Tudo começou há 14 anos com Júlio César Lima, 40, e sua vontade de estudar moda, mas sem nenhuma condição econômica para isso. “Naquela época, as poucas faculdades de moda que existiam eram caríssimas”, explica ele. Com uma mãe faxineira e um pai pedreiro, o mundo da moda se mostrava distante demais para Júlio e as barreiras eram imensas.
“Me candidatei a uma vaga de faxineiro num prédio, mas a moça na época me achou muito educado e entendeu que eu poderia ser porteiro, tirando o lixo nas folgas do faxineiro. Em uma dessas folgas, eu me deparei com uma pilha de revistas de moda descartadas”, conta Júlio. Um autodidata da moda como se intitula, ele enxergou, por meio das revistas, uma oportunidade de gerar crescimento socioeconômico para a própria comunidade.
Tempos depois Júlio transformou a vontade e o conhecimento no projeto “Jacaré Também É Moda”. Nesse momento começou germinar a semente que se tornaria a Jacaré de hoje: uma produtora de moda especializada em agenciamento de modelos focada em encontrar as belezas das periferias do Rio de Janeiro, prepará-las e inseri-las dentro da indústria. Para isso, Júlio fazia concursos para conhecer novas meninas e encontrar talentos, olhando exatamente para onde os olheiros tradicionais não olham.
No começo, Júlio se mantinha na busca pelas chamadas top models: meninas altas e magras, principalmente negras e marrons, com perfil de passarela e capa de revista – o chamado perfil fashion. Com os concursos, Júlio encontrou meninas que agradaram a indústria e muitas foram para agências maiores para modelar fora do país. Foram muitas meninas e dezenas de concursos. Agora, 6 anos depois, essas modelos fashion ainda têm um grande espaço dentro da Jacaré Moda e os concursos continuam, mas algumas coisas mudaram.
Atualmente, o negócio conta com mais quatro sócios: Lucas Rodrigues, Clariza Rosa, Helena Gusmão e Renan Kvacek. Essa união fez a Jacaré Moda ganhar uma repaginada e se estruturar realmente como negócio, deixando de ser um projeto solto. Outra mudança foi um repensar de posicionamento. A ideia da empresa não é mais se encaixar na indústria da moda, é fazer a indústria da moda se encaixar na variedade de pessoas e consumidores desse Brasil e mundo.
Assim como agências não-convencionais, como a brasileira Squad e a londrina Lorde, a Jacaré Moda conta com perfis variados de modelos que escapam às antigas regras da indústria. São belezas diversificadas, tamanhos, pesos e alturas não-padronizados e há um mix de modelos brancos e não-brancos, mas a grande maioria do casting da Jacaré Moda é negra.
Raquel Dias Félix, uma das modelos da Jacaré Moda, fala da importância desse espaço e desse trabalho para as meninas que têm o sonho de ser modelo, mas estão muito distantes da realidade de outras agências e acabam não enxergando o próprio potencial: “por meio do meu trabalho eu consigo mostrar para outras meninas da favela que elas têm potencial também, e isso é muito gratificante”. Para ela, a Jacaré Moda já conquistou muita coisa e vai conquistar mais. “A Jacaré é oportunidade, é resistência, é batalhar por aquilo que você acredita e quer. E eu sou muito grata por fazer parte disso”, conta ela.
“Moda da resistência” é sobre isso: sobre diversidade, sobre ocupar espaços antes negados a uns e garantidos a outros e sobre não ser mais obrigado a esperar respeito e sim exigir respeito. Mais do que isso, é também sobre repensar o formato tradicional das agências de modelos. Por exemplo, Júlio sempre teve muita preocupação com as meninas e meninos terem que ficar longe da família em apartamentos em São Paulo e prefere manter a equipe perto da família. Para ele, é importante também trabalhar mais alinhado com os modelos, inserindo-os em todas as etapas do projeto. Afinal, na Jacaré Moda, os modelos não são vistos como cabides, mas sim como pessoas. O que sabemos ser um pensamento bem diferente do mercado.
[quote text=”A moda da resistência é mais humana, com pessoas reais” color=”#dea0f8″ textcolor=”#ffffff”]
Inclusive, foram as experiências ruins em outras agências que fizeram Tamara Branco, 23, há dois anos com a Jacaré, desistir da carreira de modelo até se deparar, por acaso, com as informações sobre um novo concurso que a Jacaré Moda estava promovendo na Biblioteca de Manguinhos. “Eu decidi ir e foi lá que eu conheci o Júlio. Desde aquele dia já gostei muito dele, da forma dele pensar. Acho que ele é um visionário”, conta ela. “A gente tem crescido juntos, é um trabalho de todos”. Como diz Tamara, um lugar de pessoas comuns no mundo e incomuns na moda. “Estamos abrindo portas agora para isso”.
Esse clima família é muito valorizado dentro da agência. É por isso que se uma modelo não se identifica com a marca, por exemplo, ela pode sim negar o trabalho e escolher não representá-la em sua campanha. “A moda da resistência é mais humana, com pessoas reais”, resume Júlio.
Com dois espaços, a sede no Jacarezinho e outro em São Cristóvão, dentro da Malha, a Jacaré Moda tem no seu portfólio de clientes nomes grandes como Dressto e Cantão, mas atende muitos novos criadores com os perfis de modelos que escapam do padrão. E a Jacaré Moda não atua só no Rio de Janeiro, marcas e clientes de outras cidades são muito bem vindos.
A questão que persiste, porém, é: será que diversidade na moda vai ser só uma moda passageira? Ou é o futuro e estamos presenciando um momento de mudanças? Lucas, um dos sócios, acredita que sim, diversidade está na moda, mas vê como um movimento ganhando espaço para real mudança. Júlio é bem enfático e acredita que “as marcas sabem que vão começar a perder clientes. Se essa galera que está vindo agora, ganhando espaço e com poder de compra não se identificar com a marca, ela não vai comprar”.
A Jacaré Moda ainda não tem site, mas você pode acompanhar e saber mais pelo Facebook e Instagram.
Foto Capa: JohnnyLopes e Vitoria Cribb // Foto Wendy Andrade. Todas as fotos foram cortesia da Jacaré Moda.