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Mulheres Indígenas e Ribeirinhas Lutam Pelo Futuro no Xingu

Publicada em:
Atualizada em:
Texto
  • Isabel Harari
  • Tainá Aragão
Imagens

Victória Lobo

12 min. tempo de leitura

“Foi por um sopro”. É assim que os indígenas Juruna, também conhecidos como Yudjá, descrevem a criação da Volta Grande do Xingu, no Pará. Com sopro do criador Senã’ã surgiram as cachoeiras do Jericoá, ilhas, corredeiras, pedrais, sarobais, os Juruna e uma infinidade de espécies de peixes e tracajás.

Foi exatamente ali, onde o rio Xingu dobra-se como um cotovelo, que a usina hidrelétrica de Belo Monte se instalou e hoje, quase seis anos após o barramento definitivo do rio, o futuro da região continua incerto.

As mudanças provocadas desde a primeira licença prévia para a construção da usina, em 2010, até a inauguração da última turbina, em 2019, seguem um curso devastador. A hidrelétrica acumula uma série de passivos ambientais e impactos ainda não totalmente dimensionados que podem ser potencializados pela emergência climática. Nesse curso, as vidas de Bel Juruna, liderança da aldeia Mïratu, Terra Indígena Paquiçamba e Josefa Oliveira, do Conselho Ribeirinho, foram transformadas radicalmente. 

“Somos um povo da água, conhecemos o rio Xingu como ninguém, mas a situação de Belo Monte nos deixou como se não conhecêssemos mais nada. Às vezes temos medo do rio. Mesmo assim a gente não desiste, vamos lutar”, conta Bel Juruna, que vive à jusante do barramento, onde a seca é perene. 

A família de Josefa Oliveira vivia na outra margem do Xingu, a região foi alagada para a construção do reservatório da usina e 300 famílias ribeirinhas foram expulsas de suas casas. “O rio está totalmente mudado, está sujo, está parado. Meu pai vai para o rio pescar e a gente não tem uma expectativa de que ele vai trazer uma boa quantidade de peixe. Não é como antes”, explica. 

Volta grande do xingu

Legenda
Área Influência Direta (AID) Belo Sun Área Influência Indireta (AII) Belo Sun Área Influência Direta (AID) Belo Monte Trecho de Vazão Reduzida (aprox.) Reservatório Planejado Belo Monte (cota 97) Terra Indígena Estradas Principais Estradas Secundárias Comunidade Rural na AID Belo Monte
Fonte: EIA/RIMA Belo Monte, EIA/RIMA Belo Sun, IBGE, FUNAI
Realizado pelo Laboratório de Geoprocessamento do ISA/Altamira, Janeiro de 2013

Em 2021, a luta no Xingu ganhou outros recortes. Em meados de junho o governo já anunciava que a crise hídrica poderia comprometer o abastecimento de energia no país, e no final de agosto o Ministério de Minas e Energia publicou uma série de medidas para garantir o fornecimento de energia elétrica, como o aumento da geração de energia termelétrica e importação de energia de países vizinhos.

Somos um povo da água, conhecemos o rio Xingu como ninguém, mas a situação de Belo Monte nos deixou como se não conhecêssemos mais nada. Às vezes temos medo do rio. Mesmo assim a gente não desiste, vamos lutar.

Bel Juruna

Nesse cenário, a pressão para que Belo Monte gere mais energia a qualquer custo aumentou. Pesquisadores e moradores de Volta Grande denunciam que o Governo Federal pode estar utilizando argumento de crise hídrica como “desculpa para violação de direitos em Belo Monte”, como apontou o Movimento de Atingidos por Barragem (MAB) em junho deste ano.

A inviabilidade da construção é apontada muito anteriormente, desde 1989, como demonstra a própria cronologia da Norte Energia. Quando foram realizados os primeiros estudos de viabilidade de Belo Monte, já havia divergências acerca do impacto socioambiental que levaram à suspensão do financiamento da obra na época.

Os povos da Volta Grande e pesquisadores continuaram alertando que Belo Monte não geraria a abundância energética prometida pela empresa Norte Energia – e suas preocupações estavam corretas. A “energia firme”, ou seja, a quantidade de energia que Belo Monte deveria operar, segundo a concessionária, seria no mínimo 4.571 MW por mês ao longo de 12 meses, contudo, os dados apontam que a usina não alcançou essa constância de geração.

A análise da Conservation Strategy Fund (CFS), a partir de simulações feitas ainda em 2006, apontou que a geração de energia seria inferior a 20% ao prometido. “Essa capacidade ociosa”, segundo o estudo, representa uma “crise planejada e deveria estimular permanentemente projetos de regularização de vazão do rio Xingu”, aponta a análise.

O estudo não está obsoleto, segundo dados oficiais do Operador Nacional de Sistema (ONS). A geração média anual de produção energética de Belo Monte entre 2016, início da operação, até 2020, variou entre 1.377 MW a 4.424 MW, aquém da média estabelecida.

Histórico Geração de Energia-media anualda hidrelétrica de belo monte de 2016-2021

Escala de Tempo
Anual
Subsistema
Norte
Estado
Pará
Tipo de Usina
Hidroelétrica
Combustível
Tudo
Modalidade de Operação
Tudo

GERAÇÃO DE ENERGIA (MWmed)

PERÍODO
Início
01/04/2016
Fim
04/10/2021
Total de Dias
2.013
Fonte:

A morte anunciada do Xingu

A Volta Grande do Xingu é um trecho de aproximadamente 130 quilômetros que banha duas Terras Indígenas que abrigam aproximadamente 240 pessoas, segundo o último levantamento da Funai em 2011, além de centenas de famílias ribeirinhas 1Não existe informação consolidada sobre o número de pessoas na Volta Grande do Xingu.. É a região que mais sofre com a profunda interferência de Belo Monte. Para abastecer as turbinas da hidrelétrica, a Norte Energia  desviou 80% das águas do rio por meio do “hidrograma de consenso”.

O desvio das águas provocou seca em parte da região de Volta Grande, o que impactou diretamente a vida das mulheres, principalmente, em relação ao trabalho e à independência financeira, pois muitas delas tinham seu sustento através da pesca e tiveram que se reinventar, como aponta Josefa Oliveira. “As mulheres ribeirinhas que eram pescadoras tiveram muitos impactos. A mulher ribeirinha teve que procurar outras formas, alternativas de sobrevivência além da pesca para ver se elas têm um complemento na renda”, afirma.

O hidrograma, implementado sem qualquer consulta aos povos da região, prevê o teste de duas vazões diferentes por seis anos após a conclusão das obras, finalizadas em 2019. Em um ano, a Volta Grande teria uma vazão de 4 mil metros cúbicos de água durante a cheia,  o “hidrograma A”, e no ano seguinte seriam 8 mil metros cúbicos de água, o “hidrograma B”. Quanto maior o hidrograma, melhor para os povos que vivem na região. 

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“A gente poderia chamar de mudança de modo de vida, mas na verdade é um etnocídio. É o esbulho de uma cultura, de uma relação ecossistêmica de ecodependência e isso não é levado em conta pelos estudos feitos pelo empreendedor”, explica Thais Mantovanelli, antropóloga do Instituto Socioambiental (ISA) e pesquisadora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).

O hidrograma de consenso, apelidado de “conflito”, seria o mecanismo de “experimentação” que analisaria a quantidade de água que poderia ser desviada da Volta Grande do Xingu para abastecer as turbinas de Belo Monte. “É como se fosse uma tortura pra ver o quanto o Xingu aguenta. O quanto é preciso machucar, ferir, estuprar, dilacerar, cortar partes até que o Xingu sucumba? O teste do hidrograma de consenso é uma máquina de tortura”, enfatiza Mantavonelli.

Mesmo antes dos testes, os Juruna já atestaram a inviabilidade do hidrograma de consenso por meio de um monitoramento independente, feito em parceria com a Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), Universidade Federal do Pará (UFPA) e ISA. O livro “Xingu o rio que pulsa em nós”, publicado em 2018, é a consolidação de uma pesquisa iniciada em 2013 que mostra as consequências do barramento sobre a disponibilidade de peixes, navegabilidade e segurança alimentar. No estudo, os Juruna concluem que o hidrograma deve ser revisto e os testes cancelados. 

Luta pela água na justiça

Em outubro de 2020, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) suspendeu a aplicação do hidrograma de consenso e determinou que os testes deveriam ser paralisados. Na mesma época, o órgão ordenou a aplicação de um hidrograma provisório, de aproximadamente 10 mil metros cúbicos de água durante a estação cheia.

No início de 2021, no entanto, a decisão foi revogada por meio de um termo de compromisso entre o Ibama e a Norte Energia que permitiu a aplicação do hidrograma B, sem nenhuma garantia técnica ou científica de que pudesse manter a vida na Volta Grande do Xingu.

Em ação judicial, baseada em mais de 80 documentos e assinada por 18 procuradores da República do Pará, o Ministério Público Federal (MPF) denuncia que ao permitir o desvio da maior parte da vazão do Xingu à hidrelétrica, o Ibama não tinha certeza técnica para sustentar a decisão e Belo Monte encontra-se em “situação de ilegalidade” por operar sem um “mecanismo de mitigação apto a garantir a partilha equilibrada das águas do rio Xingu”, diz o órgão. A seca artificial imposta aos moradores da região da Volta Grande “pôs em curso um colapso ambiental e humanitário, que segue sem freios e com riscos de não retorno”, confirma a ação. 

Logo depois, em julho deste ano, a Justiça Federal de Altamira defendeu a manutenção da vida do Xingu e concedeu a manutenção, até dezembro, do hidrograma provisório, de 10 mil m3/s, enquanto novos estudos sobre os impactos do desvio eram realizados pela Norte Energia. Contudo, no final de julho, o Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF1), em Brasília (DF), derrubou a decisão e implementou liminar em favor de Belo Monte. Em nota, o Ministério Público afirmou que vai recorrer à suspensão de liminar concedida pela presidência do Tribunal na tentativa de garantir que a vida volte a correr na Volta Grande do Xingu.

O rio que perdeu o tempo

Com o desvio de cerca de 80% do volume de água do rio e consequente fim do pulso das cheias e vazantes, o Xingu e seus ecossistemas foram transformados. Tânia Stolze, antropóloga da Universidade Federal Fluminense explica que Belo Monte “desapropria um rio da sua água”, uma vez que as águas do rio não pertencem mais ao curso natural, mas são vistas como uma matéria prima para geração energética. “Se usurpa o rio, se usurpa tudo que é vivente nesse rio. O tempo é furtado ao rio, porque o tempo não tem mais efeito sobre o rio. É sempre verão, o rio está seco, destinado a se tornar cada vez mais seco”, conta.

A situação se agravou no ano passado quando pela primeira vez na história não houve piracema no Xingu. A vazão reduzida, associada a uma seca histórica, provocou a mortandade de peixes e algumas espécies não conseguiram se reproduzir.

Em novembro, em meio a pandemia de Covid-19, centenas de indígenas, ribeirinhos e agricultores protestaram contra a hidrelétrica e exigiram a liberação de água para a Volta Grande do Xingu. “O Xingu está morrendo”, dizem em manifesto, onde descrevem a situação como “catastrófica”. “Apesar do agravamento da situação em função de fenômenos climáticos, intensificados pelos desmatamentos e queimadas, o atual quadro de calamidade do Xingu não é uma surpresa”, alerta o grupo.

Os meninos que perderam o rio

Os quatro filhos de Bel não podem brincar sozinhos no rio em frente a aldeia Mïratu. A imprevisibilidade da vazão provoca temor na comunidade, que já viu embarcações serem levadas quando o nível da água subiu de sopetão. Ela recorda que quando era criança, seu pai, seu Agostinho Juruna, tinha uma única preocupação: “que seus filhos soubessem viver no rio”. 

No livro, os Juruna fazem um alerta: “algumas formas de se prejudicar o modo de vida de um povo são mais difíceis de se expressar em termos quantitativos. Tão importantes quanto a ameaça à soberania alimentar, essas transformações merecem reconhecimento como parte significativa dos impactos do licenciamento e construção de Belo Monte”. 

Maykawa, o filho caçula de Bel,  sonha em ser pescador. “Na escola todo mundo falava que queria ser professor e etc, e ele falava que queria ser pescador. O que leva um Juruna, morador da beira do rio, a sonhar em ser pescador? A situação é tão crítica que ser pescador agora é o sonho de uma criança”, desabafa ela, que não sabe mais se vai ter rio para o filho quando ele ficar mais velho. “Nunca pensei que estaria viva para ver esse rio se tornar uma ameaça na vida de uma criança”, reiterou Bel na publicação. 

A situação se agravou no ano passado quando pela primeira vez na história não houve piracema no Xingu. A vazão reduzida, associada a uma seca histórica, provocou a mortandade de peixes e algumas espécies não conseguiram se reproduzir.

Lucas, filho mais velho de Josefa, cresceu entre a Ilha do Bacabal e o Furo do Trindade, brincando pelas praias do beiradão. “Ele me dizia que ia fazer canoas quando crescesse, que ia fazer navio, ia ser pescador, esse era o sonho dele: morar no rio”. Hoje com 17 anos, Lucas viu as ilhas serem inundadas para a construção do reservatório de Belo Monte. “A gente sente na pele, sente na alma. Quando colocamos uma rede no rio a gente fica se perguntando: será que vai pegar alguma coisa? Será que esse peixe não vai estar doente? ”, enfatiza Josefa. 

Josefa agora luta para que Davi, seu filho mais novo, possa conhecer o beiradão. Ela faz parte do Conselho Ribeirinho, criado em 2016 para assegurar o reconhecimento dos direitos dessa população tradicional do Xingu e reivindicar o retorno para seu território na beira do rio. Até o momento, 121 famílias já conseguiram retornar para o beiradão, mas muitas ainda aguardam autorização para voltar para o território.

Emergência climática e escassez de água

Modelos climáticos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) projetam aumento na frequência e intensidade de eventos climáticos extremos nas próximas décadas. No leste da Amazônia, estudos indicam uma intensificação dos períodos de seca, o que pode comprometer a capacidade da floresta de produzir chuva por meio da evapotranspiração. 

A bacia do Xingu comporta um grande complexo de Áreas Protegidas conhecido como “Corredor Xingu”, um complexo de 23 Terras Indígenas e nove Unidades de Conservação contíguas que representa uma das maiores e mais estáveis reservas de carbono na Amazônia oriental. Estima-se que suas árvores lancem para a atmosfera até 1 bilhão de toneladas de água por dia. A região, no entanto, enfrenta o avanço do desmatamento: em apenas três anos, entre 2018 e 2020, 513,5 mil hectares foram desmatados. Os dados são da Rede Xingu +, articulação de indígenas, ribeirinhos e organizações que atuam na bacia do Xingu. 

Só no ano passado foram desmatados 799,03 km² em Altamira, colocando o município no topo do ranking dos mais desmatados na Amazônia em 2020 segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

A alteração nos regimes de chuva, associadas a fenômenos naturais, como El Niño e La Niña, e ao avanço do desmatamento, podem afetar o potencial hidrelétrico de Belo Monte e, consequentemente, agravar a disputa por água na Volta Grande do Xingu. “A energia hidrelétrica já era vulnerável e a tendência é que fique cada vez mais vulnerável”, avalia André Sawakuchi, especialista em evolução geológica e mudanças climáticas na Amazônia do Instituto Geociências da Universidade de São Paulo. Para ele, a escassez de água pode potencializar os conflitos na região: “a disputa por água já existe porque o rio foi desviado. Com a mudança climática e a perda de chuva por desmatamento, esses conflitos devem se intensificar”.

Para a Bel, é o capital contra a vida: “é uma guerra. Sabemos que eles também não vão desistir porque precisam da água para gerar energia, mas nós precisamos da água para viver. Nós também não vamos desistir”.

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