Sem dúvidas, mencionando Alex Lemille, “repensar e redesenhar nosso modelo econômico com base na constante reutilização de nossos recursos já extraídos é uma modernização definitiva e uma evolução positiva da economia padrão”. Mas tenha cuidado. Apenas propor a reutilização de materiais ou produtos não é, a longo prazo, sustentável quando pouca ou nenhuma atenção é dada às fibras e processos, seus impactos ambientais, à conexão com o design de produtos e ao final do ciclo-de-serviço. Para que, efetivamente, a sustentabilidade e, consequentemente, a circularidade ocorram, todas as fases do processo precisam ganhar devida atenção ao pensarmos em novos produtos.
Na verdade, considerando a definição da palavra sustentável – que se pode manter por longo prazo sem esgotar recursos ou causar sérios danos ao meio ambiente – não podemos dizer, por exemplo, que roupas feitas com algodão convencional são as mais sustentáveis apenas por estarem sendo reutilizadas. Na verdade, elas são uma extensão dos modelos lineares atuais, um loop no meio do caminho que, ao final, provavelmente acabará em um aterro sanitário ou incinerador.
Um estudo publicado pela organização inglesa WRAP, “Textiles Market Situation”, já indica que a situação do mercado para coleta e reutilização/reciclagem de têxteis no Reino Unido está se contraindo rapidamente, o que gera o risco de aumentar a proporção enviada para aterro e incineração, desperdiçando oportunidades ao benefício ambiental e econômicas.
Pensando nas estratégias escolhidas pelas empresas e até que ponto elas podem ser consideradas sustentáveis, lembrei-me de uma conversa que tive há alguns anos sobre a coleção de uma conhecida marca de jeans feita com fibras produzidas a partir de plásticos coletados do oceano (ou tantos outros exemplos com práticas semelhantes). A marca atua de forma exemplar em muitos aspectos e não coloco questionamentos sobre suas múltiplas alternativas sustentáveis. Na época, as questões, em geral, foram (i) os recursos definidos; (ii) o design aplicado; e (iii) as considerações futuras apresentadas por marcas de moda no caminho à sustentabilidade (ou, ainda mais recentemente, à circularidade).
1. Os recursos e a responsabilidade real do setor competente por seu próprio descarte.
Sem dúvidas, a grande responsável pelo lixo plástico visível em nosso planeta é a indústria de embalagens e produtos plásticos similares – responsável por reciclar apenas 14% de sua produção de acordo com o estudo “The New Plastics Economy: Catalysing Action”, realizado pela Fundação Ellen MacArthur Aproveitando-se desse recurso infelizmente abundante e facilmente acessível, a indústria da moda se põe a “colaborar” com a “limpeza” de nosso planeta, embora de forma insignificante.
Um posicionamento como este não ataca diretamente o problema em sua raiz e acaba confiando em fluxos de resíduos de outros setores para suas ações sustentáveis e, paralelamente, se põe a resolver a questão do descarte de uma indústria (ou um sistema) que não a sua, eximando-os de sua real responsabilidade. O caminho coerente é desenvolver, em nosso setor, métodos para reciclar nossos próprios materiais, evitando uma futura dependência da irresponsabilidade alheia.
2. O design e a mistura de fibras na composição de tecidos.
Sem dúvida, é melhor escolher fibras/têxteis de baixo impacto sempre que possível. Aqui, as fibras recicladas podem ser apresentadas como uma alternativa, uma vez que a reutilização de fluxos de resíduos em vez de materiais virgens não-renováveis (como no caso do poliéster) é um ponto positivo. Mas misturar fibras sintéticas com outros produtos têxteis naturais, como o algodão, não é a melhor estratégia de design para circuladiradade a ser aplicada.
No livro “Cradle to Cradle: Criar e Reciclar Ilimitadamente”, uma das publicações fundamentadoras do conceito de Economia Circular, os autores Michael Braungar e William McDonough definem dois segmentos de materiais distintos, o técnico e o biológico, que devem ser mantidos separados (ou em estado passível de separação) para permitir a reciclagem futura e/ou o retorno seguro à natureza ao final de seus ciclos-de-serviço. Buscar verificar a necessidade real de combinar esses materiais é extremamente necessário quando pensamos em sustentabilidade e, a longo prazo, em circularidade.
3. O fim do ciclo-de-serviço e o destino que poderia ser dado a peças de fibras mistas.
Atualmente, sabemos que existem empresas capazes de oferecer fios têxteis feitos com materiais mistos através de seus processos mecânicos de reciclagem, e que a reciclagem química está sendo desenvolvida para além dos laboratórios, mas isso não acontecia há poucos anos atrás. Estratégias de design equivocadas, somadas a uma falta de objetivos claros e conexões adequadas referente ao fim do ciclo-de-serviço, não permitem nada mais do que o downcycle têxtil.
Se sustentabilidade é não causar sérios danos ao meio ambiente e, consequenteme, às pessoas, o questionamento sobre a estratégia de fim de ciclo-de-serviço de um produto é obrigatória. O que a marca faria com suas peças se fosse ela a responsável pelo seu próprio fluxo de descarte; como demanda, por exemplo, determinadas legislações e acordos como a PNRS – Política Nacional de Resíduos Sólidos, no Brasil, e a EPR – Extended Producer Responsibility, já ativa na França? Como ficaria a futura dependência da indústria da moda por recursos não-renováveis descartados - como garrafas PET não coletadas e não recicladas pelo setor de bebidas?
G-Star Raw for the Oceans: uma coleção feita com PET reciclado e algodão.
O que fazer agora.
Resumidamente, marcas e designers que trilham o caminho rumo à circularidade na moda devem ter em mente (e em suas páginas na Internet) uma visão sistemática e planos futuros, comunicando-os de forma coerente. A informação e a forma como a publicidade nos é apresentada é a parte que efetivamente nos toca enquanto mercado consumidor e usuários de moda.
É importante estar atento e entender se as marcas estão desenvolvendo produtos pensando no futuro e no final do seu tempo de serviço, apresentando uma estratégia clara e transparente. Ou se estão usando argumentos ambientais atuais e apelativos para promover a publicidade, criando em nós (clientes) a sensação de que agora podemos comprar sem remorso e assim aumentar suas vendas.
Como mencionado no novo relatório do Greenpeace sobre a indústria da moda global, “Fashion at the Crossroads”, projetos como esses devem ser vistos como uma ferramenta de comunicação para aumentar a conscientização pública sobre a poluição […], mas eles não podem ser considerados um passo sério à circularidade […]. Qualquer comunicação corporativa que não reconheça isso engana seus clientes e pode ser vista como greenwashing e [indo] em “má direção”.
Artigo publicado originalmento no ES-Fashion.net e republicado com autorização para o Modefica.