Um estudo publicado na revista Land Use Policy aponta que o Cadastro Ambiental Rural (CAR) tem sido utilizado para grilagem nas terras do sul do estado do Amazonas. A reivindicação do CAR está ligada a alta de desmatamento nas cidades estudadas, registros ilegais e presença de rebanhos bovinos. Com histórico de presença em Terras Indígenas e Unidades de Conservação (UC), o estudo aponta que o CAR hoje é ferramenta de grilagem por não considerar as populações tradicionais, como os quilombolas. Invisibilizadas, elas se tornam mais sucetíveis as investidas de atividades predatórias ilegais, pondo em risco a vida e a preservação da sua identidade.
Segundo a Procuradoria Geral da República, o Cadastro Ambiental Rural foi criado pela Lei 12.651/2012 e regulamentado pela Instrução Normativa MMA 2, em 2014. É o primeiro passo para a obtenção da regularidade ambiental do imóvel e contém dados do proprietário, documentos de comprovação de propriedade ou posse, e informações georreferenciadas do perímetro do imóvel, das áreas de interesse social e das áreas de utilidade pública. Apesar do documento por si só não dar o direito à posse de terra, o estudo afirma que quando um proprietário se cadastra no Cadastro Ambiental Rural, este usa o documento vinculado ao seu CPF como uma “prova” substituta de propriedade da terra em caso de disputa.
A região estudada compreende as cidades de Apuí, Boca do Acre, Canutama, Humaltá, Lábrea, Manicor e Nova Aripuanã, no sul do Amazonas, uma porção de 20% do estado ou aproximadamente o tamanho da Itália. Em 2020, 80,6% dos novos desmatamentos no estado ocorreram nesses municípios – cidades que também detém 755 mil bois, um rebanho suficiente para encher 10 Maracañas. A conversão agrícola na região é rápida e, em 2021, 14,7% do desmatamento da porção brasileira da bacia aconteceu nessas cidades. O estudo aponta que “há 13.669 sinistros do CAR na região, totalizando 150 mil km², com sobreposições entre dois ou mais registros para 50% da área reivindicada”.
Interesses privados não apenas reinvidicam terras públicas não designadas, mas também terras tradicionais de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e áreas alocadas pelo governo para a conservação da biodiversidade. A investida rompe com diversas leis, como o artigo 4º da Lei 11.284/2006, que institui o Serviço Florestal Brasileiro e que sentencia que as “áreas públicas só podem ser designadas para a criação de unidades de conservação, comunidades extrativistas, não podendo se transformar em empreendimentos agrícolas comerciais”. A mensuração do estudo aponta que a maior parte das áreas de propriedades individuais com CAR estão em desacordo com a legislação brasileira.
Uma atenção aos valores investidos mostra como investimentos altamente capitalizados estão cada vez mais envolvidos na apropriação de terras. Três dos nove polígonos de desmatamento maiores que 1.500 ha desmatados a partir de 2019 estavam localizados dentro das reinvidicações do CAR. O custo do desmatamento e semeadura de pastagens gira em torno de US$ 171 (R$ 822) por hectare, valendo, então, até US$ 367.650 (R$ 1.768.40). Essas reinvidicações ocorrem em espaços longe das estradas principais, desempenhando, assim, um papel fundamental para empurrar a fronteira do desmatamento para a floresta.
A omissão dos quilombos no Cadastro Ambiental Rural
Desde sua criação, o Cadastro Ambiental Rural excluiu a população quilombola, afirma Francisco Chagas, assessor da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) e morador do Quilombo Caboclo (PI). “Ele não especificou no Sistema Nacional de Cadastro uma aba, um local, para que comunidades quilombolas e tradicionais realizassem a inscrição do seu território, uma vez que o modo de uso e ocupação, suas formas de vivência, são diferentes da área de imóveis rural”, explica.
Foi somente em 2015 que a CONAQ conseguiu iniciar um debate com o poder público em torno do CAR e do Código Florestal Brasileiro. Em 2018, foi feito a aba de Povos e Comunidades Tradicionais (PCT), mas, segundo Francisco, a aba ainda restringe a possibilidade de saber o que são comunidades tradicionais, pois não existe no sistema um lugar onde se possa fazer uma leitura dos quilombos cadastrados. “Se você fazer uma busca, não vai conseguir compreender o que está ali público”, afirma, “nós temos apenas 3.418 inscrições de PCT, sendo que o IBGE estima mais de 6.023 localidades quilombolas no país”. Francisco salienta que essa população está distribuida em mais de 1.674 cidades, 30% dos municípios do país.
Nos quilombos rurais, a situação é mais precarizada. Segundo Claudemilson de Oliveira, quilombola do Quilombo Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa, em Itacotiara (AM), existem sobreposições de áreas municipais, federais, particulares. No caso do quilombo no qual mora, existe uma Área de Proteção Ambiental (APA) registrada no mesmo local. O quilombro do Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa faz parte de uma pequena lista de quilombos reconhecidos pela Fundação Palmares no estado do Amazonas. Tendo conquistado sua certificação em 2014, é um dos mais bem documentados da Amazônia, com uma história que remete a 1870.
Claudemilson conta sobre os 24 escravos livres 1Após a Lei Eusébio de Queirós ser sancionada, em 1850, apesar do tráfico de escravos ter se tornado proibido, ainda houveram tentativas de continuar com a atividade. Os escravos capturados pelo governo de Dom Pedro II eram chamados de “escravos livres”, tutelados pelo império, aprendiam ofícios e eram encaminhados para serviços públicos, ficando nessa condição por uma média de 14 anos. Após esse período, ganhavam sua carta de alforria. que vieram de Salvador e de Pernambuco para trabalhar em uma colônia em Itaquatira: “em 1860, a colônia veio a falir e muitos desses africanos não tinham condição de comprar terra na cidade. Eles resolveram migrar para um lago chamado Lago de Serpa e vivem lá até hoje”.
Para o quilombola, a comunidade vê o CAR com estranhamento, pois é uma política pública que viabiliza a posse da terra, mas não os representa. “Eles criam uma série de critérios que muitas vezes o pequeno poceiro, o pequeno quilombola não tem condições de atender”, defende. O ideal, segundo Claudemilson, seria que o CAR se ajustasse as especificidades de cada região e bioma brasileiro. Somente na Amazônia, ele resalta, existe um universo de habitats.
A CONAQ estima que menos de 20% dos territórios quilombolas sejam cadastrados no CAR coletivo. Criado em uma lógica de ocupação privada da terra, a validação dos territórios também segue em ritmo lento. Um estudo de 2017, realizado pelo IPAM e Ecodebate, apontou que nos primeiros anos de implementação, o cadastro foi efetivo no combate ao desmatamento nas pequenas propriedades. Contudo, com a demora nas emissões de multas de infrações, esse efeito positivo se perdeu. A maior parte das áreas de propriedades individuais com CAR estão em desacordo com a legislação brasileira.
Já um documento de 2019 avaliou os caminhos para a validação do Cadastro Ambiental Rural em estados da Amazônia e Cerrado e constatou que, de modo geral, os órgãos estaduais competentes enfrentam limitações que comprometem a validação dos cadastros, detêm poucas ferramentas de transparência e procedimentos de análise normatizados. Com isso, o cenário é pouco positivo: números de 2020 do Ministério Público Federal mostram que o Amazonas está em 3º lugar no ranking de propriedades inscritas no CAR e sobrepostas a terras indígenas – um total de 1.163.
Na velocidade atual, ou melhor, na inércia atual, a ONG Terras de Direito chega a calcular até 600 anos para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) titular todos os territórios quilombolas. “Da forma que está hoje, o CAR contribuirá para que as comunidades quilombolas percam território, se fragilizem no que se diz respeito a segurança dentro do território”, destaca Francisco, “contribuirá para o enfraquecimento da segurança alimentar, vai demonstrar quanto o Brasil é racista, no ponto de vista técnico, filosófico, antropológico”.
Mulheres quilombolas e resistências
Para pesquisadora Joana Freitas, pode até parecer o slogan do “Resistir para Existir”, mas a resistência é uma uma característica inerente das mulheres quilombolas. “A gente só consegue perceber isso quando se aproxima dessas populações específicas”, explica. Em sua tese de mestrado, Joana conviveu com os quilombos de Barreirinhas (AM) e, agora, em seu doutorado em saúde pública na Amazônia da Fiocruz Amazônia, ela segue estudando sobre a saúde da mulher quilombola da região.
Seguindo os relatos de Francisco e Claudemilson, ela conta os reflexos da invisibilidade da população negra no Amazonas. “Tem a ver com esse imaginário das pessoas que não tem negros aqui, porque a escravidão não aconteceu na Amazônia da mesma forma que em outras regiões do Brasil”, reflete. Joana aponta que, até mesmo se buscarmos registros da época, não encontraremos muitos, pois os pesquisadores não se interessaram em estudar a presença de escravizados na Amazônia e Amazonas, por ela ser mais forte em outras regiões.
Com isso, serviços básicos deixam de assistir os quilombolas. “Mesmo as entidades que deveriam saber da sua existência, como as coordenações da secretaria da saúde, que possuem políticas específicas para as populações negras”, afirma. Nos quilombos de Barreirinha, existe uma Unidade Básica de Saúde (UBS) que está em construção na comunidade, sede dos quilombos, desde 2014. Até hoje a obra não foi concluida. Há também obras de poços artesianos paradas: “a comunidade espera para ter uma água potável. E eu tô falando de acesso a bens que são ditos como essenciais”, ressalta.
A resistência, para a mulher quilombola, guia sua vida, interseccionada a outros marcadores sociais, como raça, classe, religião e sexualidade. “Quando se trata de uma mulher negra e quilombola, esses eixos se interseccionam e vão produzir opressão, dominação, exclusão e discriminação”, explica.
Apesar disso, Joana também aponta que são as mulheres que estão a frente do movimento dos quilombos, tanto urbanos quando rurais. Elas participam de eventos, reuniões, oficinas, saem da comunidade para estudar, mas com o intuito de retornar ao local para seguir ali fortalecendo seu pertencimento. “Elas são responsáveis pela manutenção dos quilombos”, afirma, “são guardiãs da cultura, do cuidado com a família, da transmissão de valores. As parteiras, as benzedeiras, a tradição é muito forte”.
Recomendações
A previsão feita pelo estudo publicado na Land Use Policy é que as altas taxas de desmatamento continuem altas, devido ao aumento da inflação. O texto afirma que “a história nos diz que sempre que a inflação aumenta, os investimentos em aquisição de terras também aumentam”. O estudo destaca as ações legislativas que facilitam a apropriação privada de terras públicas, como medidas provisórias que acabaram se tornando leis.
O cadastro foi efetivo no combate ao desmatamento nas pequenas propriedades. Contudo, com a demora nas emissões de multas de infrações, esse efeito positivo se perdeu.
É o caso da MP 458, atual Lei nº 11.952/2009, que estabeleceu que a ocupação privada de terras públicas amazônicas anteriores a 2004 poderia ser titulada medianta o cumprimento de determinadas condições. Há também a MP 857, agora Lei nº 13.465/2017, que modificou mais de seis leis existentes para facilitar a consessão de títulos de terra para terras reinvidicadas ou ocupadas ilegalmente, e o projeto de lei 2.633/20, conhecida como Lei da Grilagem, que está parado no Senado.
Especialistas apontam que, para acelerar a validação do Cadastro Ambiental Rural com segurança jurídica e transparente, são necessárias ações como: ampliar a capacidade institucional, pois existe a carência de recursos humanos nos órgãos estaduais competentes; estabelecer procedimentos para análise claros e transparentes; obter bases de referência adequadas, tendo em vista que um dos grandes gargalos para muitos estados é a falta de bases de hidrografia com resolução compatível com a escala dos imóveis rurais; definir filtros e critérios de priorização de cadastros e implementar mecanismos de transparência.