A corrida pelas “fibras sustentáveis”, economia circular, consumo consciente/político e uma dezena de coisas que – ao mensurarmos resultados – não estão se mostrando efetivas (vide crise climática batendo na porta, a aparentemente irrerversível concentração de renda no Brasil, extinção em massa de espécies, aterros sanitários abarrotados, etc, etc, etc) por conta de diversas outras questões que não estão sendo devidamente endereçadas.
Por um lado, procrastino porque há tanto assunto bacana rolando por aqui e muitas outras coisas por vir que não vejo necessidade de falar sobre os enganos sendo proclamados por aí. Por outro lado, tenho evitado trazer alguns enganos à tona porque a tentativa de silenciamento da voz de uma mulher que argumenta é impressionante. Já ouvi de tudo, de “fique calma” a “suas ideias são atrasadas”, numa avalanche de não-argumentos nada construtivos e responsáveis por fazer boa parte da nossa energia vital ser desperdiçada.
Daí o escândalo da marca carioca 3 caiu no meu colo nessa manhã e realmente é impossível procrastinar mais com um caso tão, mas tão emblemático quanto esse. A marca preenchia uma série de requisitos técnicos da lista “isso é sustentável”. Lista essa que há tempos digo para vocês que não existe, mas pela qual há uma enorme ânsia de se ter e fazer. Eu entendo, ter uma lista do que pode e do que não pode é bem mais simples do que realmente botar a cachola pra pensar – e acabar dando de cara num muro enorme chamado “sistêmica econômico” e “estruturas de poder”, e se sentir completamente impotente por não poder passar o cartão de crédito para resolver esses problemas e derrubar esse muro.
Como comprar sustentável? Não tem resposta fácil.
É curioso que o escândalo tenha estourado logo depois do Global Fashion Agenda ter lançado, durante o Copenhagen Fashion Summit, o relatório Pulse of The Fashion Industry 2019, que revela uma verdade indigesta: a indústria de moda não está se mexendo para sustentabilidade e os investimentos e melhorias de quem está fazendo algo, salvo raras excessões, estagnaram. O relatório, mesmo sendo eurocentrado, nos leva a questionar o quanto estamos de fato caminhando e o quanto achamos que estamos caminhando. Ter um sentimento positivo é importante, ignorar completamente a realidade é irresponsável.
Mas como nunca é tarde para começar uma conversa, a divulgação desses dados pelo GFA somados às denúcias sobre a 3 devem nos fazer refletir sobre algumas coisas:
1. É preciso parar de importar o discurso da sustentabilidade e criar o nosso próprio
O Brasil é um país que produz e vende para si próprio quando o assunto é roupa. Pergunte para qualquer pessoa atuando dentro da indústria e do varejo e todas afirmarão sem margem de erro que “o Brasil é uma caso à parte”. Somos tão fora da curva em se tratando de moda, que até o MIT já colou com nossa indústria para entender mais sobre ela.
Em solo nacional, temos de plantação de algodão ao varejo. Importamos muitos tecidos que não são produzidos aqui, de fato, mas, diferente de países da Europa e Estados Unidos, nós ainda temos uma enorme capacidade de produção de roupas. Apenas 14,3% das peças vendidas aqui são importadas (Abit) e micro e pequenas empresas são responsáveis por 39,6% e 28,7% dos empregos diretos no setor da confecção. No varejo, estima-se que só o setor informal seja responsável por 30% (ABVTEX). Isso significa que a realidade das grandes empresas de fast fashion dominando o mercado não é uma realidade nossa. Elas têm relevância exponencial, mas não representam nem 50% do varejo e não estão atuando de forma isolada no mercado brasileiro (ABVTEX).
Isso demanda entender a realidade social brasileira e as complexidades de uma rede produtiva pulverizada, pequena e, muitas vezes, informal. Nós temos, por exemplo, um batalhão de mulheres costurando roupas em casa, 14horas por dia sem benefícios, para o mercado de sua cidade local como forma de ilustrar uma das nossas muitas particularidades. Não adianta só falar de fast fashion quando temos muito mais acontecendo por aqui.
Falar de moda sustentável no Brasil exige que encaremos a desigualdade social cada vez mais gritante e que possibilita uma massa de pessoas estarem sempre numa situação de vulnerabilidade e suscetíveis à exploração.
Exige também falar das heranças do colonialismo, entre elas uma gama de pessoas atuando nessa indústria orientadas pela mentalidade de tirar proveito das desigualdades postas. Pessoas essas que passam longe de ser os CEOs das grandes empresas de fast fashion. São uma classe média (média e alta) brasileira responsáveis por garantir – por meio de como operam seus negócios, de como constroem suas relações, de como educam seus filhos e de como votam – a manutenção das estruturas de poder.
Dentro desse cenário, é preciso construir uma atuação para sustentabilidade orientada pela realidade da nossa indústria – e não do mercado americano ou europeu. Isso significa entender que exigir de empresas de fast fashion que auditem seus fornecedores, como o Ministério Público do Trabalho vem conseguido fazer por meio de multas, sansões e exposição midiática, é importante e pode ajudar a reconfigurar o jogo, mas não mudá-lo por completo. Ou seja, é preciso pluralizar o discurso e atuação olhando para a realidade nacional.
2. “Quem fez minhas roupas” está virando um movimento cosmético
O movimento Fashion Revolution começou uma conversa MUITO importante pra movimentar a indústria da moda e têm diversas atuações imprescindíveis para cutucar o setor e engajar a sociedade na pauta. Porém, o movimento por transparência na moda cresceu e acabou ficando maior que o próprio Fashion Revolution (e isso é ótimo por um lado) e perdendo foco (o qué é péssimo, por outro). A ideia não é (nem nunca foi) saber “quem fez minhas roupas” e pronto. Pelo contrário, é forçar as (grandes) marcas de moda a olhar para sua rede de fornecimento global e sanar os problemas. Tirar o processo produtivo da invisibilidade é um passo para garantir trabalho digno e práticas ambientais menos nocivas na produção dos produtos.
Quem entrava na 3 sabia, pelas etiquetas, quem fez as roupas. A foto de costureiras, modelistas, estilistas estão no site da marca e nas tags dos produtos porque grande parte do processo acontece no quintal da marca. Porém, o que venho dizendo é que saber quem fez minhas roupas não significa que elas foram feitas de forma digna, sem violar direitos humanos, respeitando legislações trabalhistas e questões ambientais. Eu posso ter acesso ao nome, endereço e CNPJ de todas as oficinas que costuraram as minhas roupas, mas isso diz pouco sobre como elas foram produzidas.
Questionar a sociedade da transparência, como nos incita o filósofo coreano Byung-Chul Han, é reconhecer que colocar no mundo um excesso de informações, como temos visto, não significa verdade. Ele nos lembra que transparência e verdade não são coisas idênticas. Até porque, na sociedade da aparência, só é “transparente” o que é belo e/ou positivo. Mostramos o que é conveniente, escondemos o que não é. Isso explica porque marcas e empresas pecam em dialogar quando a crise de imagem bate à porta: elas só sabem aplicar o conceito da transparência quando essa é uma missão simples.
As costureiras segurando a placa “eu fiz suas roupas” em vários casos está se tornando um movimento cosmético e colocando costureiras em posição de modelos não remuneradas, como bem exemplificou uma amiga em trocas de mensagens que tivemos sobre o tema.
Até por questão de logística. Para uma marca com fluxo de produção da 3, seria preciso uma contagem rigorosa de peças e processos para imprimir a quantidade certa de etiquetas, como me alertou um amigo com vasta experiência no varejo. “Você acha que a roupa ia deixar de ir pra loja porque acabou a etiqueta da costureira x? Provavelmente não”. É um fluxo insustentável para ser levado a cabo.
3. Atemporal, slow fashion, matérias-primas sustentáveis…
Há algum tempo, a 3 lançou sua linha “Dif” com materiais reconhecidos como mais nobres e duradouros, como o linho, tentando dialogar com o movimento da sustentabilidade ambiental. Mas todas as peças da marca poderiam se encaixar no conceito “minimalista” e “atemporal”, termos comunmente pregados pelo movimento do consumo consciente como características de sustentabilidade. De fato, um vestido preto da 3 (e de praticamente qualquer marca) pode durar uma vida toda se bem cuidado – uma volta pela loja ou site 3 nos mostra peças que dialogam com as tendências, mas estão longe de serem peças de uma única estação.
O problema é que isso não basta para deter consumismo e imputar sustentabilidade. Soluções técnicas não são suficientes para abalar um problema de conceito. O consumo excessivo é combustível para a economia e crescimento de qualquer negócio que trabalha com produtos. Se não falarmos sobre novos modelos de negócio, modelo econômico, estruturas sociais e produtivas, modelo subjetivo de vida ideal, além de alternativas ao crescimento econômico infinito possibilitado por aumento do consumo, jamais seremos capazes de endereçar a questão de sustentabilidade de fato – independente de matéria-prima, de estética e de um slow fashion que, muitas vezes, na prática, é mais do mesmo.
A 3 é de uma mãe e dois filhos: Guta, Fernanda e Chico Bion. Vinha expandindo, com novas lojas em São Paulo e vários espaços no Rio de Janeiro. Suas roupas não são caras, nem baratas (um vestido custa, em média, R$ 150) e fazem sentido pra um monte de gente querendo consumir roupas feitas no Brasil, com aparente senso de responsabilidade e estética atemporal. Em 2016, eles já anunciavam crescimento de 300%. No inbox do nosso Instagram, recebemos vários comentários de pessoas indignadas, se sentindo até mesmo traídas, pela marca. Faz sentido, a 3 se vendeu de uma forma que ela nunca foi: plural, colaborativa, jovem e com outra mentalidade, ética e interessada em sustentabilidade. O escândalo de racismo, gordofobia, semanas sem folga, falta de papel higiênico, água e uniforme fez muita gente se sentir culpada por ter uma peça da marca no guarda roupa.
Em sua nota de resposta em seu perfil do Instagram, a marca adotou um tom de negação – outro erro de uma má gestão de crise. Agora é o momento de ser transparente de verdade, assumir os erros e desenhar compromissos para mudança total. É difícil, visto que é uma marca familiar e são os valores da família que orientam o negócio, mas não é impossível. Não é hora de falar de compliance, isso deveria ter sido feito antes. É hora de falar sobre assumir responsabilidades e se livrar dessa mentalidade vexatória.
Mas o que esse acontecimento tem de positivo é que ele pode abrir um diálogo importante sobre a nossa indústria da moda e suas particularidades, como o fato dela ainda carregar a mentalidade de exploração do Brasil colônia. Falamos muito sobre isso no último episódio do Backstage, e vamos falar ainda mais. Não há como pensar em moda sustentável sem olhar pra realidade brasileira e sem questionar em quais conceitos ela está fundamentada. A 3 se vendia como nova, mas simboliza a tradição mais antiga de desumanização da moda.
Não me surpreenderia descobrir que, enquanto a 3 se vende como representativa e plural, a família proprietária esteja alinhada com governantes que querem acabar com legislação ambiental e trabalhista, edução para todos e todas, direitos para minoriais sociais e a coisa toda – assim como grande parte da indústria e suas associações setoriais. Talvez o maior erro do movimento da moda sustentável seja dizer que o consumo é político – e não que a moda é política. Seguimos.