O Brasil, “celeiro do mundo”, segue sendo um dos principais produtores de soja e algodão – culturas que também se encontram intimamente ligadas por estarem em um sistema rotativo. Um estudo realizado por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, Insper e Universidade de Princeton analisou o efeito do uso do glifosato na saúde de populações próximas a locais de produção de soja. Embora a menção seja à soja, além da produção intercalada entre cotonicultura e soja, a produção de algodão no Brasil é a que mais consome agrotóxico por hectare, sobretudo o glifosato. O artigo aponta que o agrotóxico não só é encontrado em áreas distantes dos locais de aplicação – por cair no fluxo de água nas bacias hidrográficas – como também causa aumento na taxa de mortalidade infantil, na incidência de nascimentos prematuros e na frequência de nascimentos com baixo peso.
O trabalho é o primeiro a documentar o tipo de externalidade de longo alcance dos agrotóxicos pela contaminação de corpos d’água. Áreas à jusante de regiões que experimentaram altos ganhos de produtividade em soja após a introdução do pacote tecnológico de organismos geneticamente modificados (OGM) e glifosato observam aumentos relativos na mortalidade infantil.
Utilizando dados de 2000 e 2010 do Ministério da Saúde sobre nascimento e mortalidade e informações sobre a estrutura de bacias hidrográficas da Agência Nacional de Águas (ANA) e dados auxiliares, o documento descobriu que o glifosato aumenta em 5% a média da taxa de mortalidade infantil nas áreas contaminadas pelo agroquímico. Isso corresponde a uma média anual de 503 óbitos infantis por ano. O período no qual o aumento da mortalidade infantil e seus padrões cruzado com características de solo, chuva, fonte de água potável local e causa da morte batem com o que seria esperado da contaminação do abastecimento de água pelo glifosato aplicado na produção de soja.
O glifosato aumenta em 5% a média da taxa de mortalidade infantil nas áreas contaminadas pelo agroquímico. Isso corresponde a uma média anual de 503 óbitos infantis por ano.
O estudo ainda salienta que “como estamos observando áreas distantes dos locais de uso e nos concentrando apenas na mortalidade infantil, esse número provavelmente subestima a externalidade geral do uso do glifosato na saúde humana”.
Ponta do iceberg
O glifosato é classificado como “pouco tóxico”, sendo posto na classe IV – entre I a IV, no qual I é o mais tóxico. Sendo um organofosforado, é considerado de rápida degradação ambiental. Essa classificação é apoiada por testes em laboratórios, mas como o artigo mencionado acima defende, “o glifosato pode afetar as populações humanas em um cenário do mundo real, nos níveis de uso tipicamente observados na agricultura”. Existe ainda uma “toxicidade subclínica”: o efeito sobre as populações em geral, não sujeitas ao envenenamento direto, mas de baixo nível de exposição por meio de ingestão de água ou alimentos.
O entendimento do envenenamento agudo é considerado apenas a ponta visível de um iceberg, tendo em vista que os agrotóxicos são capazes de causar uma ampla gama de efeitos assintomáticos em níveis de exposição muito baixos. O estudo aponta que mesmo populações que vivem em áreas urbanas apresentam pequena concentração de agrotóxicos em seus corpos.
Considerado o herbicida mais usado na história da humanidade, o glifosato correspondeu, em 2017, a 30% do valor agregado do mercado internacional de herbicidas. Nos Estados Unidos, o químico representa mais de 50% do uso de herbicidas, na União Europeia, onde é fortemente controlado, ele responde por 34% do total. Já o Brasil, que altera com os Estados Unidos como maior produtor de soja e algodão do mundo, o glifosato corresponde a 62% do uso total de herbicidas e mais de 35% do total de pesticidas, segundo as médias de 2009 a 2016.
Já o Brasil, que altera com os Estados Unidos como maior produtor de soja e algodão do mundo, o glifosato corresponde a 62% do uso total de herbicidas e mais de 35% do total de pesticidas, segundo as médias de 2009 a 2016.
Desde o desenvolvimento de sementes geneticamente modificadas resistentes ao agrotóxico, em meados dos anos 90, seu uso aumentou quinze vezes em todo o mundo. Especialistas temem que, com o desenvolvimento contínuo de novas variedades, sua aplicação ainda possa crescer 800% entre 2017 e 2025. Desde sua introdução no Brasil em meados dos anos 2000, o agrotóxico desbancou outros 40 tipos de herbicidas e levou o país de uma posição marginal a uma de liderança no mercado mundial da soja.
Cenário brasileiro
Nos últimos dois anos, foram aprovados 1.411 produtos agrotóxicos no país, totalizando 3.477 pesticidas no mercado, sendo 40% deles aprovados nos pouco mais de mil dias da Gestão Bolsonaro. Já em 8 de outubro, via decreto 10.833/2021, o presidente Bolsonaro alterou importantes tópicos da Lei dos Agrotóxicos de 1989. O decreto muito se assemelha com o PL 6299/02, conhecido como PL do Veneno, de autoria do senador federal Blairo Maggi, acionista da Amaggi.
A partir de agora, o Ministério da Agricultura passa a decidir se o processo de avaliação do químico será classificado como prioritário ou ordinário. Caso marcado como prioritário, novos produtos têm até 12 meses para serem avaliados pelos três órgãos competentes – Ministério da Agricultura, Anvisa e Ibama -, já genéricos de um já utilizado aqui, como o glifosato, serão contabilizados em seis meses. No caso da tramitação ordinária, se considera até 3 anos para novos produtos e até 2 anos para genéricos.
Anteriormente ao decreto, o processo levava até seis anos. O documento também aponta que substâncias proibidas de serem utilizadas e produzidas no Brasil agora poderão ser utilizadas em dose considerada “segura” para uso. O governo defende que os produtos mais “tecnológicos” e menos tóxicos irão reduzir os custos para os produtores.
Porém, especialistas afirmam que o decreto é ilegal e inconstituicional na forma e conteúdo, tendo em vista que foi feito sem a participação do Congresso Nacional ou da sociedade civil. Para comprovar a ilegalidade do ato, a Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida identificou 17 principais mudanças e retrocessos, como a possibilidade de uso de agrotóxicos vencidos, o fato de que o decreto prevê sistema de informação, mas não assegura transparência, e de que as empresas só precisarão fornecer dados sobre vendas uma vez por ano e apenas ao Executivo Federal.
No final de outubro, 135 pesquisadores e mais de cem organizações assinaram uma nota técnica para alertar sobre os graves impactos socioambientais que a medida trará à agricultura brasileira e à sociedade como um todo. Karen Friederich, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz e membro do grupo temático Saúde e Ambiente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) registra a ação como um retrocesso que dificulta o acesso a informações relevantes para a sociedade e permite que sejam registrados produtos muito mais tóxicos. Karen ainda salienta que “estamos indo na contramão de outros países que buscam fortalecer a produção de alimentos de forma saudável, para quem come e quem planta”.
Doenças associadas
Estudos dos últimos anos associam o glifosato a mais de 26 doenças – que podem ser contraídas pela exposição incorreta ao químico via água (ingestão e banho), ar ou alimentos. Como constatado pelo estudo citado anteriormente, o glifosato afeta as células da placenta humana e pode, portanto, afetar a nutrição e oxigenação in utero, possivelmente interrompendo o crescimento fetal. Por conta da atividade desreguladora endócrina, o químico também pode gerar problemas de malformação – tais condições refletem na mortalidade infantil.
Outras complicações encontrada entre bebês são problemas respiratórios, como a síndrome da angústia respiratória e doença pulmonar crônica, nascimento prematuro, com baixo peso, desequilíbrio de estrógeno, afetando o desenvolvimento das células testiculares e da produção de testosterona, apoptose 1 morte celular programada; É diferente de necrose, na qual as células morrem por causa de uma lesão. e necrose de células embrionárias, umbilicais e placentárias. Uma pesquisa realizada em 2017 com mães puérperas no Piauí também detectou a presença de glifosato no leite materno em 64% das que vivem perto de uma área de produção agrícola.
Municípios que fazem uso de fontes de água superficiais são mais afetados do que os que usam águas subterrâneas. A água subterrânea é mais adequada para consumo humano por possuir uma série de processos físico-químicos purificadores. Um estudo publicado em 2019, pela Universidad de Antioquia, Colombia, demonstrou que o glifosato afeta negativamente a mobilidade e algumas características funcionais dos espermatozóides, como potencial mitocondrial e DNA.
Já o artigo “O desafio das agências reguladoras ao redor do mundo no uso do glifosato” aponta o risco carcinogênico do químico, salientando que essa informação é reconhecida pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer da Organização Mundial da Saúde (OMS). O documento também cita os seguintes riscos de desenvolvimento de doenças: intolerância ao glúten; deficiências em ferro, cobalto, cobre, molibdênio e outros metais raros associadas à doença celíaca 2doença autoimune causada pela intolerância ao glúten ; Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDHA); hipotireoidismo; doença de Parkinson; glaucoma; osteoporose; esclerose lateral amiotrófica e lupus.
A lista de doenças associadas ao glifosato continua com o artigo “Campeão de Vendas, Cientificamente o Glifosato é um Agrotóxico Perigoso”, publicado em 2020. Ao bloquear processos metabólicos das bactérias do trato intestinal, o químico leva ao desenvolvimento de doenças devido à interrupção da síntese de substâncias que estas bactérias fornecem ao hospedeiro. Na lista incluem-se: aminoácidos, serotonina (neurotransmissor), melatonina (hormônio, regulação endócrina e reprodução), melanina e dopamina (neurotransmissor envolvido no controle de aprendizado, humor, emoções, memórias, entre outros). Ao todo, são onze substâncias alteradas que geram inúmeras consequências danosas à saúde humana.
Em relação ao meio ambiente, o glifosato e o produto da sua degradação, o ácido aminometilfosfônico, exercem diversos efeitos sobre os vegetais, como inibição da atividade de enzimas antioxidantes. Essa ação resulta no acúmulo de espécies com oxigênio reativo, que induz a disfunções fisiológicas e danos celulares, causando diminuição da fotossíntese e necrose da planta.
Algodão e agrotóxico
Uma observação feita pelo estudo “Rio Abaixo: Uso de Glifosato na Agricultura e Indicadores de Nascimento das Populações Vizinhas” é de que não haviam documentos que ligassem tão precisamente o uso de glifosato com o aumento de mortalidade infantil quando a lei de 1989 foi sancionada. Logo, ao contrário do que ruma o governo brasileiro, uma nova discussão deveria ser iniciada sobre a regularização ideal para o uso futuro e manuseio de herbicidas à base de glifosato. Aliado a essa mudança, o arquivamento do PL do Veneno e a aprovação da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pnara) são ações necessárias no país.
De acordo com a organização Pesticide Action Network, o algodão cobre 2.4% das terras cultivadas do mundo, utiliza 16% dos inseticidas e 6% dos pesticidas. No Brasil, como já apontamos na campanha Moda Sem Veneno, o algodão BCI consome de sete a dez tipos de pesticidas, totalizando 10% de todo agrotóxico utilizado no país – sendo o Brasil o país que mais utiliza os químicos no mundo.
Dos 13 pesticidas mais utilizados no algodão, 11 estão na lista de pesticidas altamente perigosos da Pesticide Action Network UK. A organização Transformers Foundation lista seis dos químicos, entre eles o glifosato, e todos são utilizados pelo agronegócio brasileiro. Entre eles estão: três fatais se inalados (inseticidas endosulfan, monocrotophos e lambda-cyhalothrin) e dois disruptores endócrinos (inseticidas deltamethrin e lambda-cyhalothrin).