Quando descrevemos assim, está implícito que a sua compra não diz respeito a mais ninguém, só a você e seu saldo junto à sua instituição bancária. Certo?
Mas agora vamos colocar de uma maneira diferente: você vai a uma loja, vê um sapato lindo e brilhante na vitrine e se pergunta “como será que esse sapato foi feito? como ele veio parar aqui”? Como você deve imaginar, o caminho é longo e há algumas possibilidades. Vamos pegar um sapato de couro da vaca para servir de exemplo.
Seja de uma marca grande ou pequena, dentro ou fora do shopping, importado ou nacional, a indústria de sapatos de couro depende totalmente da criação de gado para abate e obtenção das peles. Criação de gado que, por sua vez, está ligada ao desmatamento da Amazônia, mão de obra análoga à escravidão, genocídio indígena, mudanças climáticas, poluição das águas, desigualdade na distribuição de alimentos, sem mencionar muita crueldade.
Mas vamos além. Como a pele do boi ganhou cor, firmeza, brilho e a garantia de que não vai se decompor em cima dos nossos pés? Resumidamente, o couro foi curtido com uma boa dose de ingredientes sintéticos em um processo que está ligado a problemas de saúde de quem trabalha nessa indústria, poluição das águas e do solo. Comunidades ribeirinhas são afetadas aqui e aldeias inteiras que dependem das águas dos rios poluídos para sobreviver do outro lado do mundo.
Nesse momento você já deve ter percebido que comprar ou não um sapato (e qualquer outra coisa) envolve muito mais do que seu gosto pessoal e sua disponibilidade financeira. Envolve recursos naturais, que são de todos e necessários a todos, envolve recursos humanos e está intrinsecamente ligado à saúde de várias pessoas que você nem imaginava que existiam no processo de fazer o tal sapato. E claro, está ligado ao direito de existência do Outro de não ser visto como objeto e utilizado como matéria-prima.
Vamos continuar porque o processo não para por aí. O designer desenhou o modelo e escolheu o couro. O sapato agora vai para a produção. Isso pode acontecer num pequeno ateliê onde a montagem de cada sapato é feita de maneira artesanal, ou pode ser produzido em grandes fábricas em Novo Hamburgo (RS) e Franca (SP), por exemplo, ou ainda em fábricas na China, Bangladesh, Etiópia ou qualquer outro lugar do mundo. Condições de trabalho podem ser muito boas para os funcionários dessas fábricas, mas também podem ser muito, muito ruins.
Depois de prontos, os sapatos são despachados para várias lojas – via navio, avião ou caminhão – pelo mundo ou pelo país. Em caso de marcas pequenas e que produzem onde vendem, não há essa preocupação. Mas isso não é a maioria dos casos. Na maioria dos casos nossos sapatos viajam alguns quilômetros antes de chegar à loja envolvendo questões de poluição e também de mão de obra.
Nós poderíamos continuar essa narrativa para até depois da compra – quando não queremos mais o sapato e ou doamos ou jogamos no lixo. Mas até aqui é suficiente para entender o ponto: as coisas que nós compramos afetam direta ou indiretamente a vida de outras pessoas. Sempre. Sem exceção. Em um mundo globalizado isso nunca foi tão verdadeiro. Afetam inclusive nós, de maneira que nunca paramos para pensar, para muito além do nosso saldo financeiro.
Mesmo que a cadeia seja longa demais e algumas partes do processo de produção de nossos produtos sempre guardarão um ponto negativo, nós podemos – e devemos – pensar para além de nós e do nosso bolso em cada escolha de consumo. Precisamos realmente dar um passo à frente e assumir essa responsabilidade compartilhada. Especialmente se fazemos parte de uma fatia global que tem uma abundância de produtos em nossos armários (e não só; nas nossas geladeiras, nas nossas casas, etc).
No processo de globalização, perdemos nosso senso de comunidade. É hora de retomá-lo com uma visão muito mais expandida e sem fronteiras. E não devemos jamais fazer isso única e exclusivamente através da compra, mas a compra (ou a não-compra, a troca, o reuso) é também um dos meios pelos quais podemos fazer isso.
Você pode dizer que é difícil, que é impossível ou ainda que não tem acesso e não sabe por onde começar. Entretanto, é tudo uma questão de se abrir. E de prioridades. Nós vivemos em um momento muito interessante onde as pessoas estão cansadas das corporações, do trabalho sem propósito e do jeito que as coisas funcionam como um todo. É exatamente nesse momento que vemos florescer uma leva de pessoas que estão olhando para essas relações de produção e consumo, e tentando fazer diferente. Fazer diferente na maneira de criar, produzir, vender. Fazer diferente ao não comprar ou a não se render às últimas tendências ditadas pela indústria.
Quando nos unimos à Mais Alma, nosso entusiasmo veio exatamente por enxergar as possibilidades de um futuro próximo para um consumo mais ético e consciente – unido a uma dose de praticidade da qual todos precisamos. Um espaço dedicado a incentivar a descentralização criativa – um dos principais pilares de atuação do Modefica, sempre se questionando, reavaliando e entendendo que o caminho é longo, desafiador, difícil, porém possível e cheio de boas surpresas. Assim como nós.
Então, a partir de hoje, não esqueça: pense no que está por trás dos seus produtos, das suas coisas. Questione as marcas e, sempre que possível, tente fazer escolhas melhores; pensando para muito além do preço.
A Mais Alma é mais uma iniciativa de #mulheresnamodaconsciente. Julia e Ana também participaram da Mentoria Modefica 2016. Lembrando que o Modefica busca se unir só a marcas e pessoas que estão fazendo diferente. Apoiá-las é também apoiar o Modefica.