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Mulheres do Sul Global Constrói Narrativa de Empoderamento a Partir da Costura

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  • Juliana Lima
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Quando lançamos um olhar sobre a vida das mulheres imigrantes e refugiadas no Brasil, nos deparamos com diversos cenários, porém e infelizmente, muitos deles marcados por desrespeito e exploração. Nas confecções de São Paulo, por exemplo, as mulheres ainda ocupam um lugar de invisibilidade dentro da cadeia produtiva de moda, como mostrou um especial do Modefica sobre as mulheres imigrantes na costura e tem sua experiência com as roupas marcadas por opressão e violência.

 
Muitas delas enxergam na imigração uma saída de muitos outros problemas além do trabalho, como a violência doméstica e relacionamentos abusivos. Ao chegar em seus destinos, depois de toda a dificuldade da travessia, essas mulheres enfrentam ainda o preconceito, a pobreza, a exclusão e a dificuldade de tocar a vida.

No caso das mulheres refugiadas existe ainda uma falta de entendimento dos cidadãos sobre o real significado carregado pelo termo ‘refugiado’: pessoas que, por não poderem retornar ao seu país de origem, demandam proteção, que deveria vir não somente do Estado, mas também do acolhimento da própria população local.

Usando a costura em sua melhor forma e indo contra à narrativa atual da história de mulheres imigrantes com costura, o Mulheres do Sul Global tem como objetivo inserir mulheres refugiadas no mercado de trabalho, garantindo a inclusão social e a chance de um futuro próspero e livre – por meio da costura. Por trás do projeto está Emanuela Farias, uma garota carioca de 32 anos que até então vivia uma carreira de assistente executiva em ascensão, mas decidiu romper com o presente para se jogar de cabeça no futuro.

A história do projeto começou a ser escrita na virada de 2014 para 2015, quando Emanuela resolveu tornar real um sonho pessoal antigo. Não mais ocupando o cargo de gerente corporativa na empresa onde estava por 5 anos quis investir, sem hesitar, toda sua reserva financeira para viver um ano sabático na Índia. Lá, ela iria atuar como coordenadora voluntária de projetos no monastério budista tibetano, dentro da The Light of Buddhadharma Foundation e do Sarnath International Nyingma Institute, instituições que seguem a linguagem Nyingma e têm uma sede no Rio de Janeiro, casa frequentada por ela desde 2009.

Refugiados: Pessoas que, por não poderem retornar ao seu país de origem, demandam proteção, que deveria vir não somente do Estado, mas também do acolhimento da própria população local.

Nascida na Zona Norte da capital carioca, em uma família de classe trabalhadora, e morando há 32 anos no mesmo apartamento em Inhaúma, Emanuela já tinha optado por escolhas que se encaixavam em seu padrão social e que poderiam garantir um futuro seguro e estável, como trocar a faculdade de Cinema pelo Secretariado Executivo Trilíngue. Mas nesse momento viu que uma ruptura era necessária e que a viagem poderia resgatar seus impulsos criativos.

365 dias de viagem (pra fora e pra dentro)

Ainda na Índia, Emanuela recebeu a missão de acompanhar a diretora de uma das fundações, o que a colocou em uma posição muito privilegiada para conhecer de perto os projetos que estavam sendo feitos no país. Em sua passagem por Bihar, foi avassalador ver uma verdadeira indústria têxtil a céu aberto, com mulheres costurando na beira das estradas de terra e tudo ao redor desaparecendo em meio à poeira e à precariedade absoluta.

Em outro vilarejo, ela vivenciou famílias que trabalhavam juntas em um mesmo tear; mães, pais e filhos, todos dominados por um único comandante local. A imagem da Índia como templo global da espiritualidade aos poucos foi cedendo espaço para a realidade crua da sociedade local, com mulheres e crianças em situação de profunda vulnerabilidade, muitas vezes envoltas em situações de violência generalizada e abuso.

O que me marcou muito foi a submissão das mulheres aos homens no ateliê, sem direito a fala e à mercê de abusos verbais e físicos.

Emanuela Farias

Dentro do monastério do Sarnath Internacional, Emanuela coordenou as atividades administrativas do ateliê de costura, função responsável por aguçar uma vontade intensa de conseguir usar esse ofício como forma de empoderamento feminino. O que ela precisava descobrir era como construir pontes e tangibilizar suas ideias.

Transformar-se para transformar

Ao desembarcar em um Brasil virado de ponta cabeça, em 2016, Emanuela queria encontrar uma forma de expressar sua experiência enriquecedora para, de alguma forma ainda indefinida, fazer a diferença no país que chamava de seu.

A ideia de aproximação com os refugiados foi imediata pelo que tinha tido a chance de experimentar na Índia, convivendo com monges refugiados do Tibet e entendendo um pouco mais o real significado da busca por uma nova vida em outro lugar que não o seu de origem, além da mídia estar focando bastante nessa temática especificamente.

A experiência de Emanuela na Índia a aproximou rapidamente da costura // Cortesia Emanuela Farias

O primeiro passo foi procurar o PARES Cáritas RJ (Programa de Atendimento de Refugiados e Solicitantes de Refúgio Cáritas do Rio de Janeiro), organização que promove o acolhimento aos refugiados para que possam ser respeitados, integrados socialmente e construam uma vida digna no Brasil. O objetivo dessa primeira aproximação era produzir um documentário sobre as mulheres que saem de seus países para pedirem abrigo à outra nação, o que levou Emanuela resgatar a vontade de fazer cinema, deixada de lado no início da vida universitária. 

Durante o processo inicial de pesquisa, Emanuela ficou a par de uma realidade antes desconhecida por ela: a presença de mulheres refugiadas no Rio estava crescendo muito, a maioria delas vindas do Congo, um país ainda campeão nos índices de violência contra mulheres, apesar da articulação e luta dessas mulheres pela sororidade, solidariedade e direito de comandar seu próprio futuro com participação ativa nas decisões políticas do país.

A partir disso, Emanuela não teve dúvidas do caminho que queria trilhar: fazer um filme só com mulheres refugiadas, que mais tarde viria a receber o título de A Mulher em Travessia. “Quando eu ligava a câmera pra filmar as mulheres, percebi não ser raro as mulheres congolesas me pedirem máquinas de costura. Assim descobri que muitas delas aprendem costura na escola no Congo, e, já vindas com essa profissionalização, elas querem trabalhar com costura aqui no Brasil”, explicou ela. O sonho dessas mulheres, que tinham a costura como uma veia cultural era ter uma máquina de costura para que pudessem exercer a profissão e não terem que trabalhar como faxineiras, que era a função mais oferecida por aqui.

Ao conviver com essas mulheres, residindo em lugares de vulnerabilidade no Rio, ela pôde ver que o preconceito é ainda maior porque a condição de mulher negra africana em situação de refúgio, que chega na cidade sem recursos ou parentes próximos, se mistura com a realidade na qual é inserida, deixando-as à margem da sociedade. Conversar com todas as mulheres que tinham chegado ao Brasil para construir uma nova vida fez Emanuela enxergar as refugiadas sob um novo enfoque, mais amplo, mais profundo e que abria precedentes para um projeto muito maior.

Alinhavando uma nova perspectiva: Mulheres do Sul Global ganha vida

Toda a confluência das informações que estava recebendo não poderia ser coincidência. Foi no exato momento no qual se deu conta disso que viu o Mulheres do Sul Global começar a ganhar forma através do alinhamento entre a costura e as refugiadas angolanas e congolesas com o talento que já trazem de berço.

Antes de dar continuidade à sua ideia de projeto, Emanuela produziu seu documentário no período de agosto a dezembro de 2016. Foi quando terminou de filmar que se preparou para inscrever o Mulheres do Sul Global no Shell Iniciativa Jovem, participando da sabatina intensa de lapidação do projeto nos meses de janeiro e fevereiro de 2017. Assim que foi aprovada, voltou ao Cáritas, em março, e foi convidada para participar do CORES – Coletivo de Refugiados Empreendedores, com grupos de gastronomia e costura. Emanuela passou a ser a mentora das costureiras, o fio condutor que faltava para fazer a relação entre os desafios reais do dia a dia daquelas mulheres com o seu negócio social de empoderamento feminino e econômico através desse ofício.

O sonho de fortalecer mulheres por meio do (re)conhecimento profissional, que começou lá na Índia entre máquinas e tecidos, foi se tornando realidade ao passo que Emanuela começou a construir uma rede e trabalhar junto com quatro mulheres que escolheram acreditar na empreitada, dando as mãos para caminhar ao lado dela. Celina Mayela (Angola), Betty Mvita (Angola), Eveline Bomono (Congo) e Sagrace Menga (Congo), cada uma com sua história, se conectaram para conquistar o que sempre buscaram, através do que sabem fazer de melhor, a costura.

Sagrace, uma das protagonistas do documentário A Mulher Em Travessia, foi uma das mulheres que pediu a máquina de costura para Emanuela para que pudesse fazer o que realmente sabia e gostava, fazendo-a enxergar ainda mais de perto a relação dessas refugiadas com o ofício. Celina, a mais velha do grupo com 42 anos e 5 filhos, se tornou faxineira quando desembarcou no Brasil, mas ser costureira era o que sabia fazer desde a infância e era do que realmente queria viver.

A Celina nunca faltou nem nunca se atrasou aos nossos encontros, e essa perseverança e foco dela, pra mim, são excepcionais

Emanuela Farias

Betti teve a sorte de conseguir uma máquina logo quando chegou ao Rio e desde então costurava roupas de casamento para a comunidade. Sorte essa que Eveline, outra grande mulher integrante do grupo que veio tentar uma nova vida por aqui, não teve. Por isso, uma das primeiras coisas que Emanuela fez foi comprar máquinas de costura para as duas.

A intenção do Mulheres do Sul Global ganhou ainda mais sentido quando todas essas mulheres tiveram a oportunidade de costurar dentro de casa com flexibilidade de horários, já que não tinham como conciliar a atividade de faxineira, por exemplo, com o tempo que precisavam para cuidar dos filhos e acompanhá-los à escola, sem ter parentes próximos que pudessem ajudá-las, além de conseguir também aperfeiçoar suas habilidades nos encontros semanais do grupo.

Esse acompanhamento técnico é, aliás, uma das maiores conquistas do projeto, e a parceria com a costureira Tereza Vitoriano foi um verdadeiro presente para Emanuela. Tereza foi recomendada através de uma chamada no Facebook para ser voluntária da parte técnica. “Foi o encontro perfeito, com uma senhora linda de 65 anos, que começou a costurar sozinha para cuidar dos filhos, trabalhou no Consulado da Itália por 18 anos e num estúdio de moda como modelista e pilotista por mais 20 anos, tendo até já morado na África e trabalhado no Angola Fashion Week”, contou Emanuela.

Desse encontro, Tereza abraçou o projeto e cedeu seu ateliê no Itanhangá para ser a residência oficial do Mulheres do Sul Global, onde as costureiras podem hoje aprimorar seus conhecimentos em acabamentos e têm a chance de costurar em máquinas industriais, uma novidade para elas até então e um dos motivos que as impedia de conseguir empregos em indústrias e confecções no Brasil.

Sonho concretizado: a primeira coleção

A primeira coleção criada pelo Mulheres do Sul Global foi inspirada no segmento da gastronomia, afinal a proximidade desse grupo com as costureiras já tinha ganhado força dentro do CORES. Além disso, a gastronomia é um campo cada vez mais explorado por refugiados, com cozinheiros e cozinheiras mostrando seu talento e se consolidando cada vez mais na capital carioca, como comprova a feira Chega Junto, uma experiência cultural mensal, formada por refugiados e migrantes, que mistura comida, moda e arte de diversos países.

Dessa proximidade, surgiu a ideia de desenvolver vestimentas para chefs de cozinha, como dólmãs, aventais e também toucas, jogos americanos e guardanapos, em um intercâmbio até mesmo dos tecidos. Emanuela descobriu que os familiares das refugiadas que estão no Congo enviam pequenas tiragens de tecidos africanos para que elas possam complementar suas rendas, e decidiu mesclar esses tecidos em alguns detalhes com os vendidos aqui no Brasil, de cores lisas, comprados em pontas de estoque.

Emanuela trocou as mesas de escritório pelas máquinas de costura // Victor Curi
As Mulheres do Sul Global juntas // Yara dos Santos

A coleção foi lançada no último dia 17 de novembro, em um evento de celebração do fim do curso piloto do CORES/Cáritas, com todo valor das vendas revertido para as quatro costureiras e para Emanuela. Essa experiência foi muito especial porque “as deixou muito emocionadas em ganhar dinheiro pelo seu talento nato”.

Futuro premiado e promissor

O Mulheres do Sul Global nasceu e foi modelado por Emanuela neste ano – logo depois de ter terminado o documentário – dentro do Shell Iniciativa Jovem através do aprendizado, da construção do plano de negócios e da troca com os participantes do programa. Foi justamente de lá que veio um dos maiores reconhecimentos até agora: a iniciativa fez parte da edição 2017 da Feira de Negócios e levou o maior prêmio da noite, um cheque de R$ 8 mil para investir no negócio.

Essa foi, na verdade, a primeira oportunidade que tiveram de colocar em uma arara a coleção criada para os cozinheiros antes do lançamento oficial no CORES e, mais do que isso, a primeira vez que Celina, Betti, Eveline e Sagrace viram seu trabalho sendo exibido ao público. “Na hora eu não pensei no prêmio, só pensava naquela troca mágica que estava acontecendo em todos que conheciam o projeto; foi o momento que senti toda a energia de estar fazendo um trabalho que eu verdadeiramente acredito”, conta Emanuela ao relembrar aquele dia extraordinário para todas elas. Ganhar esse incentivo foi, para o projeto como um todo, um novo fôlego e a certeza de que seguir nesse propósito é sim uma escolha certeira.

Emanuela planeja investir o dinheiro para fortalecer a produção, adquirindo máquinas de costura reta e overloque industriais, além do material de costura e de tudo o que for necessário para montar uma infraestrutura adequada dentro da casa de cada uma das costureiras para que elas possam conciliar o trabalho com a sua rotina familiar, otimizando a produção das peças e praticando o que aprendem com Tereza, nos encontros semanais. A renda do que for vendido a partir de agora vai continuar sendo dividida entre as quatro integrantes, vai ajudar nas novas coleções e a trazer mais mulheres refugiadas para o projeto.

O primeiro produto do projeto foram aventais e outras vestimentas de cozinha, pensando em como os refugiados estão se fortalecendo pela gastronomia // Yara dos Santos

O Mulheres do Sul Global também foi premiado no Desafio de Moda Sustentável do ColaborAmerica 2017, um festival que conecta novos modelos econômicos na América Latina e no mundo, por ser uma grande iniciativa de inovação social e economia criativa.

Se depender de Emanuela, Tereza, Celina, Betti, Eveline e Sagrace, o Mulheres do Sul Global, que já tem CNPJ e é uma empresa que opera no sentido de ser autossustentável financeiramente, só tem a crescer, amadurecendo o modelo de negócios, aumentando o portfólio para conseguir realizar vendas diretas e atender encomendas de costura, focando sempre na instrumentalização dessas costureiras para que aprimorem suas técnicas de trabalho.

Emanuela diz que, em breve, elas projetam também desenvolver uma marca de roupa feminina que tenha a identidade delas, e outro grande desejo dela é que essas mulheres possam trabalhar como MEI – Microempreendedores Individuais, o que fortalece ainda mais “a questão do empoderamento econômico atrelado também a incentivar a autonomia da profissão, como a possibilidade de elas terem seu próprio ateliê em casa”.

E isso vai ser apenas mais uma conquista de um sonho que ultrapassou fronteiras para transformar a vida de mulheres que cruzaram o oceano em busca de um futuro melhor, com integração social e acesso a um mercado de trabalho que valorize o talento que elas têm em seu DNA, fazendo valer o que Emanuela costurou: “um negócio social que acolhe essa missão de empoderar mulheres para não somente terem trabalho, mas para recomeçarem suas vidas”.

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