Mas linguagem é só um dos pontos onde conseguimos perceber os preconceitos de gênero. Algumas publicações como Business of Fashion e Fashionista já estavam chamando atenção para a diferença entre a quantidade de homens e mulheres em posições de direção criativa nas principais marcas de moda e para a disparidade de mulheres em cargos de tomada de decisão na indústria. Em 2016, nós trouxemos esse debate para cá e começamos a discutir as discrepâncias dentro da indústria brasileira.
Durante um evento conduzido pelo Modefica sobre o tema, fizemos uma pergunta para a platéia: quais nomes femininos vêm rapidamente à mente quando falamos de mulheres na moda? Valia tudo: estilistas, stylists, empresárias, jornalistas, maquiadoras, fotógrafas, etc. Entretanto, o nome que apareceu com mais frequência foi Coco Chanel, falecida há quase 50 anos e cuja marca, hoje, tem um homem no cargo de direção criativa.
O que qualquer pessoa olhando atentamente para a questão pode perceber é o fato da desiguldade ser alimentada por percepções sociais e culturais particulares da indústria criativa, como é o caso da linguagem que fomenta o consciente coletivo de que homens são melhores estilistas e melhor orientados criativa e artisticamente do que mulheres, e também por barreiras sistêmicas que afetam todas as outras indústrias como o desequilíbrio no peso das responsabilidades domésticas, uma educação que não ensina mulheres a se reconhecerem como profissionalmente capazes, a crença de que homens são melhores líderes, etc.
Porém, o que torna essa disparidade mais intrigante e inaceitável na moda é o fato de sermos uma indústria composta majoritariamente por mulheres. Pegue qualquer turma de formandos de qualquer curso de moda em qualquer lugar do mundo e você vai descobrir que, sob nenhuma circunstância, mulheres representam menos de 85% dos alunos. Mas não só as salas das escolas de moda estão sempre repletas de mulheres; a grande massa de trabalho da indústria também é, logicamente, formada por mulheres. No Brasil, a última estimativa da Abit chegou em 64% de mão de obra feminina na indústria. Quais são as raízes da disparidade de gênero que garantem a uma minora chegar e permanecer em lugares onde as mulheres não chegam?
Falta de Percepção e Falta de Ação
O Council of Fashion Designers of America, a revista Glamour e consultoria McKinsey & Company se uniram para responder essa pergunta. Com nome inspirado na pesquisa acadêmica de Stokes, o novo estudo “The Glass Runway: Gender Equality In Fashion” resume as respostas de 535 pessoas da indústria da moda sobre o tema, de estilistas independentes a líderes de grandes grupos de luxo, além de algumas dúzias de entrevistas com homens e mulheres da moda para entender suas percepções de gênero no ambiente de trabalho e carreira. O resultado: muito pode ser feito a partir do momento que falamos sobre o problema, entendemos suas causas e nos comprometemos com as soluções.
Das mulheres entrevistadas, 100% disseram que a desigualdade de gênero é um problema na indústria, comparado com menos de 50% dos homens. Essa desconexão é causada pelo fato da moda ser majoritariamente formada por mulheres; “há mulheres por todos os lados, como vai haver desigualdade?” é uma frase comum na boca dos homens da indústria.
O que eles parecem não notar é que nas mesas do alto executivo não há mulheres por todos os lados. E o estudo concluiu que não é por falta de ambição delas. No início de suas carreiras, as mulheres são 17% mais propensas do que os homens a aspirar cargos de alto nível. Mas, no meio da carreira, elas batem numa parede: a pesquisa descobriu que, no momento em que chegam a níveis de cargo sênior, os homens são 20% mais propensos do que as mulheres a aspirar a ser um alto executivo. Uma inversão muito significativa.
Das mulheres entrevistadas, 100% disseram que a desigualdade de gênero é um problema na indústria, comparado com menos de 50% dos homens.
Algo similar acontece em relação a pedir promoções e aumentos. No início da carreira, as mulheres são mais propensas que os homens a pedir uma promoção nos níveis iniciantes. Mas à medida que as mulheres atingem os níveis de gerência média e alta, elas desanimam e têm metade da probabilidade de conseguir um emprego maior quando comparado com homens. Quase todas as entrevistadas, mesmo aquelas que se descreveram como assertivas e altamente ambiciosas, disseram que pedir promoções sempre foi uma batalha.
Uma das causas: mulheres param de pedir promoções e mudam suas ambições porque elas passam a entender que, a partir de um determinado nível, o clube é do bolinha. “Eu sempre peço orientações concretas sobre como ser promovida. Eu sigo todas as instruções, mas isso não faz diferença”, afirmou uma gestora de uma marca de moda masculina entrevistada.
Uma executiva de varejo lembrou de uma reunião com um executivo sênior, na qual ele contou a uma sala cheia de funcionárias do sexo feminino sobre como ele foi promovido de comprador assistente para comprador em um ano e meio. “Ele disse que seu chefe, que também era homem, gostava dele e de como ele planejara uma festa de fim de ano”, lembra ela. “Ele estava dizendo isso como se fosse algo para se orgulhar. E todas nós estávamos sentadas boquiabertas porque tínhamos visto nossos colegas do sexo masculino subirem na carreira enquanto as mulheres da empresa raramente eram promovidas”.
A percepção delas não foi errônea. A pesquisa descobriu que, em níveis júnior, 25% menos mulheres do que homens são promovidas sem pedir; no momento em que alcançam cargos de gerência, 72% menos mulheres são atraídas para uma promoção sem pedir, em comparação com seus colegas do sexo masculino. Por percepções socioculturais construídas a décadas, e pela tendência do ser humano de se cercar com seus iguais, mulheres e mulheres negras são sistematicamente impedidadas de avançar.
Ausência de Mentoria e a Luta Pelo Equilíbrio Entre Vida Pessoal e Trabalho
Navegar pela cultura empresarial e entender os critérios de promoção da empresa geralmente se resume aos conselhos que os funcionários estão – ou não estão – recebendo de seus superiores. Segundo a pesquisa, em todos os níveis, os homens obtêm mais feedback do que as mulheres sobre como avançar em suas carreiras. A pesquisa descobriu ainda que os homens da moda se sentem desencorajados a dar feedbacks por percepções completamente antiquadas: “Como homem , fico preocupado com a sensibilidade das mulheres e a possibilidade delas se sentirem ofendidas quando eu lhes dou feedback, então eu faço isso com menos frequência”, disse um produtor de desfiles de moda e outros eventos. Segundo os pesquisadores, esse foi um sentimento expressado por vários entrevistados do sexo masculino. Mentoria, no entanto, é comprovadamente uma estratégia para ajudar a fechar a lacuna de gênero.
Soma-se a esses fatores uma questão incontornável: a maternidade. Há uma enorme pressão social para as mulheres serem extremamente presentes na família, enquando os homens podem se ausentar sem julgamentos, colocando as mulheres em uma encrusilhada: carreira ou filhos? O sentimento vem acompanhado do medo de não dar conta do trabalho e atendender às expectativas. Não à toa, mulheres acabam colocando sua carreira em segundo plano para que a carreira do marido possa prosperar.
A pesquisa ressaltou que esses sentimentos não são totalmente injustificados. “É horrível dizer, mas uma das coisas que sempre consideramos quando avaliamos várias candidatas para uma oferta de emprego é se ela é recém-casada porque provavelmente começará a ter filhos em breve”, admitiu um ex-gerente de recursos humanos de uma marca de moda. “Éramos muito mais propensos a oferecer o emprego a uma mulher solteira ou a uma mulher que fosse mais velha; isso nunca, nunca era uma questão com os canditados homens ”. Pelo mesmo motivo, mulheres não são promovidas.
Empreendedorismo Feminino: Um Mar Nem Tão de Rosas Assim
No âmbito das mulheres empreendedoras, que abrem seu próprio negócio, e não estão sujeitas às regras corporativas e empresariais vigentes, não devemos nos iludir achando que elas estão imunes ao preconcentio de gênero. A pesquisa destacou a experiência da estilista Carly Cushnie, que co-fundou a Cushnie et Ochs em 2008, e relembrou resenhas sobre suas criações que se concentraram mais na sua aparência do que nas roupas que ela mandou para passarela: “Muitas das críticas foram como: ‘Oh, você tem que parecer que veste aquelas roupas. Você tem que ter um certo tamanho.’ Ao passo que um homem pode fazer [roupas] sexy e é [considerado] genial.”
Ela também chamou atenção para uma coisa que todos sabem, mas fingem não saber: mulheres têm mais dificuldade de conseguir financiamento e investimento. Ela contou aos pesquisadores sua experiência ao entrar em uma sala de investidores do sexo masculino que disseram coisas como “Então, você está administrando a empresa?” E “Não há mais ninguém aqui?” Ela ressaltou: “Também é mais difícil para as mulheres obter financiamento, obter empréstimos para negócios. Muitas estilistas não são encaradas da mesma maneira que um homem em termos de ser designer e empresária… Você é considerada um investimento de risco, especialmente em uma indústria que geralmente é arriscada para qualquer investidor.”
Isso prova que abrir o próprio negócio não significa zona de conforto para as mulheres. Empreendedoras enfrentam os mesmos preconceitos de gênero que mulheres trabalhando em grandes marcas de moda. E quando falamos em mulheres empreendedoras, devemos pensar não só em estilistas, mas mulheres que estão em toda a cadeia produtiva da moda. É provável que ao conversar com uma mulher costureira dona de uma oficina decostura ela vai te contar sobre o entendimento comum de que “mulher no comando, vai quebrar a oficina”.
O estudo não faz um recorte de raça, mas é importante lembrar que mulheres negras e imigrantes sofrem duplo preconceito, dupla dificuldade de conseguir empréstimos e serem consideradas “investimento seguro” quando comparado aos homens e mulheres brancas.
Como Avançar?
Primeiro, reconhecer o problema.
O estudo lembra que não há como tratar um problema se não sabemos que ele existe ou se afirmamos que ele não existe. “Rastrear e compartilhar métricas relacionadas a gênero é uma das etapas mais essenciais que uma empresa pode adotar para criar um ambiente de trabalho mais igualitário”, afirmaram os especialistas entrevistados. Lembrando que esse não deve ser um esforço único; acompanhar as métricas também é necessário para manter e melhorar as ações para igualdade.
Depois, tornar as regras do jogo transparentes.
Ao entrevistar várias pessoas, o estudo concluiu que tornar a compensação financeira e a revisão dos processos de promoção o mais simples e transparente possível é necessário para garantir um campo nivelado. “A formalização de avaliações e a inclusão de critérios mais objetivos tornam o processo menos pesado ao longo do tempo e dão aos funcionários e gerentes a oportunidade de ter conversas valiosas sobre a definição de metas e o avanço na carreira”. Isso também é importante para reter talentos, já que, segundo a pesquisa, mulheres têm até três vezes mais probabilidade do que os homens de dizer que já consideraram abandonar completamente a moda para obter um cargo melhor em outro segmento.
Ter uma empresa diversa também é uma vantagem sobre outras equipes mais homogêneas; é uma decisão de negócios tanto quanto uma questão de princípio.
Mentore mulheres e incentive mulheres.
As mulheres são mais propensas do que os homens a dizer que nunca interagem com líderes seniores. Se você é um(a) líder senior, mentore uma mulher. Não tenha medo de lágrimas, elas podem acontecer e tudo bem. Ninguém gosta de receber feedbacks negativos; alguns homens ficam nervosos, algumas mulheres choram. Entenda e siga em frente no seu papel. Se a mentoria é considerada uma das principais ações para diminuir a lacuna de gênero em se tratando de promoções e liderança, ela precisa ser levada a sério.
Também é importante ter a lente de gênero e raça se você está numa posição que permite contratação ou indicação para cargos e trabalhos. Uma executiva de relações públicas disse que quando está contratando novos funcionários, ela faz questão de garantir que as mulheres não-brancas, em particular, estejam no grupo de candidatos: “É o primeiro grupo deixado de lado”. Ter uma empresa diversa também é uma vantagem sobre outras equipes mais homogêneas; é uma decisão de negócios tanto quanto uma questão de princípio”, diz ela. “Existem diferentes grupos de editores para convidar, diferentes grupos de influenciadores, pessoas diferentes para alcançar.” Em outras palavras, mais potencias clientes e negócios para a empresa.
Diversidade é bom para as mulheres e bom para os negócios. A empresa americana Old Navy, por exemplo, é uma das marcas de vestuário que mais crescem nos EUA. A Presidenta e CEO Sonia Syngal afirma que a empresa, controlada pela Gap Inc., tem “uma cultura de igualdade que é demonstrada através de fatos concretos… Nós temos uma fundadora mulher, temos representação de liderança feminina em todos os níveis e temos pagamento igual para trabalho igual”. Para ela, tudo isso garante tempo e energia para a empresa se concentrar em fazer o negócio avançar.
Tenha programas que endossem a questão do trabalho-família.
Construir uma cultura de igualdade por meio de edução corporativa, ter programas extendidos de licença paternidade e maternidade, além de horas de trabalho flexíveis – o que comprovadamente aumenta o desempenho dos funcionários – são algumas das ações que empresas grandes e médias podem adotar para ajudar a equilibrar o peso das responsabilidades. No entanto, menos de um terço dos homens e mulheres entrevistados disseram que suas empresas têm essas políticas.
Brian McComak, diretor sênior de inclusão e diversidade da Tapestry, diz: “É importante para os líderes e gerentes de pessoas demonstrar seu apoio e liderar pelo exemplo.” Uma produtora de eventos de moda, que trabalhou tanto para empresas corporativas quanto para boutiques, disse que a melhor experiência que ela teve foi em uma pequena empresa de propriedade e gerência de mulheres, porque a maternidade era tratada como um tabu. “O conforto de poder falar abertamente e livremente sobre as demandas das crianças tem sido uma das maiores razões pelas quais eu continuei trabalhando com elas e por que me sinto tão feliz por estar nesse lugar.”
Moral da história.
Será que com a McKinsey envolvida num estudo capaz de comprovar a desigualdade de gênero na moda o assunto será tratado como deve ser tratado – dentro e fora das empresas? Será que vamos conversar abertamente sobre os números discrepantes, sobre o machismo e sexismo da indústria, sobre o fato da única posição na qual mulheres ganham mais que os homens na moda é na posição de – não surpreendentemente – modelo?
Essa conversa precisa estar não só nas empresas, ou entre as mulheres interessadas no tema, mas na mídia, nas escolas de moda e nos debates sobre o futura da moda. Uma indústria diversa é bom para as mulheres e para os negócios, mas também é bom para garantir uma moda capaz de refletir essa diversidade, possibilitar uma indústria que faça bem e esteja alinha com as demandas contemporâneas da sociedade, promover a liberdade criativa e ganhar cada vez mais relevância.
Desde 2016, está na nossa agenda levar essa pauta da igualdade na moda para todos os ambientes possíveis: já estivemos em eventos, escolas, empresas; e por isso nós sabemos que não estamos nem perto de tocar as estruturas que impossibilitam as mulheres de irem mais longe. Mas acreditamos que quanto mais pessoas estiverem cientes dos problemas, e quanto mais pessoas pressionarem por iniciativas que garantam mudanças sistêmicas, mais perto vamos chegar de um campo de jogo nivelado.