Essa é uma daquelas informações que se tornam verdades absolutas apenas pelo fato de terem sido repetidas muitas e muitas vezes. Porém, a verdade é que não se sabe de fato o quanto a indústria da moda é poluente. Estima-se que ela esteja em 5º lugar, mas ainda não é uma informação oficial porque essa conta faz um comparativo apenas das emissões de carbono.
A primeira vez que desconfiei haver algo errado com essa informação foi quando assisti Cowspiracy, o documentário que aborda os impactos da pecuária no meio ambiente. O que nós sempre ouvimos é que a moda só não é mais poluente que a indústria do petróleo, mas em Cowspiracy Kip Andersen nos dá indícios suficientes que a pecuária chega a ser mais impactante que a própria indústria do petróleo. Em se tratando de produção de animais para consumo, há total concenso sobre o quanto o impacto e a devastação ambiental está relacionado com nosso consumo de produtos de origem animal. Não à toa, diminuir nossa ânsia por esses produtos é a ação número um para combater as mudanças climáticas.
Mas se a pecuária e o petróleo andam juntos no quesito de impactos negativos, como poderia a moda ficar em segundo lugar? Procurando fontes seguras que apoiasse a informação que a moda é a segunda indústria mais poluente do mundo, não consegui achar nada além de citações de citações. Nenhuma fonte, estudo ou pesquisa. Nada. Todos nós sabemos que se não há fontes, há grandes chances daquilo não ser verdade. Então eu decidi não repetir mais essa informação até que eu tivesse uma fonte segura na qual me apoiar.
Mas Não Há Fontes
Na semana passada, a blogueira Alden Wicker, do EcoCult, um dos principais nomes responsáveis por comunicar moda e sustentabilidade hoje escrevendo para sites como Refinery 29, Quartz, Newsweek, entre outros, escreveu um artigo sobre “14 Mitos da Moda Ética e Sustentável que Precisam Morrer” e o mito da moda ser a segunda indústria mais poluente é um deles.
Tudo começou com um press release soltado acidentalmente pelo Danish Fashion Institute com essa informação. Rapidamente ela foi absorvida e repassada por pessoas da indústria e agora é replicada em todos os lugares, mesmo após o Instituto ter tirado o press release de circulação. “Nós também não acreditamos que essa informação é precisa, mas nós estamos conscientes que ela se tornou um mal-entendido popular”, disse o Danish Fashion Institute em resposta. “No entanto, nós podemos dizer que a moda é uma das indústrias mais intensivas em recursos do mundo, tanto em termos de recursos naturais quanto em termos de recursos humanos”.
Outra pessoa com a qual Wicker falou sobre o mito foi Jason Kibbey, CEO da Sustainable Apparel Coalition, uma união de empresas e pessoas por uma indústria de moda, acessórios e decoração mais sustentável. Kibbey explicou que “o relatório ao qual essa informação foi associada foi removido por seus autores e o instituto de moda dinamarquês tem tentado consertar essa informação, uma vez que foi acidentalmente usada em uma comunicado de impressa. […] É muitas vezes citado, e poderia teoricamente ser verdade, mas neste momento eu não tenho quaisquer fatos credíveis para avaliar onde a indústria da moda estaria no ranking”.
Se Parece Verdade Então É Verdade
Há muitos mitos em torno da moda que realmente por se parecerem verdade, se tornam verdade. Os números da indústria realmente não são bons, mas muitos deles são imprecisos. E isso é um problema. Se pegarmos a informação que 17 a 20% da poluição da água pelas indústrias provém de tingimento e tratamento têxtil, nós vamos andar em círculos e cair sempre num site que está fora do ar (airdye.com/about/how).
Como a própria Wicker destaca em seu artigo “Nós Não Temos Ideia do Quanto a Moda É Ruim”, “outro fato flutuando no ar diz que a moda representa 10% das emissões globais de carbono. Isso foi tirado de um artigo de 2010 da Textile World, escrito por um vendedor italiano de equipamentos têxteis. Mas é realmente referenciando toda a indústria têxtil, não apenas a moda, o que poderia incluir tapetes, roupas de cama, cintos de motor, tapetes automotivos, e todo o tipo de outras coisas para muito além da moda. E não há como saber se é verdade – quando o Textile World mudou de administração, os registradores de verificação de fatos foram perdidos e o autor deste artigo não respondeu às minhas mensagens”.
Trabalhadores em um dos quatrocentos curtumes de Kanpur. A maior parte dos resíduos é jogado diretamente no Ganges sem tratamento // Foto: Daniel Bachhuber
Outra informação que causa controversas está relacionada ao uso de agrotóxicos na produção de algodão. Segundo o WWF, 2.4% do total de terras férteis no mundo é usada para plantação de algodão, ainda assim essa pequena quantidade é responsável por 24% das vendas de inseticidas e 11% das vendas de pesticidas. Mesmo sendo um fato que as plantações de algodão consomem muitos agrotóxicos, é difícil achar qualquer outra fonte que suporte esses dados e um dos principais relatórios sobre os custos do algodão para as pessoas ou meio ambiente não cita números totais capazes de dar qualquer indício que o WWF está sendo preciso.
A informação mais recente e precisa é do relatório The Pulse Of The Fashion Industry, iniciativa da Global Fashion Agenda e The Boston Consulting Group, afirma que o algodão é responsável por cobrir 3% das terras férteis do mundo, com uma produção consumindo estimadamente 16% dos inseticidas e 7% dos herbicidas globalmente.
Nós sabemos, por exemplo, que o curtimento do couro é um dos processo mais poluentes criados pela humanidade, que o algodão é sedento, consome muita água, terra para plantio além de pesticidaas, inceticidas e herbicidas. Nós também sabemos que a viscose é altamente poluente e prejudicial, assim como o poliéster, que a criação de ovelhas para produção de lã representa igualmente devastação ambiental e crueldade animal, que o descarte têxtil é um problema real. Além disso, numa cadeia de suprimentos global, nós também sabemos que as matérias-primas, aviamentos, tecidos e peças são enviados de um lado para o outro muitas vezes via avião causando grande impacto ambiental, e assim por diante.
Mas a indústria da moda é complexa e envolve outras indústrias em um processo fragmentado – significando, por exemplo, que a indústria têxtil, do couro, química, de produção de matérias-primas não servem e não são servidas apenas pela moda – o que torna muito difícil analisar o cenário como um todo e praticamente impossível criar um ranking comparativo com outras indústrias sem pesquisas exaustivas. Essa falta de dados sólidos só nos mostra o quanto a moda foi subestimada durante anos e anos como indústria relevante em diversas frentes – inclusive na de poluição e impactos socioambientais.
Nós precisamos de fontes, números e dados para apoiar nossas ações e precisamos que eles sejam o mais acurado possível. Precisamos de informações confiáveis para quem se opõe ao nosso discurso de necessidade de mudança não ter por onde descredibilizar a nossa pauta. Então, do lado de cá, o que eu aprendi com esse mito foi a necessidade de ter muito cuidado ao reproduzir fatos mesmo que eles pareçam verdadeiros e que haja uma sincera boa intenção ao abordá-los, principalmente quando estamos em uma posição de credibilidade e até mesmo liderança. Checar duas vezes, procurar outras fontes e garantir que a informação está correta é essencial para apoiar nossas ações e decisões rumo a construção da moda – e do mundo – que queremos.