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Nós Precisamos Falar Sobre as Mulheres Por Trás das Nossas Roupas

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  • Marina Colerato
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Não importa se você gosta ou não de moda, fato é que você compra roupas - poucas ou muitas - para se vestir diariamente. Sua compra impulsiona um mercado cujo valor estimado é de três trilhões de dólares e faz a engrenagem da indústria girar. Indústria essa que é responsável por empregar cerca de 40 milhões de pessoas das quais 85% são mulheres. Nesse Dia Internacional da Mulher nós precisamos falar sobre a roupa que nos veste, sim.

São mais de 30 milhões de mulheres produzindo nossas roupas, e nós já temos amplo conhecimento de como a cadeia de produção de bens de consumo, incluindo a da moda, é cruel. Então por que nós, enquanto feministas, temos falhado em lutar com essas mulheres por melhores condições de trabalho? Por que continuamos comprando roupas produzidas de maneira lamentável? Por que simplesmente não falamos mais sobre isso? Estamos prontas para nos aliarmos às mulheres operárias ou nos manteremos satisfeitas com camisetas feministas feitas sob condições duvidosas?

Não é de hoje, e também não é por culpa exclusiva do sistema de fast fashion atual, que as mulheres trabalhadoras por trás das máquinas de costura são exploradas pela indústria. Desde a invenção da linha de produção, mulheres fazem a moda acontecer de maneira desumana. O próprio Dia Internacional da Mulher é uma prova disso. De certa forma, a data busca relembrar as 129 mulheres (ou 123, o número varia) que morreram no incêndio da Triangle Shirtwaist Company em Nova Iorque, no dia 25 de março de 1911. A Triangle Shirtwaist Company produzia blusas femininas, conhecidas na época como “shirtwaist”.

Ao lermos os relatos dessa data, percebemos o quão parecidos eles são com os relatos do desastre do Rana Plaza, em Bangladesh, em 2013. “Saídas de incêndio fechadas para evitar furtos”, “máquinas amontadas sem espaço suficiente não permitindo a devida circulação de pessoas”, “prédio já autuado por má condições”. A história se repete, e na verdade se repete desde antes de 1911. Na virada do século passado, mulheres já lutavam por melhores condições de trabalho na indústria têxtil nos EUA. Em 1909, a maior greve por melhores condições de trabalho e melhores salários, conhecida como Uprising of The Twenty Thousand, juntou mais de 15 mil trabalhadoras nas ruas de Manhattan e logo se espalhou por todo o país 1Stiched-Up – Tansy E. Hoskins (pág 73).

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Manchete de jornal de Nova Iorque sobre o incêndio da Triangle Shirtwaist Company

Hoje, como podemos notar, as mulheres dessa indústria ainda lutam. No mundo todo, as condições de trabalho das mulheres responsáveis por fazer nossas roupas continuam muito parecidas com as condições relacionadas ao dia Dia Internacional da Mulher, mais de um século atrás. E ao contrário do que podemos imaginar, elas permanecem resistindo e não aceitam passivamente. Juntas, elas se organizam por condições melhores de trabalho, mas sofrem abusos e ameaças, são silenciadas e seus direitos continuam sendo violados.

Essa realidade nos faz lembrar que precisamos sim falar sobre o direito de andar nas ruas sozinhas e com segurança, o direito ao aborto seguro, o direito de usar a roupa que mais nos agradar sem nos sentirmos ameaçada e sermos culpabilizadas por isso, mas nós precisamos também olhar além da nossa realidade e fortalecer o coro das mulheres que ainda são privadas dos direitos humanos mais básicos. Como Kimberlé Crenshaw relembra, a interseccionalidade no movimento feminista não pode mais esperar.

Eu definitivamente não tenho todas as respostas para as perguntas do começo do texto, mas acredito, sem hesitar, que estamos fazendo pouco para tentar acha-las e por isso estamos longe de termos soluções para elas. Quando digo fazendo pouco, não estou me referindo à maneira como compramos. É claro que sim, devemos repensar nossos hábitos de consumo e ainda preferir comprar de marcas cuja produção é alinhada com nossos valores, marcas responsáveis por valorizar e tentar ajudar no empoderamento social de suas trabalhadoras. Quando não podemos arcar com o valor mais alto dessas peças, nós também podemos recorrer a nossa rede de amigas para pedir algo emprestado para um evento especial ao invés de ir correndo à Forever 21 atrás de uma “roupa baratinha”.

Mas o problema da moda não vai ser solucionado apenas com compras melhores por uma parcela de pessoas que pode arcar com isso. Por mais que nos esforcemos para “votar com nosso dinheiro”, nós precisamos mesmo é nos esforçar para entender o problema e mudar o sistema operante. Só assim, as mulheres na Índia, nos países da África, ou seja lá onde for, vão ter qualquer chance real de melhores condições de vida e trabalho.

Entretanto, para entender o problema precisamos estar abertas a debate-lo, precisamos tentar, mesmo que de longe, nos propor a conhecer as realidades que parecem alheias a nós, mas na verdade estão bem perto, ali pendurada no nosso cabide ou repousando na nossa sapateira. Precisamos buscar e incentivar iniciativas, organizações, sindicatos espalhados pelo globo responsáveis por fortalecer a luta de melhores condições de trabalho para as trabalhadoras.

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Resgate de corpos nos escombros do Rana Plaza

Ao mesmo tempo, é necessário entender como a moda e o sistema capitalista estão intrinsecamente ligados e são co-dependentes. Nenhuma indústria tem tanta capacidade de fortalecer a economia do enriquecimento pessoal e da valorização da crença de “possuir” acima de “ser” como a moda. Desde quando nos entendemos como sociedade, a moda é capaz de separar as pessoas hierarquicamente pelo que elas vestem – ricos e pobres, monarquia e plebe2 O Império do Efêmero – Gilles Lipovetsky (pág 39)]/note]. Para um sistema de moda justo, nós precisamos ir contra o sistema econômico que permite uma moda centralizada, feita e dominada por meia dúzia de conglomerados, sempre buscando o enriquecimento dos seus CEOs e acionistas a custos das pessoas e do meio-ambiente.

Feminismo é sobre isso também, é sobre moda, indústria e sistema de produção do que compramos todos os dias. É refletir sobre o que significa compartilhar campanhas bem feitas de marcas responsáveis por explorar mulheres na sua linha de produção sem levantar questionamentos. Se nós não nos importarmos em unir nosso discurso às nossas práticas reais, mesmo que elas nos tirem da nossa zona de conforto, pouco vamos nos diferenciar do homem que dá flores no dia das mulheres, mas se acha melhor do que a companheira de trabalho. Se continuarmos nos defendendo por usar roupas feitas por mulheres abusadas e violadas, estaremos ignorando incoerências prejudiciais a todas nós.

Nosso olhar não pode ser míope, não podemos enxergar apenas as desigualdades que nos favorecem e não podemos aceitar comprar “trabalho escravo” porque “é a única coisa que eu posso comprar”. Então, pare um momento, respire, reflita e tire um tempo para se informar sobre como você pode fazer a diferença quando o assunto são mais de 30 milhões de mulheres fazendo nossas roupas.

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