Esse cenário ficou apenas na memória. Tudo mudou no dia 5 de novembro de 2015, com o rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana (MG), sob responsabilidade das mineradoras Samarco, Vale e BHP. O rompimento despejou 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro. O tsunami de lama varreu os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo – onde vivia a família Cerceau – causando a morte de 19 pessoas e dezenas de animais. Nos dias seguintes, a lama seguiu o curso das águas até o mar, espalhando rejeitos tóxicos ao longo de toda a bacia do Rio Doce. O rompimento da barragem é considerado o maior desastre socioambiental já registrado no Brasil.
Os modos de vida da população local foram totalmente alterados. Para retomar os antigos costumes seria preciso recuperar o contato com a terra e as atividades rurais. “É uma história de vida, né? Meu pai aprendeu com o pai dele a trabalhar no campo, a lidar com o gado, a plantar, e assim tirar o sustento da família. A minha mãe também cuidou da horta e auxiliou o meu pai no curral a vida toda”, relata Naife Cerceau. Ela conta que apesar de a lama não ter entrado na casa da sua família, seus pais ficaram em uma situação de total isolamento, pois grande parte dos moradores precisou abandonar o distrito. Já não era possível contar com o trabalho dos vizinhos ou com o dinheiro da venda dos produtos. “O queijo estava apodrecendo, eles tinham que jogar fora”, lembra.
À medida que o tempo passava, cresciam os custos com os animais e diminuía o retorno financeiro, criando um ciclo vicioso de endividamento e ansiedade. Assim como outras tantas mulheres, Naife começou ali uma batalha para garantir os direitos dos seus pais e dos animais que pertenciam a sua família, a fim de retomar o antigo modo de vida.
A luta por reparação
Assim como as pessoas, os animais que sofreram com os impactos do rompimento da Barragem de Fundão possuem o “status de atingido” e têm direito à reparação. Desde 2017, porém, famílias relatam o descumprimento dos acordos e consequente situação de maus-tratos a que seus animais são submetidos. Esses relatos foram agrupados em uma denúncia coletiva enviada em janeiro deste ano para o Ministério Público de Minas Gerais. A denúncia foi realizada por meio da assessoria técnica às atingidas e atingidos da Cáritas Regional Minas Gerais (Cáritas-MG).
O documento pontua o descumprimento de uma série de acordos por parte da Fundação Renova, entidade criada pelas mineradoras para reparar os danos aos atingidos. A principal reclamação é sobre o fornecimento de comida insuficiente ou inadequada, que tem causado fome e até morte de animais. “A Fundação tem que entregar feno e silagem. Às vezes entrega, às vezes não, e os atingidos não podem esperar que os animais fiquem com fome, então eles acabam comprando por conta própria, o que é caro e difícil de achar aqui na região”, relata a assessora técnica com formação em Engenharia Agronômica da Cáritas-MG, Paôla Campos.
No final do ano passado, a Fundação Renova alterou de forma unilateral o acordo que prevê o envio de alimentos. Foi preciso apresentar vídeos de animais desmaiando de fome para que a entidade retomasse o fornecimento habitual. Marília Silva*, atingida do distrito de Bento Rodrigues, ficou duas semanas sem milho e teve de alimentar suas galinhas com a lavagem dos porcos: “eu tive que ligar pra eles e fazer um vídeo, pra eles verem que minha criação tava com fome, sabe? Aí eles liberaram o trato. Mas porque eu reclamei muito”.
Outra queixa frequente diz respeito à infraestrutura para os animais. Como as moradias das famílias atingidas seguem inacabadas, as pessoas estão morando em casas alugadas pela Fundação Renova, na cidade de Mariana ou em distritos próximos. Muitos terrenos não têm espaço para receber animais de grande porte, como cavalos e vacas. Nesses casos, os animais são encaminhados para a Fazenda do Castro, em Barra Longa, sob tutela da Fundação Renova.
Além da saudade dos animais – que ficou mais forte com a chegada da pandemia da Covid-19, devido à restrição dos dias e horários de visitação –, as atingidas vivem sob a incerteza do tratamento que os animais recebem. “Hoje mesmo mandaram uma foto pra mim que me surpreendeu. Tem animal que tava bonito e hoje tá mostrando a costela, tudo magro. Tenho 11 animais lá, tudo mal cuidado”, lamenta Marília.
Para garantir uma casa com espaço para o cuidado dos animais, alguns atingidos tiveram que entrar na Justiça, como fez a família Cerceau. “O pessoal da Defesa Civil falou que iriam alugar uma casa pro meu pai em Mariana e ele falou que não, porque em Mariana não cabiam as vacas, as galinhas, os cachorros. Foi muito difícil porque precisou de uma ação judicial”, conta Naife. Ela lembra que, no dia da audiência, seu pai estava tão nervoso que não conseguiu falar. “Parecia que ele era o réu, o culpado, e a empresa que era a boazinha”, afirma. Ao perceber a situação, a juíza permitiu que Naife falasse em nome do seu pai. Ao fim da audiência, ela conseguiu que a Renova alugasse um sítio para a família.
Cotidiano (in)comum
A falta de condições justas para a retomada dos modos de vida limita a realização de atividades essenciais ou complementares à sobrevivência. Além de prejudicar a vida econômica das atingidas, essa situação também impacta na saúde física e psicológica das mulheres, que estabelecem um forte vínculo de comunidade a partir das relações sociais com a vizinhança. “Muitas mulheres desenvolviam atividades produtivas características da zona rural: plantavam hortas, criavam animais, mexiam nos jardins. Elas também organizavam festas religiosas, cozinhavam juntas e trocavam saberes, coisas que hoje se perderam com o distanciamento das moradias na cidade”, afirma Paôla.
Naife conta que, após o rompimento da barragem, sua mãe entrou em depressão: “ela chorava muito. As mulheres que iam lá em casa trabalhar eram as amigas da minha mãe, eram as pessoas que ela tinha contato, que conversavam sobre a vida, falavam dos casamentos, dos filhos. Uma era a psicóloga da outra. E, de repente, não tinha mais ninguém indo lá”. Ela conta que a mudança para o sítio foi benéfica para sua mãe, que voltou a conviver com outras pessoas.
O isolamento forçado também causou uma série de problemas para Marília, que agora depende de remédios controlados. “Eu quase tive um infarto há pouco tempo, por causa dos problemas da minha casa”, relembra, “eles não estavam fazendo do meu jeito, aí eu fiquei nervosa e passei mal. Eu não tomava remédio, não tomava nada! E eu trabalhava dia e noite, pergunta o povo lá que via minha lida”. A atingida afirma que conhece muitas mulheres que também passaram a tomar remédio controlado após o crime da Samarco.
Marília perdeu o gosto até pelas cavalgadas, uma das suas grandes paixões. “Antes a gente juntava a turma, porque no Bento [Rodrigues] a amizade nossa era muita, graças a Deus. Toda vida foi, né? Mas agora a gente não tem isso mais porque cada um foi pra um canto, aí não tem como ter contato com todo mundo pra tá fazendo o que a gente fazia antes”, conta. Hoje, Marília é só saudades: “vou falar com você, eu sinto muita falta das minhas criações, porque é uma coisa muito boa, você se diverte muito, brinca, passeia. Hoje aqui tá muito difícil”.
*A atingida preferiu não se identificar.
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