Para compor o seu livro mais novo livro, Craft of Use: Post-Growth Fashion, ainda sem tradução para o português, ela visitou mais de 50 cidades e comunidades, em nove países, para levantar mais de 500 exemplos sobre como as pessoas usam e cuidam de suas roupas.
Ela atualmente orienta estudantes de PhD no Centre for Sustainable Fashion, que fica dentro da London College of Fashion, e atua em projetos que vão desde acompanhar processos inovadores de alta complexidade em design a escrever histórias sobre a amizade entre pessoas, roupas e o mundo natural.
Conversamos com a Kate em Londres, durante a última edição do Global Fashion Conference, evento que reúne profissionais, acadêmicos e entusiastas da moda para debater moda e sustentabilidade. Foi uma conversa poderosa e cheia de provocações acerca de temas como economia circular, design afetivo e moda sustentável seguindo padrões vigentes de mercado. Bem do jeito que o Modefica gosta.
Modefica: Você disse em uma de suas palestras que as roupas deveriam ser projetadas como “processos” ou “estruturas provisórias”, mas que há uma frustração dos designers, pois eles podem sugerir formas de uso mas não podem prever o comportamento dos usuários ao longo do ciclo de vida de uma roupa. Poderia comentar à respeito?
Kate Fletcher: Eu vejo que o design é uma força fraca para influenciar o comportamento do consumidor. Não o tempo todo, mas muitas vezes não é tão forte quanto esperamos. Se estamos interessados em fazer as pessoas agirem e serem diferentes em relação ao uso de suas roupas, teremos que olhar para isso de várias perspectivas. Algumas envolvem trabalhar com marcas dentro da economia de mercado, usando a busca pelo lucro para fazê-las agir, mas muito disso terá que ocorrer onde chamamos de economia informal.
Essa economia informal leva em conta comportamentos e subjetividades no dia a dia das pessoas – como por exemplo, o desejo delas de customizar suas peças depois de alguns anos de uso?
Sim, e isso abre espaço para outras prioridades além do lucro. O que deve-se perguntar é: que resultados você quer alcançar? Dependendo de com quem você está trabalhando, diferentes caminhos serão os certos. Se o objetivo é tentar desacelerar o consumo, que é uma mensagem muito desagradável para muitas pessoas e é difícil conversar sobre um modelo econômico viável, é necessário descobrir como separar o “ganhar dinheiro” do “vender mais”.
Por exemplo, a quantidade de dinheiro gasto para convencer as pessoas a comprar mais é enorme. Imagine se uma parte disso fosse direcionada para estimular a valorização e apreciação das coisas que já temos. Quando você fala sobre ciclos de customização, eu acredito que a resposta seja: será em parte isso, e em parte formas que ainda nem imaginamos. Me refiro a nos envolvermos com uma diferente compreensão do que significa vestir-se.
Considerando que mudanças nas intenções de consumo já estão acontecendo, você vê potencial para que status e exclusividade sejam substituídos por valores afetivos mais profundos, desenvolvidos através de, por exemplo, processos de codesign ou cocriativos?
A ideia de um processo de codesign consiste em estar colaborando com a marca, passando tempo com a marca, pensando como pode ser desenvolvido o produto. Isso me lembra uma ideia apresentada há uns 15 anos, onde as pessoas estavam falando sobre a tentativa de desenvolver um símbolo de status imaterial. A pergunta que se fazia era: como seria esse símbolo de status se você não pudesse escolher uma medalhão de ouro ou uma bolsa de luxo? Está claro que essas qualidades são invisíveis, então como encontrar maneiras de representá-las? Como comunicar isso?
Você diz, mantendo a ideia de representar valores profundos em produtos tangíveis?
Ou talvez não. Talvez mantê-los dentro desses estados intangíveis e encontrar uma maneira de comunicar o que é esse valor para que as pessoas possam entendê-lo. Por exemplo, uma das coisas que eu sinto sobre envelhecer é que seu rosto não é bem o que era antes. Você se olha no espelho e… fala sério? Então o que eu espero dessa mulher que está ficando mais velha é sabedoria.
Quando eu era jovem eu sentia como se estivesse indo com a correnteza. Agora parece que o tempo está correndo no sentido inverso para mim. A única coisa que penso é que, uma das poucas coisas que temos, de fato, é a sabedoria. Quando eu olho para as pessoas mais velhas e as escuto, elas têm essas “outras coisas”. Vejo que é sobre entender o que essas coisas são e capturá-las de alguma forma, usando-as como a fonte desse valor agregado. Mas eu não sei exatamente no que consistiria.
Seria significado de uma forma subjetiva. O “imponderável”…
Sim, talvez. Mas vejo que o tempo é o que é realmente escasso. E acho que a outra coisa que está na raiz da crise ambiental é a falta de conexão. Então, uma das coisas que dizemos estar alimentando a crise da insustentabilidade é a crise de significado. Há uma falta de conexão entre as pessoas e a natureza, e entre pessoas e pessoas. E também em relação ao que significa ser humano, as pessoas perderam a noção em relação a isso. Isso se tornou um desafio. Essas são as coisas que precisamos começar a atingir.
Unindo o viés pragmático ao dos significados: você acredita que as marcas de luxo estarão sempre presas a uma questão ética, pois peças que são extraordinariamente caras – e pouco acessíveis – simplesmente não podem ser consideradas sustentáveis?
Pensando puramente em processos materiais, e levando em conta o uso de energia e água, talvez você possa dizer que as marcas de luxo estão produzindo itens incríveis, mas quando olhamos nos guarda-roupas das pessoas, se elas têm um item muito caro, elas acham difícil de usar porque é muito especial. Então elas não o usam frequentemente. As peças que são usadas com mais frequência são as peças de preço médio, que funcionam no cotidiano. Os itens que são úteis. Então eu vejo que não é apenas sobre o valor que você paga, ou a quantidade de recursos utilizados nessas roupas muito caras, é simplesmente porque você não a está usando e a está mantendo em um cabide no seu closet.
Como uma roupa sagrada…
Sim, quase [sagrada]. Exatamente. Esse é um argumento. O outro argumento é que as marcas, frequentemente, querem adicionar significado às peças, mas o que descobrimos é que as pessoas têm uma capacidade quase infinita de achar suas roupas significativas. E isso não ajuda a reduzir o consumo de novas peças […] Este é um argumento muitas vezes usado, por exemplo, em relação ao “design afetivo”, onde você tem um compromisso com o produto, talvez por ser um projeto de cocriação ou algo muito caro. Mas geralmente o que você descobre é que ter um compromisso com o produto não impede o consumo de outro produto, porque as pessoas têm uma capacidade infinita de continuar consumindo, consumindo e consumindo.
É possível unir o ativismo de marca quando os lucros ainda são a prioridade? Ou temos que mudar o jogo e as marcas precisam se transformar em negócios sociais?
Provavelmente elas devem se transformar. Eu sou muito cética sobre muitas coisas que estão acontecendo. O importante sobre o ativismo é o estado de tornar-se ativo e buscar uma mudança no status quo, começando a impulsionar a mudança. Dependendo da sua visão do que precisa acontecer, isso pode ou não acontecer dentro do sistema existente. Eu acho que o sistema existente é o problema. Então, fazer um logotipo em uma camiseta, e você ter que comprá-la, não é promover a mudança do sistema, pois [essa ação] está bloqueada dentro do próprio sistema. Eu acho que a maior parte do trabalho de ativismo político tem que acontecer fora disso. Suponhamos que as pessoas que estão integrando o sistema, possam, ao mesmo tempo, agir fora dele. Mas eu realmente não sei. Eu nunca vi um exemplo.
É difícil ser totalmente imparcial, certo.
Sim. Talvez haja uma maneira de as pessoas serem mais honestas sobre quais são as prioridades de seu negócio, mas há muito pouca honestidade. Estou frustrada pela maneira como a linguagem é cooptada. Ela é agarrada e usada pelo mainstream; e então ela perde o seu poder. As palavras de progresso e protesto, mudança e transformação, estão sendo usadas por empresas que não estão fazendo nada, porque é apenas greenwashing. Isso acontece o tempo todo. Eu acho isso problemático porque as palavras importam, e nós temos que usar as palavras cuidadosamente para que as pessoas entendam o que queremos dizer. Você sabe disso, você é um jornalista.
Você acredita que a moda lenta, ou slow fashion, é um movimento ou um mercado?
Eu acho que se fosse verdadeiramente alinhado ao movimento slow food, que era muito social e conduzido pelo prazer e pelo gosto, seria mais próximo de um movimento, mas não é. Até agora é essencialmente um mercado. Não que isso seja necessariamente ruim, acho que tudo tem um ritmo e alguns são mais rápidos que outros. Em relação às roupas, tudo está indo muito rápido e isso não está refletindo a energia simbólica e valores [empregados]. Eu não sei se a palavra slow é realmente útil porque, para mim, tudo o que ela faz na mente das pessoas é estabelecer um dualismo e oposição entre rápido e lento quando, na verdade, a mensagem é sobre um engajamento diferente [com o processo produtivo]. Mais uma vez o problema é que o termo foi sugado pelo mercado muito rapidamente e se tornou um simples dualismo rápido versus lento. E isso é uma pena.
E passando a uma outra conceituação de mercado; você acredita que a moda circular será como a nova era da sustentabilidade?
Não, eu não acho. Eu acho que a circularidade pode funcionar bem em uma escala muito pequena, mas é uma ideia que está pressupondo o consumo e um ciclo de consumo. Então, essencialmente, a alegação é que você pode comprar uma coisa, descartar, e ela será refeita de materiais reciclados, que serão infinitamente reciclados. Esse sistema de reciclagem é caro e utiliza energia. […] O mais problemático, essencialmente, é o sistema baseado no consumo e a ideia de diminuir as expectativas do que as peças de roupa são; elas são simplesmente descartáveis? Então estamos apenas propagando todo esse sistema.
Em seu trabalho Fashion Ecology: a Pocket Guide você cria paralelos entre elementos dos sistemas ecológicos (espécies, habitat, nicho, etc.) e a moda, atribuindo um olhar orgânico e interconectado à indústria. Você acredita que esses paralelos poderão ser utilizados na prática, ou permanecerão no campo metafórico?
Eu quis fazer esse trabalho em parte por razões muito práticas e aplicáveis, mas também por questões de linguagem. Os ecossistemas não crescem além de um certo tamanho. Eles crescem, ocupam o seu nicho e não crescem além do nicho. Existem fatores autorreguladores muito restritos dentro dos ecossistemas que são totalmente ignorados pela indústria da moda. Então, na prática é um pouco como: ok, se o nicho é o limite, esse é o tamanho que podemos obter. E há muitas outras relações possíveis com a ecologia, como por exemplo, a compreensão dos diferentes elementos que o mosaico precisa, nos trazendo a noção de todas as diferentes atividades de moda que precisam ser incentivadas. […] Então, a ecologia nos ajuda a dar atenção a toda essa variedade de fluxos. É com certeza romântico e poético, mas também é prático.
Qual formato de semana de moda poderia alcançar o coração de mais pessoas, em sua opinião?
Eu tenho uma ótima resposta porque já pensei sobre isso. Para mim, precisamos de uma semana de moda em que a passarela e as modelos só usem peças com mais de cinco anos de uso. Elas não seriam mais as peças “do momento”. O que você veria ali é a vida real das roupas. Então você teria algo que as pessoas realmente poderiam começar a aspirar.