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Novo Relatório Relaciona Destruição da Natureza com o Surgimento da Covid-19

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  • Juliana Aguilera
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De dezembro de 2019 a maio de 2020, mais de 6 milhões de pessoas contraíram a Covid-19 em todo o mundo. Até o dia 22 de junho, o número de mortos já havia passado de 152 mil. Para entender como chegamos aqui e quais os possíveis caminhos sustentáveis para a retomada da economia, o WWF publicou o relatório Covid-19: Chamada Urgente para Proteger as Pessoas e a Natureza em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e Organização das Nações Unidas (ONU). 

O estudo deixa claro que a pandemia do novo coronavírus é apenas mais uma na longa lista de doenças emergentes que continuarão a minar a estabilidade global caso não mudemos nossa relação predatória com a Natureza.

O tema não é novidade no meio acadêmico. Assim como o coronavírus foi previsto, também existem diversos estudos publicados sobre como as ações humanas sobre o meio ambiente geram um desequilíbrio que aumenta a probabilidade de propagação de novas doenças zoonóticas. Este sistema econômico predatório é o resultado de anos de políticas mitigatórias fracassadas e inação política. A crise provocada pela Covid-19 deixa claro que a nossa sociedade e a Natureza estão intimamente ligados e que nossa exploração do mundo natural não só põe em risco a vida selvagem, como também aumenta o contato de outros seres, como vírus, com os seres humanos. Os resultados disso estamos presenciando neste momento.

Esse contato pode ser feito diretamente (entre vírus e seres humanos) mas, em casos como da Covid-19, Ebola e Sars (falaremos mais adiante), ele se dá principalmente pelo contato da vida selvagem com um outro animal intermediário invasor do seu habitat, mais precisamente e comumente, o gado. Segundo o relatório, a frequência de doenças originárias em animais e transmitidas às pessoas aumentou drasticamente ao longo do século XX, tendo, em média, cerca de 3 a 4 novas doenças a cada ano. Nos últimos 30 anos, aproximadamente 60-70% das novas doenças que surgiram em humanos tiveram origem zoonótica.

“Nos últimos 30 anos, aproximadamente 60-70% das novas doenças que surgiram em humanos tiveram origem zoonótica”

O motivo destas curvas ascendentes se dá pelo aumento do contato entre ser humano e espécies selvagens motivado por dois fatores principais. Primeiro, por conta da crescente demanda por sistemas alimentares insustentáveis e o impulsionamento da conversão de vegetação nativa em pastagens e terras para agricultura. Em segundo lugar estão os padrões inadequados de segurança alimentar, incluindo permissão de comércio e consumo de espécies selvagens de alto risco.

Invasão do habitat

A produção e consumo de carne estão intimamente ligados a este debate, tendo em visto que a vegetação nativa de diversos biomas – por aqui, Cerrado e Amazônia, em especial – está sendo desmatada para a criação de pastos e monoculturas de soja. Este cenário não só desestabiliza o equilíbrio natural do ambiente como também aumenta as interações da vida selvagem, gado e seres humanos. Desde 1990, 178 milhões de hectares de florestas foram desmatados, o que equivale ao tamanho da Líbia, 18º maior país do mundo.

A maioria das perdas de habitats está associada à agricultura de três commodities: carne bovina, soja e óleo de palma. Falamos, em especial, dos impactos ambientais das fazendas de gado aqui. A conversão de terras para atividades agrícolas causou 70% de toda perda de biodiversidade do planeta e metade da perda da cobertura vegetal global. Esta destruição ambiental é facilmente ligada ao surto de doenças zoonóticas, como o caso do extenso desmatamento nas regiões oeste e central da África, que ocasionou vários surtos de Ebola.

As origens exatas da Covid-19 ainda não são claras, mas todas as evidências disponíveis e analisadas, não só por este relatório, apontam a causa zoonótica. O que nos leva ao segundo fator: o consumo impróprio de animais selvagens. O aumento dos riscos de contração de doenças provindas de animais podem aparecer de diversos modos: seja no manuseio incorreto de sua carne, ou quando tais animais, ainda vivos, são expostos à ambientes insalubres, como os tradicionais mercados asiáticos de carne fresca que têm versões similares em todo o mundo (e se diferem menos do que gostaríamos de imaginar das tradicionais indústrias de carnes ocidentais). O WWF contabiliza que roedores conseguem transportar 85 tipos de doenças zoonóticas conhecidas, carnívoros 83, primatas 61, ungulados 52, morcegos 25 e musaranhos 21.

A carne silvestre não é vista somente como uma necessidade, mas também como iguaria ou símbolo de status. Em 2018, em restaurantes elegantes do Vietnã, era possível encontrar a carne de pangolim por cerca de US$ 300 (R$ 1.545) por quilo. Carnes de animais silvestres são, muitas vezes, encaminhadas para restaurantes e hotéis de luxo. Retirados do meio selvagem e levados a áreas urbanas, eles correm o risco de transmitir doenças para toda rede de suprimento. É importante notar que muitas vezes o animal que transmite – portador natural da doença – e o animal hospedeiro intermediário podem não apresentar alterações negativas, mas eles servem como “vasos de mistura” onde acontece uma variação genética da doença que é, assim, passada ao ser humano.

Infográfico de Transmissão // Modefica

O surgimento da Covid-19 está associado à uma doença predominante em morcegos-ferradura. Morcegos são atores frequentes no surgimento de novas doenças zoonóticas por conseguirem transportar altas cargas virais e eliminarem os vírus sem serem contaminados. Eles também vivem em colônias com dezenas de milhões de indivíduos, permitindo, assim, que o vírus se espalhe rapidamente. Os hospedeiros intermediários podem ser infectados ao serem expostos ao sangue, saliva, urina e fezes dos morcegos. Mas, antes de pensar em abatimento dos morcegos como solução, saiba que esta não é a melhor saída para impedir a propagação de futuras doenças zoonóticas. Abates podem levá-los a migrar para novas áreas, facilitando a propagação dos vírus. Este animal também é essencial para o controle de insetos e polinização de mais de 300 espécies de frutas.

O caso da Sars e Ebola

Voltar um pouco no tempo é essencial para entender o que já sabemos sobre doenças que se espalharam como a Covid-19 e como tais experiências podem contribuir para o momento atual. Em 2002, o vírus Sars-Cov se espalhou de um hospedeiro animal, que acredita-se ser o morcego-ferradura, para um animal intermediário, o gato de algália, e depois para humanos. A transmissão aconteceu na província de Guangdong, no sul da China e se espalhou para 26 países, resultando em mais de 8 mil casos em 2003. Quase 9% dos infectados – ou 700 pessoas – morreram.

“Em 2018, em restaurantes elegantes do Vietnã, era possível encontrar a carne de pangolim por cerca de US$ 300 por quilo. Carnes de animais silvestres são, muitas vezes, encaminhadas para restaurantes e hotéis de luxo”

Pesquisadores descobriram que um dos primeiros infectados estava envolvido na venda ou preparação do gato de algália para consumo. Também foi possível confirmar a transmissão do vírus por meio da carne de civeta em restaurantes no Cantão. Apesar dos pesquisadores não conseguirem afirmar que a transmissão inicial de animais para humanos aconteceu via mercado de animais silvestres, é provável que tais mercados e restaurantes tenham sido fundamental para a disseminação da Sars. A doença teve um impacto econômico global de US$ 41,5 bilhões (R$ 217,5 bilhões) – ou cerca de US$ 4 milhões (R$ 20,9 milhões) por caso – segundo o Banco Mundial.

Já a Ebola teve um surto em 2014 e segue até hoje contaminando seres humanos. O morcego foi, novamente, a espécie suspeita como reservatório e os primatas, os hospedeiros intermediários. Desde 2014, a doença matou aproximadamente 13.600 pessoas. O vírus é altamente infeccioso, com taxa de mortalidade de 50%. Muitos pesquisadores vinculam casos de surtos de Ebola com taxas de desmatamento na África Ocidental e Central. A Bacia do Congo, que contém 20% das florestas tropicais do mundo, perde cerca de 1 milhão de hectares de cobertura vegetal por ano, impulsionada pelo aumento de áreas para agricultura em larga escala. É importante notar que o desmatamento também implica no enfraquecimento e fragmentação de ecossistemas preservados. As estimativas dos impactos socioeconômicos do surto de Ebola de 2014-2016 foi de, pelo menos, US$ 2,8 bilhões (aproximadamente R$ 15 bilhões) para Serra Leoa, Guiné e Libéria, 33 semanas escolares perdidas, 12% de redução no volume de produção de culturas.

Resultados sociais e ações para um futuro sustentável

O aumento da possibilidade de novas doenças zoonóticas também impacta na vida de populações já vulneráveis, em sua maioria, indígenas e mulheres. No Brasil, a Covid-19 destacou como a saúde da população indígena é vulnerável em cenários de pandemia, tendo em vista que muitos vivem em áreas sem estruturas de atendimento hospitalar nas proximidades. O coronavírus também agrava a violência de gênero, tendo em vista que as mulheres precisam ficar confinadas em casa com seus agressores durante a quarentena. As mulheres também são afetadas pela dificuldade em acessar serviços de saúde como saúde materna, neonatal e infantil.

Como o modelo de monoculturas atual gera degradação ambiental, também é necessário falar do futuro no qual a escassez de alimento será uma realidade. Atualmente, os sistemas agrícolas, associados ao uso de agrotóxicos e fertilizantes, são responsáveis por 30% das emissões dos gases de efeito estufa. Por sua vez, essa somatória de fatores cria mais riscos para a saúde humana, como aumento da temperatura, insolação, desnutrição. Os modelos agrários atuais não só necessitam mudar por conta da crise climática, mas também por conta do cenário previsto pós coronavírus.

Com quase metade da força de trabalho do mundo correndo risco de perder seus meios de subsistência, se prevê um aumento de 135 milhões para 265 milhões de pessoas em risco de fome aguda, até o fim de 2020. Por conseguinte, existe também o risco do aumento de consumo de carne de animais selvagens. É necessário que as autoridades garantam às comunidades vulneráveis fontes seguras e sustentáveis de alimentos.

Para isto, o relatório lista uma série de ações a serem tomadas por governos, indústrias, organizações da sociedade civil e cidadãos. A começar pelos governos, o WWF recomenda: interromper o comércio de animais silvestres e aumentar a fiscalização de comércio ilegal dos mesmos; Introduzir e aplicar políticas para eliminar o desmatamento; Criar pacotes de recuperação econômica que assegurem uma transição verde e justa e facilitar o aumento de investimentos em modelos de negócios sustentáveis e resilientes; Apoiar comunidades vulneráveis para proteger seu segurança alimentar e meios de subsistência de maneiras sustentáveis e resilientes, incluindo o reconhecimento da terra dos povos indígenas e direitos da água.

Às empresas e indústrias: implementar e fortalecer todas as medidas ambientais voluntárias durante e após a crise; Entregar ações credíveis para diminuir a pegada ambiental na rede de suprimento de alimentos, incluindo a promoção de produção sustentável, garantindo a rastreabilidade do fornecedor até a origem e incentivando os consumidores a fazer escolhas alimentares sustentáveis; Desenvolver e implementar mecanismos financeiros inovadores e soluções que tenham resultados ambientais e sociais positivos; Apoiar políticas e legislação que garantem que toda produção e consumo de commodities agrícolas seja livre de desmatamento.

“Atualmente, os sistemas agrícolas, associados ao uso de agrotóxicos e fertilizantes, são responsáveis por 30% das emissões dos gases de efeito estufa. Por sua vez, essa somatória de fatores cria mais riscos para a saúde humana, como aumento da temperatura, insolação, desnutrição”

Às organizações da sociedade civil: apoiar comunidades vulneráveis diretamente afetadas pela crise e seus fatores ambientais, garantindo que elas sejam adequadamente representadas nos esforços de recuperação local; Trabalhar em conjunto com governos e indústrias para desenvolver soluções sustentáveis que reduzam os riscos de exploração ilegal de animais selvagens e transformar nossos sistemas alimentares; Aumentar a responsabilidade das instituições internacionais, governos e indústrias que não tomam medidas na crise.

Aos cidadãos: envolver-se com representantes governamentais para garantir seu compromisso com um novo acordo para com a Natureza e pessoas, ações para proteger os ecossistemas naturais e fortalecer seus compromissos com questões climáticas; Instigar indústrias a demonstrarem liderança por meio da diminuição de seus impactos na sociedade e meio ambiente; Mudar hábitos alimentares e de consumo e fazer escolhas mais sustentáveis.

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