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Caprichos Sem Sentido: Marx Sobre Capital, Roupas e Moda

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Victória Lobo

9 min. tempo de leitura

Existem ritmos no capitalismo, que aqueles críticos mais ou menos próximos da tradição marxista - digamos, Walter Benjamin, Georg Simmel, Roland Barthes, Elizabeth Wilson - viram repetidos nos ritmos da moda. Tanto a moda quanto o capitalismo dependem da mudança e da produção de novidade. A moda estimula o consumo, razão pela qual Werner Sombart declarou-a "a criança favorita do capitalismo".

No entanto, algum tempo antes, em 1690, Nicholas Barbon propôs uma relação mútua entre moda e economia:

Em alguns lugares, é fixo e certo; como em toda a Ásia e na Espanha; mas na França, Inglaterra e em outros lugares, a vestimenta se altera; A moda ou a alteração do vestuário é uma grande promotora do comércio, porque ocasiona a expansão das roupas, antes que as antigas se desgastem: é o espírito e a vida do comércio; Promove circulação e dá um valor alternado a todos os tipos de mercadorias; mantém o grande corpo de comércio em movimento; é uma invenção vestir um homem, como se ele vivesse em uma primavera perpétua; ele nunca vê o outono de suas vestes.

Marx era um leitor do especulador financeiro Barbon, ou Bare Bones, como também era conhecido. Ele o citou nas primeiras páginas d’ O Capital ao discutir os “desejos da mente”. Para Marx, o modo capitalista de produção e consumo exige inovação perpétua, variação, suspensão. Foi assim que Marx e Engels o caracterizaram desde o início de sua parceria de escrita. O Manifesto Comunista (1848) contém uma de suas frases mais citadas: “Tudo o que é sólido derrete no ar”. O capitalismo requer novidade contínua, mesmo para manter as vendas dinamizadas, pois sua unidade celular é a mercadoria. A moda é o mecanismo pelo qual a novidade é entregue. Como moda, resume essa rotatividade constante, esse estímulo infinito à produção e ao consumo.

A opinião de Marx da moda como indústria parece ser completamente negativa. A configuração da moda, sua variação sazonal e quixotesca é um emblema do ritmo vertiginoso e dos reajustes repentinos da produção capitalista industrial, que encontramos n’O Capital com as seguintes palavras: ‘Os caprichos assassinos e sem sentido da moda’. Elas provocam a contratação e demissão de trabalhadores por capricho e estão associadas a uma “anarquia” geral da produção capitalista. Marx menciona “a estação” com sua “colocação repentina de grandes ordens que precisam ser executadas no menor tempo possível”.

O advento das ferrovias e telégrafos agrava e intensifica esse sistema. Marx cita um fabricante que viaja quinzenalmente de Glasgow, Manchester e Edimburgo para os armazéns atacadistas estocados por sua fábrica. Em vez de comprar do estoque, como antes, eles fazem pequenas encomendas que exigem execução imediata: ‘Anos atrás, sempre podíamos trabalhar em períodos de folga, para atender à demanda da próxima temporada, mas agora ninguém pode dizer de antemão qual será a demanda depois”. O trabalho e a renda dependem das fantasias da moda. A ironia é que aqueles trabalhando de acordo com a estação estão fabricando materiais de luxo, trabalhando com seda, por exemplo, enquanto os trabalhadores estão vestidos com trapos, pedaços de pano que são suas roupas há tanto tempo que mal se sustentam.

A indústria têxtil instala o sistema de exploração fabril (como um aparte, observe que há desvios etimológicos da palavra alemã para fábrica, fabrik, para a palavra inglesa para tecido ou tecido processado, fabric). A importância, juntamente com a energia a vapor e a fundição de ferro, da fabricação e processamento de têxteis na primeira Revolução Industrial – algodão automatizado, fiação de lã e fios nas fábricas – é testemunho do papel central da fabricação de têxteis no capitalismo industrial. Engels conhecia bem a indústria têxtil, pois seu pai era um fabricante de algodão. Ele forneceu a Marx os terríveis detalhes. Por baixo da moda está a exploração. Nas fábricas de algodão da Grã-Bretanha de meados do século XIX, homens, mulheres e crianças trabalhavam ganhando pouco, seis dias por semana, fiando algodão colhidos por escravos nos EUA. Nas fábricas de seda, o trabalho infantil era abusivo: turnos de dez horas e a isenção da educação obrigatória. Aparentemente, o toque leve necessário para trabalhar com a seda e sua textura delicada foi adquirido  pela introdução precoce à este trabalho.

Marx detalha como, em 1850, os Atos de Fábrica tentaram restringir algumas das piores práticas, mas certos negócios foram excluídos da legislação. Trabalhas com corantes e alvejantes ficaram sob a provisão da Lei apenas em 1860, e os fabricantes de rendas e meias em 1861. A Lei de 1860 declarou que, para os trabalhadores no setor de corantes e alvejantes, o dia útil seria de doze horas a partir de agosto de 1861 e  dez horas, a partir de agosto de 1862, que, na prática, significa dez horas e meia nos dias úteis e sete e meia aos sábados. Os fabricantes fizeram uma campanha para manter calandras e finalizadores isentos dessa contração do dia útil. Durante esse dia, qualquer que seja sua duração, as condições de trabalho eram punitivas. As meninas nas salas de secagem eram expostas a temperaturas sufocantes de 40ºC. Elas ficavam amontoadas, quinze mulheres, em uma pequena sala perto de um fogão à lenha, secando roupa e cambraia e trabalhando até altas horas da noite, dia após dia. Tuberculoso pulmonar, bronquite, irregularidade das funções uterinas, histeria em suas formas mais agravadas e reumatismo eram queixas comuns, de acordo com um relatório de 1862. Embora Marx observe as trabalhadoras que “o capital, em suas representações no parlamento, as pintaram como rubicundas e saudáveis, à maneira de Rubens”.

Pessoas ricas usavam moda. As pessoas pobres, naqueles dias, usavam apenas roupas e roupas tão baratas e de má qualidade quanto as que são vendidas hoje como fast fashion e disponíveis nas lojas de rua, muitas das quais seguem sendo feitas por mãos infantis mal pagas. As várias artimanhas da indústria têxtil fornecem um bom material para Marx acentuar as práticas malignas da indústria capitalista. Em O Capital, volume 3, Marx observa como o uso de resíduos, por exemplo, na indústria da lã, produz materiais abaixo do padrão que geram mais lucros ao longo do tempo, devido à sua qualidade inferior. Ele destaca as observações dos inspetores da fábrica:

Era uma vez uma prática comum desacreditar a preparação de desperdícios e trapos de lã para re-fabricação, mas o preconceito diminuiu completamente no que diz respeito ao comércio de má qualidade, que se tornou um ramo importante do comércio de lã de Yorkshire e, sem dúvida, o comércio das sobras de algodão será reconhecido da mesma maneira para  suprir um desejo admitido. Trinta anos depois, trapos de lã, isto é, pedaços de pano, roupas velhas etc., com nada além de lã, teriam uma média de cerca de 4,4 libras por tonelada de preço: nos últimos anos, eles passaram a valer £ 44 por tonelada, e a demanda por eles aumentou tanto que foram encontrados meios para a utilização de trapos de tecidos de algodão e lã misturados, destruindo o algodão e deixando a lã intacta, e agora milhares de agentes estão engajados na fabricação de artigos de má qualidade, dos quais o consumidor se beneficiou muito ao poder comprar tecidos de qualidade justa e média a um preço muito moderado. (Reports of Insp. Of Fact., Outubro de 1863, p. 107.) Até o final de 1862, a roupa rejuvenescida representava até um terço de todo o consumo de lã na indústria inglesa. (Reports of Insp. Of Fact., Outubro de 1862, p. 81.) Marx comenta ironicamente sobre isso, destacando as maneiras pelas quais esse modelo funciona para a vantagem dos vendedores de mercadorias:

O “grande benefício” para o “consumidor” é que suas roupas de má qualidade se desgastam em apenas um terço do tempo anterior e ficam surradas em um sexto deste tempo. A indústria da seda inglesa seguiu o mesmo caminho descendente. O consumo de seda crua genuína diminuiu um pouco entre 1839 e 1862, enquanto o de resíduos de seda dobrou. A maquinaria melhorada ajudou a fabricar uma seda útil para muitos propósitos a partir deste material que, de outra forma, não tinha valor.

A tecnologia, o barateamento da produção, os mercados voltados para a utilidade e não para o luxo, todos exercem influência na produção de tecidos e, eventualmente, permitem que algo chamado moda penetre nos escalões mais baixos da sociedade.

Todas as roupas, mesmo os itens mais modernos, acabam se transformando em trapos. Como tal, eles passam a desempenhar outro papel no relato de Marx. No 18º Brumaire de Louis Bonaparte (1852), Marx chamou a classe mais lamentável de “proletariado lumpen”; lumpen significa panos irregulares. O “proletariado lumpen” escapou das fileiras da classe trabalhadora e, em sua desordem, tornou-se organizável, potencialmente, pelas forças de reação, ou qualquer um que possa comprá-las com algumas salsichas.

Roupas não são apenas moda. São também uma necessidade universal produzida socialmente e, como tal, participam da dialética da produção e do consumo. A produção só tem significado quando o objeto é consumido, pelos sujeitos. Em Grundrisse, Marx expõe a dialética da produção e do consumo com referência específica ao vestuário. Um produto, uma peça de roupa, ele observa, torna-se um produto real, uma peça de roupa real apenas quando usada, desgastada, consumida. Através do uso, ela se desintegra e se nega. Isso estimula mais produção. O consumo cria a necessidade de nova produção: ‘O consumo cria o motivo da produção; ele também cria o objeto que é ativo na produção como objetivo determinante. ‘Uma peça de vestuário está novamente à mão quando Marx descreve os elementos fundamentais do sistema capitalista nas páginas iniciais d’O Capital. Aqui, casaco e linho são usados ​​para trabalhar com a forma de valor da mercadoria, com suas qualificações como equivalentes, relativas, uso e troca.

O vestuário é uma necessidade histórica, ou uma convenção social através da qual o capitalismo se realiza em todos os estratos da sociedade. A moda, para Marx, porém, está associada especificamente às estratificações de classe do modo de produção capitalista. Ilustrativo de classe, é apresentada por Marx metaforicamente. Discutindo a primeira República Francesa, ele observa como “era apenas um novo vestido de noite para a velha sociedade burguesa”. Moda é ocultação, uma máscara que muda a superfície, mas não a situação principal. A próxima geração de negociantes de poder, políticos franceses que estabeleceram a sociedade burguesa moderna de 1789 a 1814, fez o mesmo, de acordo com Marx, copiando as copiadoras, envolvendo-se nas ‘tradições clássicas austeras da República Romana’, em ‘traje romano’ e ‘slogans romanos’. Essas são ‘auto-ilusões’ necessárias para ocultar o conteúdo parcial e puramente burguês de suas disputas e manter seu entusiasmo em alto nível, apropriado a uma grande tragédia histórica. Qualquer materialidade original é obscurecida, pois se torna uma cifra, não algo produzido nas grandes fábricas do mundo e consumido em todos os seus cantos. O que é produção trágica se torna uma simulação ridícula.

A crítica da enganação da moda através da superfície é replicada na tese da manipulação capitalista de necessidades e desejos, uma visão do marxismo vindouro, a crítica do fetiche das mercadorias por Lukacs, Benjamin, Adorno, Debord, Haug e muitos outros, como criticamente compreenderam como uma população, concebida como consumidor, é atraída pela estética sensual das mercadorias. Está preparado o cenário para toda a moda que está por vir,  e por vir em suas formas de massa e elevação, e para manter as rodas do capitalismo girando.

Texto escrito por Esther Leslie, Professora de Estética Política em Birkbeck, na Universidade de Londres, e publicado originalmente no Culture Matters. Foi traduzido com autorização pelo Modefica.

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