Em 2 de março de 2021, 16 organizações de direitos trabalhistas foram declaradas ilegais. Em 15 de março de 2021, seis trabalhadores e trabalhadoras da Xing Jia Footwear foram baleadas e mortas por militares e policiais depois de se reunirem ao lado de fora da fábrica exigindo por salários não pagos. Em maio de 2022, uma trabalhadora foi estuprada na volta para casa após ser forçada a trabalhar à noite e não ter transporte para voltar para casa em uma fábrica que fornece artigos de couro para marcas de luxo.
Esses são alguns das mais de 100 diferentes alegações perpetuadas contra mais de 60 mil trabalhadores em cerca de 70 fábricas de vestuário em Mianmar. Os casos envolvendo condições de trabalho e supressão de direitos aconteceram em fábricas que produzem para cerca de 32 grandes marcas de moda globais, incluindo adidas, Bestseller, C&A, Inditex (Zara & Bershka), Fast Retailing (UNIQLO), GUESS, H&M, Lidl, New Look, Next, Matalan e Primark. Ao menos 55 ativistas sindicais foram mortos e 301 líderes sindicais e membros do movimento trabalhista foram presos.
Acredita-se, porém, que essa é a ponta do iceberg de um cenário muito pior “dadas as severas restrições às liberdades cívicas e de imprensa sob o regime militar e risco de represálias para os trabalhadores que se manifestam contra o abuso” segundo o relatório recém publicado pela Humans Rights Watch Resistance, harassment and intimidation: Garment worker abuse under Myanmar’s military rule (Resistência, assédio e intimidação: abuso de trabalhadores de vestuário sob o regime militar de Mianmar, em tradução livre).
Localizada no sudeste asiátio, na fronteira com Índia, Bangladesh, China, Laos e Tailândia, a ex-Colônia britânica hoje tem uma população de 50 milhões de habitantes. Mianmar sofreu um golpe militar em fevereiro de 2021 após cerca de 50 anos democráticos. A tomada de poder pelos militares suscitou protestos pelo país, que rapidamente passaram a ser repreendidos de forma violenta. Milhares de pessoas foram assassinadas ou presas enquanto centenas de milhares migraram fugindo da repressão. Os casos de violações e abusos têm sido noticiados com frequência pela mídia internacional e os pedidos para que marcas apoiassem os trabalhadores de sua rede produtiva em Mianmar começaram quase que imediatamente.
Lançado após 18 meses recebendo denúncias de trabalhadores por meio do Rastreador de Alegações de Trabalhadores de Vestuário de Mianmar, o relatório destaca a violência contra as mulheres, maioria entre trabalhadoras nas fábricas do vestuário do país, chegando a 90% da mão de obra. Essas mulheres costumam ser migrantes de cidades menores ou aldeias rurais, que se mudam para Yangon, a maior cidade do país, em busca de empregos. Elas estão mais suscetíveis à violência tanto por parte dos empregadores quanto dos militares, pois costumam viver longe da família, umas com as outras em dormitórios precários, sendo obrigadas a fazer turnos noturnos sem nenhuma segurança.
Segundo informações da Câmara de Comércio Europeia em Mianmar, o vestuário representou 31% das exportações do país em 2018, chegando a cifra de 4,59 bilhões de dólares. A maior parte das roupas é destinada à China ou à Coreia do Sul, mas uma parte importante da produção é levada ao mercado ocidental pelas multinacionais do setor. A média de salário nas fábricas antes do golpe era de 3.5 dólares ao dia, hoje os valores chegam a 2 dólares, com adolescentes e crianças ganhando 1.60 dólares.
Quando questionadas sobre suas ligações com as violências de direitos humanos por meio de seus fornecedores em Mianmar, 22 marcas responderam à Humans Right Watch, mas, desde o golpe, apenas duas empresas cessaram sua produção no país (Tesco e ALDI South). Muitas alegam que a permanência é possível e as operações devem continuar para “preservar empregos”. No entanto, em julho de 2021, a Aliança Trabalhista de Mianmar (IndustriALL) – cujos 16 membros representam praticamente todo o movimento trabalhista do país – pediu que todas as multinacionais se retirassem responsavelmente de Mianmar até que a democracia fosse restaurada. O apelo foi apoiado por uma coalizão de mais de 200 organizações, que também pede à Comissão da União Européia a suspensão do acesso de Mianmar aos mercados europeus por meio de seu programa de comércio Everything but Arms, a fim de garantir que os militares não possam mais lucrar com as exportações para a UE. Todos os apelos foram ignorados.