A ideia do fair trade, ou comércio justo como é traduzido para o português, é antiga e começou de maneira solta na década de 70. Oficialmente, a International Federation of Alternative Trade (IFAT) nasceu em 1989 na Holanda. Já a Fairtrade Labelling Organizations International (FLO) foi formalizada na Alemanha em 1997. Essas são as duas principais organizações de incentivo, certificação e implementação do comércio justo.
A definição de “fair trade” foi oficializada em 2001 “como uma parceria comercial baseada em diálogo, transparência e respeito, que busca maior equidade no comércio internacional, contribuindo para o desenvolvimento sustentável por meio de melhores condições de troca e garantia dos direitos para produtores e trabalhadores à margem do mercado, principalmente no Hemisfério Sul.”
20 milhões de toneladas de algodão são produzidas anualmente em 90 países. Iniciativas de comércio justo para o algodão buscam assegurar apoio aos produtores e respeito ao meio ambiente // Reprodução
Apesar da maior parte das marcas de moda no Brasil usarem o termo como forma de dizer que cumprem as leis com relação à mão de obra, comércio justo não é a mesma coisa que pagar os funcionários dentro das leis trabalhistas ou terceirizar a produção para uma empresa que não tem práticas análogas à escravidão. Isso é o mínimo. As práticas de comércio justo são muito mais complexas do que isso e exigem comprometimento, dedicação e acompanhamento.
Tanto no site do Sebrae quanto no site da Fairtrade International ou da International Federation of Alternative Trade é possível encontrar os princípios que devem reger uma relação comercial considerada justa:
1. Transparência e corresponsabilidade na gestão da cadeia produtiva e comercial;
2. Relação de longo prazo que ofereça treinamento e apoio aos produtores e acesso às informações do mercado;
3. Pagamento de preço justo no recebimento do produto, além de um bônus que deve beneficiar toda a comunidade, e de financiamento da produção ou do plantio, ou a antecipação do pagamento da safra, quando necessário;
4. Organização democrática dos produtores em cooperativas ou associações;
5. Respeito à legislação e às normas (por exemplo, trabalhistas) nacionais e internacionais;
6. O ambiente de trabalho deve ser seguro e as crianças devem frequentar a escola;
7. O meio ambiente deve ser respeitado.
O sistema de certificação do comércio justo, seja da FLO seja do IFTA, tem como principal foco produtos agrícolas e com altas taxas de mão de obra escrava e infantil, como é o caso do café, cacau, açúcar, algodão, entre outros. Produtos de comércio justo são certificados, assim como acontece com produtos orgânicos. No Brasil, são pouquíssimos os produtos certificados com o selo de comércio justo, apenas alguns produtos importados, como é o caso, por exemplo, do chocolate importado Zotter e do cacau dos produtos da Ikove.
Maurine é uma das artesãs do ITC Ethical Fashion Initiative. Antes, Maurine ficava em casa, dependia do marido, não tinha voz e se sentia inferior e tímida. Desde que começou a trabalhar como artesã e ter a própria renda, ela ganhou voz dentro de casa e participa das decisões da família // Reprodução
Na moda e a nível global também é difícil achar marcas que produzam sob as regulamentações do comércio justo, principalmente quando falamos para além da produção de algodão. Marcas como Stella McCartney, Vivienne Westwood e a brasileira Osklen já fizeram (ou fazem) linhas que podem ser consideradas como “comércio justo” produzidas em parceria com a ITC Ethical Fashion Initiative. O programa do Centro de Comércio Internacional (International Trade Centre), a agência conjunta das Nações Unidas e da Organização Mundial do Comércio com sede em Genebra, tem como objetivo conectar artesãos em situação de vulnerabilidade social (90% mulheres) de comunidades Haitianas e Africanas com a indústria mundial da moda. Diferente da FLO e da IFTA, a ITC Ethical Fashion Initiative não é uma certificadora, mas sim uma facilitadora responsável por conectar e acompanhar o trabalho entre designers e comunidades.
Outra marca conhecida por seu trabalho de comércio justo e considerada pioneira no assunto na área de moda é a inglesa People Tree. Fundanda em 1991 por Safia Minney, no Japão, foi a primeira marca de moda a receber o certificado WFTO. Desde o começo, a People Tree vem trabalhando lado a lado da sua cadeia de produção para garantir um comércio justo e transformar a vida das pessoas por meio da produção dos produtos da empresa.
No Brasil, moda com os padrões do comércio justo é raridade. Vemos algumas marcas trabalhando de perto com comunidades, principalmente no Amazonas e no cerrado ou em zonas rurais, e povos indígenas, ou junto com cooperativas de costureiras, bordadeiras e artesãs. Mas temos muitos passos para dar antes de conseguirmos tornar o comércio justo tão comum quanto o marketing das marcas tem feito parecer.
Flávia Aranha e Amaria mostra o trabalho da estilista com o grupo de artesãs de Muzambinho.
Ou seja, já deu pra entender que comércio justo não é a mesma coisa do que pagar bons salários aos trabalhadores ou pagar o valor solicitado pelas empresas que terceirizam a produção. Comércio justo compreende responsabilidade social com pessoas que precisam aprender técnicas e habilidades para, por meio do trabalho, sair da margem e ascender socialmente. Ao mesmo tempo, comércio justo é também sobre responsabilidade ambiental com o entorno, além de atuação em cooperativas e associações independentes.
Como cidadão e consumidor, se você ver por ai uma marca falando em comércio justou ou “fair trade”, vale questionar o que a empresa quer dizer com isso. Afinal, é importante entender a ideia que está sendo transmita e comprada. Falar em comércio justo é falar em um empenho muito maior em transformar a sociedade e a vida das pessoas. Quando uma marca “vende” essa ideia, ela tem que, de fato, entregar o prometido.
Como marca, é crucial entender para que os termos existem e o que eles significam antes de sair por ai ‘marketando’ em cima deles. Caso contrário, caminhamos rumo à famosa lavagem verde, que aconteceu, e acontece até hoje, com o termo “sustentabilidade”. Para as pequenas marcas, que têm muito mais controle do próprio negócio e não têm milhares de departamentos para integrar, é ainda pior ver essa “lavagem verde e ética” sendo usada em momentos bem oportunos como o que vivemos, com as pessoas cada vez mais curiosas e questionadoras sobre o impacto do próprio consumo.