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Mulheres e Terra
Direitos, Lutas e Consequências da Desigualdade no Campo

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  • Juliana Aguilera
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Luana Fernandes

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O último censo agrícola brasileiro aponta que as mulheres detêm apenas 12,7% do título das terras. O número não varia muito em outros países latinos: na Argentina elas detém, 16,2%, e no Chile, 29,4%. Sem o direito de uso e controle do território, as mulheres se tornam dependentes dos detentores da terra, tendo sua autonomia financeira, qualidade de vida e exercício de cidadania comprometidos.

A relação das mulheres com a terra é ancestral, mas ao longo do tempo, elas foram extirpadas desse direito 1 Ver FEDERICI, Silvia. O Calibã e a Bruxa. Editora Elefante: 2019; LERNER, Gerda. A Criação do Patriarcado. Editora Cultrix: 2019; e MIES, Maria. Mulheres e Acumulação em Escala Mundial. Editora Ema Livros: 2022 Segundo dados de 2021 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), as mulheres integram mais de 40% da força de trabalho agrícola em países chamados “em desenvolvimento”, entretanto, dados de 2018 da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) apontam que, globalmente, mulheres agricultoras detém menos de 15% das propriedades de áreas de plantação. Sendo o controle sobre a terra sinônimo de riqueza, mulheres dispõe de menos acesso a tecnologias, crédito agrícola, renda e saúde. No Brasil, a política da Reforma Agrária da primeira década dos anos 2000 é considerada por especialistas como a única ação pública que realmente diminuiu essa disparidade no campo.

O último censo agrícola brasileiro aponta que as mulheres detêm apenas 12,7% do título das terras. O número não varia muito em outros países latinos: na Argentina elas detém, 16,2%, e no Chile, 29,4%. Sem o direito de uso e controle do território, as mulheres se tornam dependentes dos detentores da terra, tendo sua autonomia financeira, qualidade de vida e exercício de cidadania comprometidos.

Um documento da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura é uma das agências das Nações Unidas) sintetiza qual é o cenário de disparidade entre homens e mulheres no quesito acesso à terra e suas consequências: mulheres são menos propensas a possuírem terras ou gado, adotar novas tecnologias, usar crédito e outros serviços financeiros, receber educação ou aconselhamento de extensão e, em alguns casos, elas nem mesmo controlam o uso de seu próprio tempo. 

Essas são condições essenciais para a produtividade agrícola e saúde da família, pois a terra é um bem familiar importante no contexto de agricultura para subsistência. A qualidade da produtividade agrícola está diretamente relacionada ao nível de capital humano disponível em uma família, que é, geralmente, medido com a educação do chefe da família. 

A baixa escolaridade é uma evidência do histórico de preconceito com a educação das mulheres. Essa disparidade tende a aumentar de acordo com o nível de escolaridade: no Brasil, não existem dados nacionais a respeito das mulheres na ciência agrária, mas na ciência, em geral, o número já demonstra a dificuldade da mulher em acessar a educação superior. Na Academia Brasileira de Ciências, elas são apenas 14%.

O nível de escolaridade também está relacionado ao acesso – ou falta dele – a serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater). O documento da FAO afirma que “as mulheres tendem a ter níveis de escolaridade mais baixos do que os homens, o que pode limitar sua participação ativa em treinamentos que utilizam muito material escrito”. Outros fatores limitantes são o tempo e normas culturais que podem impedi-las de acessar conhecimento. Apesar do conceito de agricultura familiar deixar claro que a gestão da propriedade é realizada pela família, a divisão sexual do trabalho ainda dita as relações de poder existentes. 

Nesse sentido, é importante notar que ao se referir aos 40% de mulheres que integram a força de trabalho no campo, a OIT contabiliza, apenas, mulheres em vínculo empregatício – ou seja, trabalho remunerado. Posto isso, são excluídos os trabalhos socialmente destinados à mulher, como o serviço da horta, cultivos medicinais, a criação de pequenos animais, o cuidado com a alimentação e saúde dos membros da família (ou seja, trabalhos orientados para a subsistência e reprodução da vida), enquanto aos homens está destinado o poder de barganha e de decisão. Logo, sem acesso ao crédito rural e com responsabilidades domésticas e comunitárias não valorizadas, as mulheres agricultoras não podem cultivar de forma tão produtiva quanto homens e possuem menor resiliência quanto à flutuação dos preços das colheitas e riscos associados aos choques climáticos.

Um artigo publicado na revista Agricultural Systems associa o direito das mulheres à terra com a redução da pobreza. O documento traz um estudo observacional no Malawi, que constatou que as altas temperaturas tendem a perturbar com maior intensidade o consumo das famílias quando as parcelas de terra são geridas exclusivamente por mulheres. No entanto, os efeitos se mostram menos graves quando estas parcelas se encontram em distritos matrilineares 2Matrilinearidade é uma classificação ou organização de um povo, grupo populacional, família, clã ou linhagem em que a descendência é contada em linha materna.

Outro ponto observado é que mulheres com direito à terra também são menos vulneráveis a se envolver em comportamento de risco, como transmissão de doenças sexualmente transmissíveis através do sexo transacional – no qual mulheres se relacionam sexualmente em troca de serviços e benefícios financeiros. 

Mulheres e Terra: Direitos, Lutas e Consequências da Desigualdade no Campo
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Fonte: Women’s land rights as a pathway to poverty reduction: Framework and review of available evidence, 2019

Mulheres e terra: titulação e reforma agrária

O que, por padrão, é chamado de “propriedade”, deve, na verdade, ser separado entre “direitos de uso” e “controle”. Na literatura, são identificados cinco direitos sobre a terra que são divididos entre estes dois grupos: “acesso”, o direito de entrar em uma propriedade; “retirada”, o direito de retirar coisas da propriedade, como culturas; “gestão”, direito de alterar a propriedade, plantando e cortando árvores, por exemplo, “exclusão”, direito de manter outros fora da propriedade e “alienação”, direito de transferir os direitos da propriedade a outrem, por meio de venda, herança, doação.

Os “direitos de uso” envolvem a capacidade de empregar um ativo, enquanto “direitos de controle” sinalizam um nível maior de poder, no qual são enquadrados gestão, exclusão e alienação. 

Historicamente, para as mulheres, os direitos de controle da terra sempre foram adquiridos com maior facilidade por herança, como é o caso das mulheres do Equador, que são detentoras de 51% das terras do país, de acordo com o censo de 2010. Apesar da falta de dados sobre a mulher no campo – questão apontada por diversos especialistas – o Banco de Dados de Direitos de Gênero e Terra da FAO aponta como o país latino está à frente de outros da região, como Paraguai, com 27%, e Peru, com 12,7%.

A resposta para este número não está em uma Reforma Agrária bem executada, como sinaliza Carmen Diana Deere, especialista em política fundiária e reforma agrária, movimentos sociais rurais e gênero no desenvolvimento latino-americano. “Esse senso se refere, principalmente, ao setor camponês, não a todas as propriedades nacionais. Nestas pesquisas domiciliares, poucos grandes proprietários aparecem”, explica, “no setor camponês, a propriedade de terra é distribuída de forma mais igualitária por gênero, principalmente por conta das leis e práticas de herança”. 

Carmen também aponta que, desde 1970, nenhuma terra foi distribuída pelo estado para pequenos proprietários/sem terra. “O Estado não pode reivindicar nenhum crédito pela parcela relativamente alta de mulheres proprietárias de terras. Além disso, quando você divide esses dados de aparência relativamente igualitária por tamanho de fazenda, as mulheres sempre tendem a ter fazendas menores do que os homens”, afirma. 

Em seu artigo Women’s land rights, rural social movements, and the state in the 21st‐century Latin American agrarian reforms (“Direitos das mulheres à terra, movimentos sociais rurais e o Estado nas reformas agrárias latino-americanas do século XXI”, em tradução livre), Carmen examina as reformas agrárias realizadas por governos progressistas após os anos 2000 na Bolívia, Brasil, Equador e Venezuela e conclui que, embora todas reformas tenham fortalecido os direitos formais à terra para as mulheres, apenas as da Bolívia e Brasil resultaram em uma parcela significativa de mulheres beneficiadas. 

Um dos motivos principais que proporcionou essa mudança para além da criação de leis foi a força dos movimentos de mulheres rurais em nível nacional, em um contexto no qual faziam parte da coalizão que levou esses regimes ao poder. Carmen avalia que no Equador e na Venezuela, “a voz das mulheres rurais organizadas tem sido bastante abafada, e elas não têm sido as principais protagonistas por trás dos aspectos progressistas de gênero de suas novas leis de terras”. 

Entre ambas reformas destacadas, a do Brasil foi a mais redistributiva, no qual as mulheres se beneficiaram com a prioridade dada às chefes de família, assim como a atribuição conjunta obrigatória de terra aos casais nos assentamentos da reforma agrária. 

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Nos números, essa mudança se torna mais expressiva: enquanto em 1996, o Censo brasileiro registrava apenas 12,6% dos lotes de reforma agrária em nome das mulheres, em 2003-2006, o Sistema de Processamento de Informações da Reforma Agrária (Sipra) apontava média de 25,6%. Em 2007, o número subiu para 55,8%. O artigo Titulação Conjunta da Terra e o Protagonismo das Mulheres na Conquista de Direitos no Campo destaca que os movimentos de mulheres rurais tornam-se expressivos na década de 1980. Primeiro, elas se postam na esfera pública em defesa do reconhecimento de seus trabalhos na agricultura e por direitos trabalhistas. Em um segundo momento, por políticas públicas para produção alternativa e saúde do campo. 

São exemplos deste grupo: Movimento de Mulheres Agricultoras (1983), os Movimentos de Mulheres Trabalhadoras Rurais em diverso estados (1986), e as mulheres do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (1984) – que em 2000 passaram a ter um setor de organização própria – e o sindicato nacional dos trabalhadores rurais, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). A Constituição Federal de 1988 foi a primeira, dentre os países analisados por Carmen, a afirmar que as mulheres também podem ser titulares dos lotes de reforma agrária, independente do estado civil. 

Um ponto de virada neste cenário é a Marcha das Margaridas de 2000, que levou 20 mil mulheres rurais a Brasília. Frente às demandas, foi aprovada a Instrução Normativa 981/2003, que torna obrigatório a adjudicação conjunta aos casais (casados ou em união consensual), e garante que ambos nomes sejam incluídos nas etapas de solicitação de benefícios. Em 2007, a Instrução Normativa nº 38 inclui em seu artigo 3 que “a família chefiada por mulher será incluída e terá preferência, dentre os critérios complementares, na Sistemática de Classificação das Famílias Beneficiárias da Reforma Agrária”.

Conforme a experiência da reforma agrária demonstra, apenas a garantia por leis de redução da disparidade entre mulheres e homens no campo não é suficiente para trazer mais direitos à terra às mulheres. Há também a necessidade de se atentar entre os conceitos “titulação” e “titulação dentro da reforma agrária”, como foi apresentado pelo Movimento Sem Terra (MST) recentemente, ao contestar uma fala de Jair Bolsonaro. 

A devolutiva em questão é referente à fala dita em entrevista ao Jornal Nacional de que o presidente “teria pacificado o MST com a titulação de terras e que as mulheres foram as maiores beneficiadas”. A carta afirma que a titulação a que Bolsonaro se refere é uma ação de privatização, que desvincula as famílias de programas de benfeitorias, crédito e formação, aumentando a vulnerabilidade das mulheres no campo e o assédio do agronegócio sobre os territórios.

A carta ainda destaca que o sucateamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) levou à paralisação completa das políticas de Reforma Agrária e a potencialização dos conflitos no campo, além de estimular o desmatamento e a destruição do meio ambiente”. Para Carmen, é essencial que o novo governo siga com a titulação proposta pela reforma agrária, não discriminando mulheres. “Esperamos que ele (novo presidente) apoie um novo Censo Agropecuário que pergunte quem é o proprietário da terra, por sexo, para que finalmente tenhamos dados para o Brasil sobre a distribuição total de terras e direitos fundiários por gênero”, completa.

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