Como a moda contribui para o colapso climático? O relatório Measuring Fashion: Environmental Impact of the Global Apparel and Footwear Industries Study, elaborado pela consultoria Quantis, atribuiu à indústria da moda cerca de 8% de todos os gases de efeito estufa emitidos em 2018. Em 2017, o relatório Pulse of the Fashion Industry, lançado pela Global Fashion Agenda, já tinha colocado a moda como responsável por 5% das emissões de CO2 durante o ano de 2015 – porcentagem 21 vezes maior do que os setores de aviação e navegação combinados, totalizando 1.2 bilhão de toneladas de CO2.
Com o aumento da produção estimada para 2030, a contribuição da moda para o colapso climático deve aumentar 49% segundo estimativas da Quantis e 63% segundo estimativas do Global Fashion Agenda (GFA). De um jeito ou de outro, se a moda (junto com outras indústrias) não limpar seus atos, é difícil imaginar um cenário onde não ultrapassemos o teto de 1.5ºC estimados no Acordo de Paris. Para se manter dentro desse limite, as emissões globais deveriam ser reduzidas em 45% até 2030 e zerar até 2050.
Couro e lã: nem amigos dos animais, nem amigos do planeta
Todos os relatórios sobre o impacto da indústria da moda destacam que a maior concentração de emissões de CO2 está na fase de produção da matéria-prima. A fase de produção abrange do berço ao portão de fábrica (cradle to gate) 1 Do berço ao portão é uma avaliação de um ciclo de vida parcial do produto, da extração de recursos (berço) ao portão da fábrica (ou seja, antes de ser transportado para o consumidor). . Produção da fibra, preparação dos fios, preparação do tecido, e tingimento e acabamento compreendem a análise do berço ao portão.
Vamos pegar o couro, a matéria-prima responsável pela maior emissão de gases de efeito estufa entre todas as matérias-primas mais utilizadas pela indústria. O couro utilizado na moda geralmente vem de vacas ou de pequenos ruminantes, como cabras, ovelhas e porcos. A pecuária está relacionada a altos níveis de emissão de gás metano, um gás 20 vezes pior quando comparado ao CO2 no impacto climático. No Brasil, responsável por exportar US $86 milhões (cerca de R$ 360 milhões) em couro em agosto, a pecuária está relacionada ao desmatamento e emissões de CO2: 70% dos gases de efeito estufa no Brasil têm origem na pecuária e desmatamento, principalmente da floresta Amazônica e do Cerrado.
Na pesquisa The Role of Small Ruminants on Global Climate Change foi destacado que a criação de ovelhas e cabras corresponde com cerca de 6.5% das emissões totais de CO2. No mundo todo, ovelhas e cabras correspondem a 56% da população mundial de ruminantes. Em 2017, o Brasil somou um rebanho de 17 milhões de ovinos com uma das contribuições nas emissões globais mais significativas junto com Nova Zelândia, Reino Unido, Austrália, Mongólia e França. Dessa forma, não podemos deixar de lado a criação de ovinos para a produção não só de couro, como também de lã e sua contribuição para o colapso climático.
Para além da fase de criação e abate, há todo a fase de processamento do material. O relatório da Quantis destaca que “analisando detalhadamente o impacto da produção de sapatos de couro, o processamento de matérias-primas é responsável por cerca de 50% do seu impacto. Dentro dessas etapas de processamento, e dependendo da categoria de impacto, o curtimento gera de 5% a 35% das emissões de carbono emitidas por sapatos de couro”. O Pulse of The Fashion Industry coloca o couro de vaca em terceiro lugar no ranking de matérias-primas que mais emitem gases responsáveis pelo colapso climático, atrás da seda e da lã respectivamente. O impacto do couro varia de acordo com seu tipo e origem, como o animal foi criado e como foi o processo de curtimento. Uma variável parecida pode ser aplicada à produção de lã.
Materiais alternativos serão necessários para diminuir as emissões de gases de efeito estufa pela indústria da moda. O material sintético, comumente feito de poliuretano, tem apenas um terço do impacto ambiental do couro de vaca, por exemplo, e alternativas que prometem ser ainda mais ecológicas, livres de petróleo, e melhores de trabalhar, prometem chegar ao mercado em breve, como o couro de laboratório.
Algodão e poliéster: o papel das duas principais fibras da moda no colapso climático
Para além da lã e do couro, é preciso considerar as duas fibras mais utilizadas na moda: algodão e poliéster. Ambas têm uma relação estreita com o colapso climático. A começar pelas plantações de algodão, cuja configuração exige um uso intensivo de agroquímicos como pesticidas, herbicidas e fertilizantes. Este último, tem origem no gás natural e é responsável por liberar óxido nitroso durante o uso, um importante gás de efeito estufa, com um potencial de aquecimento global 298 vezes maior quando comparado ao CO2. As concentrações de óxido nitroso mostraram crescimento contínuo na atmosfera no último século – e fertilizantes e adubos nitrogenados (N) aplicados em solos agrícolas são a principal fonte de emissão antropogênica.
É importante também olhar para outras fontes que podem contribuir para o colapso climático e nem sempre são consideradas. O Brasil, um dos 5 maiores produtores de algodão no mundo, abriu campo e desmatou o Cerrado para entrar com as plantações – em 2016, 11% das emissões brasileiras de CO2 vieram da devastação da Savana. Embora uma vez devastado essas emissões não se repitam, abrir novos campos significa novas emissões. Do mesmo modo, o uso de equipamentos movidos a combustíveis fósseis, como aviões para pulverização de agrotóxicos e grandes máquinas, igualmente, não deve ser desconsiderado.
Já o poliéster, comumente feito a partir do petróleo, tem uma pegada energética importante, tanto na fase de extração quanto de processamento. Estima-se que 8% de todo petróleo utilizado no mundo é destinado à produção de têxteis, sendo 4% para produção das fibras em si e 4% em energia despendida para essa produção.
Apesar do algodão e o poliéster aparecerem abaixo de outras fibras no ranking dos maiores contribuintes para as mudanças climáticas no relatório da GFA, é preciso considerar o volume. Em 2017, segundo o relatório Preferred Fibers & Materials, da Textile Exchange, foram produzidos cerca de 53 milhões de toneladas de poliéster e 22 milhões de toneladas de algodão, o que representaria 51 e 24% de todas as fibras produzidas respectivamente.
O relatório A New Textile Economy, da fundação Ellen Macarthur, traz estimativas de produção anuais ligeiramente menores: 18 milhões de toneladas de algodão e 45 milhões de toneladas de fibras plásticas. Considerando esse volume, as emissões globais para produção e processamento destas fibras seriam de 86 e 530 milhões de toneladas de CO2 respectivamente. É válido ressaltar, porém, que estes dados são estimativas não exatas, mas ajudam a dimensionar o impacto da indústria da moda em se tratando de colapso climático e revelar o papel da produção de novas matérias-primas nessa conta.
Para diminuir a pegada de CO2 de ambas as fibras há alguns caminhos indicados nos relatórios mencionados: uma produção de algodão agroecológica, capaz de restaurar áreas degradas e reter CO2 no solo e contribuir positivamente para mitigação dos impactos das mudanças climáticas; reciclar tecidos (se atentando, porém, para os impactos do processo e entendendo quando, de fato, a reciclagem é uma alternativa menos impactante); e, melhor ainda, reutilizar matérias-primas . Porém, e acima de tudo, é preciso mudar modelos de negócios baseados na produção e venda exponenciais.
A única saída possível é produzir menos
Trouxe à tona 4 matérias-primas utilizadas na moda para exemplificar a relação desta indústria com o colapso climático, pontuando as fases do berço ao portão com emissões significativas. Porém, todos os tecidos têm impactos que precisam ser considerados e que vão além da emissão de CO2, como a liberação de microplásticos dos tecidos de plástico e o uso intensivo de químicos na produção da viscose, por exemplo. Além disso, é preciso computar também as emissões de logística; a demanda indireta por outros produtos, como sacos plásticos para embalar as roupas e fazer etiquetas, além das sacolas; emissões dos escritórios e das lojas; toda a engrenagem da publicidade, com suas semanas de moda inclusas, e a fase de uso e descarte, quando as peças são incineradas ou vão para aterros sanitários e lixões. Na fase de uso, segundo relatório da Ellen Macarthur, estima-se que a lavagem e secagem de roupas emitam, sozinhas, 120 milhões toneladas de gases de efeito estufa equivalentes em CO2.
Encontrar substitutos “sustentáveis” para as matérias-primas, desenhar palmeiras nas roupas, usar PET reciclado, comprar o direito de poluir por meio do pouco sério mercado de carbono, por exemplo, não vão dar conta de mitigar, muito menos reverter, as mudanças em fluxo. Nada disso tem se provado efetivo para endereçar a realidade do colapso climático que se impõe. A lentidão em tomar atitudes sérias tem suscitado chamadas mais duras. Recentemente, o grupo londrino Extinction Rebellion pediu o fim da Semana de Moda de Londres e tem dedicado parte da sua atuação à pressionar a indústria da moda, num movimento global de boicote.
O que as corporações precisam fazer é encontrar caminhos para escapar da ideia de que é possível garantir equilíbrio ecossistêmico num modelo de crescimento infinito e produção ilimitada. A maior parte das empresas de moda tem falado sobre sustentabilidade, mas bem poucas têm tomado ações para mudanças efetivas. Ainda que a indústria tente, não é mais possível falar sobre sustentabilidade de forma séria sem encarar o debate sobre mudar a forma de fazer negócios. E isso não é sobre custo ou lucro para as empresas. Quem quer ser respeitado por sua atuação, não pode mais se dar ao direito de se preocupar somente com sua distribuição de dividendos (e com a retórica de geração de empregos), embora a questão climática já tenha mostrado seu impacto sobre os lucros há algum tempo. Este debate é sobre o futuro de bilhões de seres humanos e não-humanos e a qualidade de vida na Terra.