Na sua 4ª edição, o Índice de Transparência da Moda Brasil (ITMB) aponta para a melhora na divulgação de dados sobre transparência no setor, mas deixa claro que ainda falta muito para chegarmos onde deveríamos estar. Elaborado pelo Fashion Revolution CIC e Instituto Fashion Revolution Brasil, o relatório revela o nível de publicação de dados sobre política, práticas e impactos socioambientais de cinquenta grandes marcas e varejistas no mercado brasileiro.
Ao todo, a análise abarca mais de 200 indicadores, como clima e biodiversidade, circularidade, igualdade de gênero e racial e respostas à COVID. O ITMB pontua que, apesar de a transparência não significar sustentabilidade, ela é uma ferramenta importante para jogar luz ao longo de todas as etapas da rede de valor da indústria da moda – da extração da matéria-prima ao descarte – e responsabilizar as empresas e governos pelo que está acontecendo.
Em 2021, o progresso em relação à transparência na indústria da moda brasileira continua muito lento, com uma queda de 3% em relação à 2020. O documento afirma que a mudança metodológica pode ter influenciado no desempenho geral e individual – a mudança aconteceu para “impulsionar uma maior divulgação sobre ações concretas em detrimento de políticas, assim como a publicação de listas de fornecedores mais precisas no nível de matéria-prima”. Mas também deixa claro que em nível global a mesma revisão não afetou tanto as marcas como no Brasil.
A pontuação média das empresas foi de 18%, sendo as maiores pontuadoras: C&A (70%), Malwee (66%), Renner (57%), Youcom (57%) e Adidas (53%). A maior parte das marcas se concentram na faixa de 0-10% e, entre elas, 17 zeraram a pontuação. São elas: Besni, Brooksfield, Caedu, Carmen Steffens, Cia. Marítima, Colcci, Di Santinni, Fórum, Kyly, Leader, Lojas Avenida, Lojas Pompéia, Marisol, Moleca, Nike, Sawary e TNG. Apesar de pontuarem melhor entre as empresas, as 4 primeiras tiveram queda de 4~2% em comparação a 2020, já a Adidas estreou na análise brasileira neste ano.
Essa edição segue a tendência das anteriores, na qual as marcas conseguem pontuar mais nas categorias de políticas e compromissos sobre direitos humanos e questões ambientais (30%) e significativamente menos quando se trata de processos, resultados e impactos de suas ações. Por exemplo: publicações de listas detalhadas de fornecedores (21%), informações sobre governança corporativa (20%) e procedimentos de devida diligência e avaliações de fornecedores (15%). Quando falamos sobre combate ao trabalho escravo, igualdade de gênero e racial, materiais sustentáveis, circularidade, água, desmatamento, emissões de carbono e uso de energia, a média fica ainda mais baixa (12%).
Moda e desmatamento
Apenas em setembro de 2021, a Amazônia perdeu, diariamente, uma área maior do que quatro mil campos de futebol, registrando a pior marca mensal em dez anos. A indústria da moda tem peso sobre esses números: segundo um estudo da Canopy, mais de 200 milhões de árvores no mundo todo são cortadas todos os anos para se transformarem em celulose solúvel e, logo, em fibras como viscose, rayon, modal e liocel. Enquanto isso, o Cerrado é a região brasileira com maior concentração de fazendas de algodão e tem sofrido intenso desmatamento desde a década de 80 – o bioma perdeu cerca de 50 mil quilômetros quadrados de vegetação nativa nos últimos 10 anos.
A área desmatada é transformada em plantação de soja, que tem o algodão como cultura rotativa, e para o gado, cujo couro é utilizado em roupas, sapatos e acessórios. Todos esses lucrativos negócios do agro são, hoje, a principal causa de desmatamento da Amazônia e demais biomas. Apesar desse cenário, o ITMB registrou que nenhuma das 50 marcas analisadas divulga um compromisso mensurável para o desmatamento zero. O índice global, apesar de melhor avaliado, ainda é desanimador: somente 10% das marcas possuem compromissos sobre esse tópico divulgados.
Ao falar de desmatamento, é impossível não falar também do genocídio que vem ocorrendo aos povos indígenas. Desde a promessa de não demarcar nenhum hectare a mais para os povos indígenas, ainda em tempos de campanha e que tem sido cumprida, à tramitação do PL 490/2007, com o dispositivo do Marco Temporal, os povos indígenas vêm sendo diretamente atingidos pelos retrocessos ambientais. O ITMB chama atenção para um “claro movimento contra o bem-estar do planeta e da humanidade”, mostrando que a moda também é passiva nesse cenário.
Para Eloisa Artuso, co-responsável pela elaboração do ITMB, enquanto a pandemia parou a economia mundial e provocou uma redução de quase 7% nas emissões globais, o aumento das emissões de GEE no Brasil, em 2020, foi de 9,5%, devido ao desmatamento – que por sua vez, pode estar atrelado à produção de diversas matérias-primas usadas na moda. Diante desse cenário, é surpreendente que nenhuma marca analisada no ITMB 2021 publique um compromisso mensurável e com prazo determinado para o desmatamento zero. Além disso, somente três empresas (6%) divulgam evidências de implementação de práticas agrícolas regenerativas e 14% publicam se estão rastreando a fonte de uma ou mais matérias-primas específicas”.
Aliado à questão do desmatamento, o índice inclui, nesta edição, a temática da agricultura regenerativa. O ITMB afirma ser um “sistema de princípios e práticas agrícolas que reconstroem a matéria orgânica e restauram a biodiversidade do solo”. Ele também relembra que a maioria das marcas dependem diretamente das matérias-primas para sua produção – mas apenas 6% das marcas possuem evidências de implementar práticas agrícolas regenerativas em pelo menos uma fonte de matéria-prima. Práticas agrícolas regenerativas são praticadas por comunidades de todo mundo há milhares de anos e tem o potencial de neutralizar o aquecimento do globo e fortalecer a biodiversidade e conectividade ecológica.
Compromisso com a Questão Hídrica
Das 50 grandes marcas e varejistas respondentes do Índice de Transparência da Moda Brasil:A água é um tópico relevante para a moda por dois motivos: o cuidado com o descarte correto após ser manuseada nos processamento e beneficiamento de têxteis e no consumo hídrico. A água utilizada na fabricação de roupas utiliza-se de químicos que, quando manuseados e descartados de forma inadequada, podem causar danos à saúde dos trabalhadores, das comunidades próximas e do meio ambiente. O ITMB traz dados do Instituto Trata Brasil que apontam que, em 2019, apenas 49,1% dos esgotos do Brasil foram tratados.
A água contaminada afeta os habitats da vida aquática e a fertilidade do solo e, por sua vez, cria problemas socioeconômicos para quem depende da terra e da água doce para sua subsistência. Cientes disso, o ITMB adicionou um indicador ao Índice este ano em busca da divulgação dos resultados dos testes de efluentes da rede de fornecimento das marcas. Apenas 12% delas divulgam esses dados.
É importante lembrar que a produção têxtil está associada não apenas à poluição da água, mas também ao agravamento de sua escassez. No geral, a produção têxtil utiliza uma enorme quantidade de água em vários estágios da rede de fornecimento – desde a produção das matérias-primas até o curtimento do couro e tingimento, tratamento e lavagem de tecidos.
Moda e descarbonização
Compromisso com Descarbonização
Das 50 grandes marcas e varejistas respondentes do Índice de Transparência da Moda Brasil:Apesar da emergência climática, poucas marcas são transparentes nos tópicos relacionados ao clima e à biodiversidade: apenas 22% publicam um compromisso mensurável e com prazo determinado para a descarbonização. A urgência desse comprometimento aparece em dados recentes sobre a crise climática, como os números anunciados no último relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas). O relatório aponta que cada uma das últimas quatro décadas foi sucessivamente mais quente que a anterior desde 1850. Enquanto 62% das marcas pesquisadas globalmente divulgam as emissões de carbono de suas próprias instalações, somente 32% das empresas analisadas no Brasil divulgam esse dado.
Esse valor é baixo, mas ainda maior do que em 2020, quando as marcas pontuaram apenas 25%. O ITMB releva que, conforme se avança na rede produtiva, esses dados se tornam mais escassos: apenas 18% das marcas publicam, anualmente, a pegada de carbono de seus fornecedores de nível 1 e além (tecidos, instalações de processamento e beneficiamento,etc). O relatório conclui que, se as grandes marcas não rastreiam as emissões de toda sua rede produtiva, logo, não se torna possível medir com precisão seus impactos climáticos.
Enquanto 62% das marcas pesquisadas globalmente divulgam as emissões de carbono de suas próprias instalações, somente 32% das empresas analisadas no Brasil divulgam esse dado.
Quando falamos apenas sobre dados gerais de fornecedores, essa rede também não é bem clara. Menos da metade das marcas (40%) divulgam sobre seus fornecedores de nível 1 (instalações de corte, costura, acabamento, montagem, produto acabado, embalagem). Sobre os de matéria-prima, esse valor cai para 8%. Essa falta de visibilidade abre brechas para que condições de trabalho degradantes aconteçam – lembramos que a informalidade, baixas remuneração e trabalho análago à escravidão na moda ainda são tópicos recorrente. Somente sabendo o real valor dos impactos dessa rede é que poderemos cobrar um real progresso de metas socioambientais.
O relatório também destaca a atenção crescente dada ao mercado de carbono – um dispositivo utilizado pelas empresas para compensarem suas emissões sem a necessidade de reduzi-las, mas que não possui legislação brasileira e nem métricas globais acordadas entre especialistas. Atualmente, temos um marco regulatório que ainda tramita no Congresso Nacional, mas é importante salientar que o mercado de carbono fortalece o business as usual e serve ao interesse de grandes empresas. Se apaga, mais uma vez, a fala de quem é diretamente atingido pela invasão de atividades econômicas: os povos interligados ao meio ambiente, populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas.
No painel “Descarbonização Com Netzero? A Arquitetura da Privatização Florestal”, apresentado na Cúpula dos Povos, em 8 de novembro, Larissa Packer, da organização Grain, apontou duas proposições falsas sobre o mercado de carbono: primeiro, a equivalência entre os distintos gases do efeito estufa. “Pressupõe que haveria uma equivalência entre as emissões de GEEs e a capacidade de remoção destas emissões e a reintrodução disso no solo – seja por bases tecnológicas ou por bases naturais”, explica, “Como se isso fosse possível. Não há consenso científico para mensurar essa capacidade de captura de crédito de carbono. E também não há uma metodologia clara”.
Outro ponto levantado pela painelista foi o de equivalência entre os distintos gases do efeito estufa: “eu emito GEEs distintos e a equivalência está numa contabilidade econômica. O metano é mais poluente do que o carbono, então, uma tonelada de metano vai equivaler a 21 créditos de carbono”. Logo, essa conta mede as equivalências econômicas e não ecológicas.
Moda e superprodução
A superprodução das grandes marcas e varejistas também foi um tópico levantado pelo relatório. As discussões sobre sustentabilidade na moda pairam muito em soluções como “novo design”, “novos materiais” e a crença de que, como indivíduo, podemos consumir de forma mais sustentável – sei lá o que esta palavra representa – para escapar da crise climática. Porém, o ITMB traz luz ao elefante na sala: “os modelos de negócio em si, que têm como meta produzir mais e mais, precisam ser trazidos para o centro dos debates”.
Embora não tenhamos estatísticas precisas, o relatório aponta que entre 80 bilhões a 150 bilhões de roupas são produzidas e consumidas a cada ano no mundo. Como revela o relatório Fios da Moda, no panorama brasileiro não existem dados que contabilizem com exatidão a quantidade de resíduo têxtil que vai parar em aterros, lixões e no mar. No entanto, é possível encontrar dados, como: somente na região do Brás, em São Paulo, são coletadas 45 toneladas de resíduo têxtil por dia. Fibras têxteis demoram de 10 a 20 anos para se decompor, no caso do algodão, de 100 a 300 anos, para tecidos sintéticos. O poliéster, em especial, leva 400 anos.
O ITMB aponta para um visível aumento na quantidade de marcas que divulgam o volume total de peças produzidas anualmente: de 18%, em 2020, para 30%, em 2021. Porém, apenas 18% divulgam a forma como investem em soluções circulares, permitindo a reciclagem de peças e indo além da reutilização e do downcycling. Embora haja um aumento na divulgação de modelos de sistemas permanentes de devolução de peças em lojas, de 20% para 24%, ainda são poucas as marcas (22%) que divulgam o que acontece com as roupas recebidas por meio desse sistema.
Mas é importante salientar que essas alternativas, por si só, não resolveram os problemas de superprodução e hiperconsumo da indústria. Temos como exemplo um lixão de roupas descartadas dentro do deserto do Atacama, no Chile, que foi destaque da COP 26 das Mudanças Climáticas. Desacelerar, produzir menos, com mais qualidade e prolongar a vida útil das roupas e materiais existentes será essencial para reduzir as emissões de GEEs da indústria da moda.
Moda e gênero
Apesar das mulheres representarem 72% da força de trabalho no setor de confecção no Brasil, a transparência sobre igualdade de gênero na indústria sofreu queda no último ano. O ITMB relaciona de 35% para 24% o número de empresas que divulgam publicamente a distribuição de gênero por cargo em suas instalações. Na pesquisa global, esse valor foi de 55%. O ITMB atribui esse resultado, em parte, pela legislação dos países no qual a questão de gênero é mais evoluída. Por exemplo, no Reino Unido, empresas com mais de 250 funcionários são obrigadas a divulgar tal informação.
O relatório destaca que existe um aumento significativo na divulgação de procedimentos implementados pelas empresas para colocar em prática suas políticas de equiparação salarial: de 8%, em 2020, para 20%, em 2021. Apesar de ainda não termos resultados concretos sobre essas mudanças, podemos ver que elas estão sendo postas em prática.
Compromisso com Igualdade de Gênero
Das 50 grandes marcas e varejistas respondentes do Índice de Transparência da Moda Brasil:Informações pouco acessíveis
O formato da divulgação de informações continua problemático entre as grandes marcas e varejistas. Segundo um levantamento mundial, 77% dos consumidores acham difícil pesquisar ou entender as afirmações de sustentabilidade das marcas. Aqui no Brasil, o ITMB enumera as dificuldades levantadas: algumas empresas comunicam informações relacionadas a direitos humanos e meio ambiente de forma pouco acessível, repetitiva, com falta de cuidado em relação à organização, formato, local ou até mesmo qualidade do que está sendo divulgado.
Tudo isso torna os dados significativos difíceis de serem encontrados e compreendidos por clientes e outras partes interessadas. O relatório afirma que, por vezes, dados cruciais estavam “escondidos em anexos e notas de rodapé de longos relatórios técnicos ou a dezenas de cliques a partir da página inicial”. Essa constatação é válida, inclusive, para as empresas com melhor pontuação no índice. Em outros casos, grande parte das informações diziam respeito a apenas os valores da marca ou projetos pontuais relacionados a uma pequena fração de suas coleções ou rede produtiva.
As empresas devem tornar as informações mais acessíveis a qualquer público, com uma linguagem clara, com detalhamento sobre como elas identificam e tratam seus impactos. O relatório também salienta a importância de um mecanismo independente de verificação sobre seu conteúdo, para aumentar sua credibilidade. Existe também a necessidade dessas informações serem padronizadas e exigidas em nível legislativo.
Algumas informações foram destacadas de forma positiva, por exemplo, o maior detalhamento que algumas marcas passaram a dar sobre as instalações de seus fornecedores, para além do nome e endereço de cada um. Algumas também acenam sobre número de trabalhadores, tipo de produto ou serviço, recorte de gênero e existência de certificações destas empresas.
É preciso apoiar ferramentas de transparência como o ITMB, campanhas como #QuemFezMinasRoupas e Moda Sem Veneno, que incentivam grandes marcas e varejistas a mapear suas redes de fornecimento e se mobilizar para que a indústria da moda seja mais limpa, justa e de acordo com a realidade socioambiental brasileira.