Sob o contexto de imposição neoliberal na década de 1990, com todas as suas contradições — especialmente para os povos do Sul global —, o livro Ecofeminismo, de Maria Mies e Vandana Shiva, foi publicado pela primeira vez em 1993. A princípio, o leitor e a leitora podem ser induzidos a supor que a obra se encerra no anúncio de mais uma vertente do feminismo, o que já seria muito importante; mas a obra vai muito além disso, pois lança os fundamentos para compreender os grandes dilemas da humanidade na atualidade histórica de crise metabólica do capital e o protagonismo das mulheres para sua superação.
A acumulação capitalista sempre ocorre, mas não ocorre sobre as mesmas bases e da mesma forma. A crise estrutural do sistema do capital, iniciada a partir da década de 1970, provocou um novo padrão crescentemente predatório e destrutivo na acumulação capitalista, rearticulando forças políticas e econômicas em torno do comando transnacional sobre os países, seus povos e, sobretudo, sobre os bens naturais. Esse movimento ocorreu sob o contexto da processualidade, globalização, mundialização e predominância da financeirização da economia.
A crise do sistema foi deflagrada pela redução da margem de viabilidade produtiva do capital, o que acirrou a contradição objetiva na relação capital e trabalho. Isso desencadeou, por um lado, uma tendência à precarização generalizada nas relações de trabalho, somada ao desemprego em massa, e por outro, uma intensificação da mercantilização da natureza e todas as suas formas de vida, com a ascensão da cadeia global de agronegócios sob controle transnacional.
Principalmente para os países do Sul global, o receituário neoliberal envolveu um vasto processo de desregulamentação, privatização e flexibilização nas relações de trabalho, mas também expropriação dos povos do campo e comunidades tradicionais com seus territórios e modos de vida. Tal processo orientou a atuação adequada dos Estados nacionais e seus governos para se alinharem aos ditames do capital, impulsionado por sua crise sistêmica.
No Brasil, houve forte investimento em infraestrutura, com a ampliação de meios comerciais que favoreceram a expansão do agronegócio, principalmente para a exportação de commodities agrícolas e minerais; expressivo direcionamento do aparato público de pesquisa científica aos interesses das empresas, especialmente na biotecnologia; reativação dinâmica do mercado de terras, com foco especial às terras públicas ou de territórios camponeses; e mudanças na política econômica, para favorecer o enriquecimento das transnacionais e solapar condições de reprodução social da maioria das populações.
Outras funções desempenhadas pelo Estado a serviço do capital foram o aumento dos aparatos de segurança e de militarização em defesa da propriedade privada e a deflagração de ações visando a subordinação de comunidades locais, em contexto rural e urbano.
Intensificaram-se a mercantilização da natureza, a extração de riquezas minerais, a corrida por fontes de energia e variadas formas de expropriação dos povos do campo, das águas e das florestas, com o saque de bens naturais e a destruição de conhecimentos ancestrais, em especial através da apropriação das sementes e consequente padronização sobre sua forma de ser, pautada pelas modificações genéticas e políticas nefastas de patenteamento e royalties.
A perspectiva que o livro nos traz para analisar os graves problemas da realidade é uma perspectiva feminista — e aqui voltamos a recorrer à força das sementes. Quando uma semente é colocada no solo, nos resta aguardar por sua germinação na expectativa de ver surgir plantas diversas, árvores e até mesmo florestas. Mas justamente aquele processo que os olhos humanos não veem é o que dá base para o surgimento da planta. É nesse momento que ocorre uma envolvente conspiração entre a semente, o solo e seus diversos microrganismos.
Da mesma forma, Maria Mies e Vandana Shiva souberam conspirar para que a perspectiva ecofeminista pudesse ser assumida por mulheres a partir de suas práticas, independentemente (a princípio) de sua filiação teórica. Em outras palavras, o ecofeminismo não é uma teoria academicista aprisionada em teses rígidas; ao contrário, é uma cuidadosa elaboração teórica de princípios formulados a partir da realidade e dos embates que as mulheres produzem na sua existência concreta, na luta pela sobrevivência de seus saberes e para se manterem vivas.
A partir da transição histórica das sociedades primitivas para as sociedades de classes foram desencadeados processos violentos e de manipulação ideológica para enquadrar os seres humanos a um tipo de conduta funcional à exploração do trabalho, na qual a subordinação de gênero e a classificação quanto a raça e etnia são elementos centrais.
Assim, através de diferentes modos de produção na história das sociedades de classes, o patriarcado persiste como estrutura hierarquizadora que organiza a vida e as relações humanas.
O ecofeminismo não é uma teoria academicista aprisionada em teses rígidas; ao contrário, é uma cuidadosa elaboração teórica de princípios formulados a partir da realidade e dos embates que as mulheres produzem na sua existência concreta, na luta pela sobrevivência de seus saberes e para se manterem vivas.
Ao ler ou reler o livro, podemos nos descobrir ecofeministas; mais, podemos nos sentir convidadas a seguir escrevendo coletivamente esta obra, refletindo sobre os desdobramentos das reflexões propostas pelas autoras à luz da atualidade e principalmente sobre a perspectiva ecofeminista que fomos semeando nos movimentos populares e nas várias trincheiras de luta que cavamos na academia, na ciência, nas artes, nas ruas e nos campos.
São muitos os processos ecofeministas em curso, e mesmo que não se reconheçam necessariamente nessa denominação, as mulheres da Via Campesina e do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) constroem na prática essa mesma perspectiva, seja do ponto de vista da leitura comum sobre a crise do capital e de sua consequência para os povos, seja na necessidade concreta de fazer a denúncia do modelo, apontar os responsáveis e ao mesmo tempo construir o anúncio da sociedade que queremos construir desde já.
O processo auto-organizativo das mulheres da Via Campesina forjou o surgimento do Feminismo Camponês e Popular, com identidade e revolucionário, em meados da primeira década do século XXI, buscando construir uma igualdade substantiva entre os sujeitos sociais da luta pela terra por reforma agrária e por soberania alimentar. Assim, fomos compreendendo que a luta contra a apropriação privada da vida deve ser acompanhada da luta pela emancipação humana, abarcando as diferenças e também as conexões entre sexo biológico, construção de identidade de gênero e orientação sexual diversa.
Na Via Campesina brasileira, o marco da perspectiva do Feminismo Camponês e Popular foi forjado em 2006, em Barra do Ribeiro, no estado do Rio Grande do Sul, numa ação contra os desertos verdes de monocultivos de eucalipto para produção de celulose da empresa Aracruz Celulose, com a denúncia da expropriação de comunidades indígenas, quilombolas e camponesas.
A ação das mulheres ocorreu durante a 2a Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), e na época muitas vozes da mídia, dos governos, dos ruralistas e de intelectuais se voltaram contra aquelas manifestantes, acusando-as de terem cometido um atentado contra a ciência.
Aqui temos uma impressionante demonstração de vínculos que se estabelecem entre a obra Ecofeminismo, com seu contundente questionamento da ciência a serviço do capital, e as acusações contra as mulheres da Via Campesina que ousaram questionar os desertos verdes e a formatação da vida pelas empresas transnacionais.
Após essa ação histórica, muitas outras ocorreram em diversas regiões do Brasil e do mundo, no marco do Dia Internacional das Mulheres, o 8 de março, questionando o modelo do agronegócio e da mineração e ao mesmo tempo exigindo a realização da reforma agrária, apontando a necessidade de se repensar as relações sociais, na defesa da agroecologia como mediadora da relação entre os seres humanos em contraposição ao modelo do capital.
Mas a semente que a Editora Luas lança com a publicação desta obra não encontra solo fértil apenas para a reverberação ascendente do eco-feminismo, pois as contradições apontadas no texto publicado em 1993 se acirraram e impuseram novos desafios à humanidade.
O contexto atual da publicação desta obra é de uma grave pandemia de covid-19, doença causada pelo novo coronavírus Sars-CoV-2 e suas mutações genéticas, que já deixou milhares de vítimas fatais pelo mundo e outras milhares que sobreviveram, mas convivem com sequelas da doença.
Ao mesmo tempo, se agrava o colapso climático, com o aumento da temperatura do planeta, eventos climáticos extremos, mudanças no regime das chuvas (provocando secas em determinadas regiões e enchentes em outras), além do fenômeno da desertificação, que avança em muitas localidades. Sem dúvida, a vida na Terra como a conhecemos está seriamente ameaçada, enquanto um restrito grupo de bilionários intensifica seus planos e aventuras colonizadoras em outras partes do Universo.
O impulso do capital para compensar suas perdas causadas pela crise estrutural tem efeito nefasto principalmente sobre os mais pobres, os despossuídos, os forçados a migrações permanentes, destacando-se os sujeitos sociais que carregam a interseccionalidade das opressões de classe, raça e gênero. O controle totalizante do capital tem racionalidade parcial, sugando os bens naturais e a força de trabalho até a exaustão.
Isso não é necessariamente novo, mas diferente do passado, no qual era possível o deslocamento de contradições para a periferia, agora temos um planeta dominado pela perversa lógica de reprodução do capital, e a busca por sua valorização (ou por repor suas perdas) torna as possibilidades de compensação mais restritas.
A produção industrial de alimentos e de criação animal tem tido uma terrível capacidade de desenvolver ambientes favoráveis à proliferação de doenças, seja pelo que consumimos num prato cada vez mais globabilizado e pouco diverso — com agrotóxicos, transgênicos e ultraprocessados —, seja pelo potencial de disseminação de diversos patógenos, sobretudo por meio do desmatamento, da destruição de florestas e de sua biodiversidade.
Empresas transnacionais, fundos de investimentos e seus asseclas no Estado lucram com o que comemos, com o jeito que vivemos e com a forma como adoecemos em massa. Assim, sabemos: os desafios são imensos; por outro lado, soluções paliativas ou falsos projetos ilusórios que agucem um desenvolvimentismo tão destrutivo podem ser rechaçados com o fortalecimento da luta coletiva.
Devemos exigir que os sistemas alimentares sejam socializados e que as necessidades humanas sejam radicalmente respeitadas — isso demandará de nós a ampliação de práticas agroecológicas, a proliferação de agroflorestas, a defesa da biodiversidade e a valorização da cultura ancestral dos povos, de suas sementes e modos de vida. Não existe luta efetiva de defesa ambiental que não defenda também os agricultores, as agricultoras e seus territórios.
Assim, podemos compreender o ecofeminismo como legado teórico e na luta de construção feminista, mas devemos sobretudo apreendê-lo como força vital e instrumento de combate que equilibra amor e indignação na reconstrução do ser humano como parte da natureza.
Esse texto foi escrito por Kelli Mafort como prefácio do livro “Ecofeminismo”, escrito por Maria Mies e Vandana Shiva, à venda pela editora Luas. Trecho publicado com permissão da Editora Luas. Acompanhe a @editoraluas para conferir os lançamentos. Kelli Mafort é Membra da Coordenação Nacional do MST, assentada da reforma agrária no estado de São Paulo. Graduada em Pedagogia, com mestrado e doutorado em Ciências Sociais pela FCLAR — UNESP Araraquara.