do outro lado da ponte”. Já Bárbara pensa em resiliência: “talvez essa seja a nossa maior prova”.