A pernambucana Maria José Ferreira Silva, 40, saiu de casa aos 14 anos para entrar em um colégio religioso. Nascida em Buíque (PE), ficou 11 anos envolvida com a vida religiosa até resolver repensar sua escolha. Foi quando conheceu Silvano, seu marido. Eles se casaram e mudaram para Novo Cruzeiro, em Minas Gerais. Mãe de dois filhos pequenos (10 e 8 anos), Maria passa grande parte do ano sem a presença do marido em casa. Desde antes do casamento, Silvano da Silva, 33, migra durante a seca (de seis a oito meses) para Barra Bonita, no interior de São Paulo, onde trabalha com plantação de cana-de-açúcar. Com a crise do clima no semiárido, essa realidade se intensificou. “Não tem emprego durante a seca, aqui se trabalha muito e se ganha pouco, por isso, não existe outra opção a não ser ir embora”, diz.
Já Maria trabalha com agricultura familiar e criação de animais para subsistência da família. “Como moramos na zona rural temos mais dificuldades do que quem mora na cidade. Estamos passando por um período de muita seca, chegamos até a precisar comprar água esse mês para sobreviver a esse tempo, porque a que tínhamos não era suficiente. Sofremos muito com falta de água e só recebemos ajuda de iniciativas locais. Quando é tempo de seca, os políticos da região aproveitam para se promoverem em cima disso”, conta.
A história de Maria José Ferreira Silva é similar a de outras mulheres vivência a crise do clima no semiárido, conhecidas como “viúvas da seca”. O termo foi utilizado pela primeira vez em 1983, pelo jornalista João Batista Oliveira, para conceituar o fenômeno e histórias das mulheres e crianças do sertão nordestino que, por conta da estiagem, são deixadas temporariamente pelo marido ou pelo pai. No caso das mulheres casadas, são as viúvas de maridos vivos. Nesse contexto, as mulheres, além de exercer o papel de mãe, cuidadora do lar e agricultura, passam a acumular outras funções como chefes de família.
“É bem difícil. Na verdade, eu penso que Deus me pregou uma peça porque eu falava que eu nunca iria me colocar nessa situação. Se você não cuida, entra em depressão. Já presenciei isso quando os maridos saem. Só quem passa por isso sabe. Porque se fica com toda a responsabilidade da casa e dos filhos, é muito pesado. E no meu caso, que não tenho a minha família perto, o baque é ainda maior. Muitas vezes tive que me apegar à vida da comunidade para não ficar com depressão”, relata Maria José.
As mudanças climáticas impactam de forma diferente homens e mulheres e com a crise do clima no semiárido não é diferente. Apesar de todos sofrerem com a estiagem e período de seca, são as mulheres que permanecem e cuidam da casa e dos filhos enquanto os homens migram para o Sul e o Sudeste em busca de melhores condições de renda. Esse fenômeno sempre esteve presente na vida do sertanejo, mas as situações climáticas extremas cada vez mais frequentes têm tornado a vida tanto de quem fica como de quem sai ainda mais desafiadora. Segundo o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado em setembro de 2021, o país é um dos mais afetados pela desertificação e aumento da temperatura do semiárido.
“Esse deslocamento interno dos homens, que hoje também vemos com muito mais força entre os jovens, que saem das regiões em função da seca para o Sudeste ou para o Sul, para trabalhos sazonais, a fim de ter um pouco de renda e enviar para suas famílias, sempre existiu, mas com o aumento das áreas de desertificação, aumentou”, explica Valquíria Lima, coordenadora da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA).
“Isso faz com que você chegue nas propriedades rurais do semiárido e veja muito mais idosos. E leva a uma dúvida de como esses conhecimentos e saberes ancestrais vão ter continuidade porque os jovens precisam migrar principalmente para continuar estudando e ter outras oportunidades,” pontua Lima. “Se você não tem nenhuma política para a juventude e nem condições de estudar, como os jovens podem pensar sobre seu futuro e perspectivas no semiárido?”.
Emigração por gênero e por raça
De acordo com levantamento da Gênero e Número e do Modefica, houve uma queda no número de emigrantes do semiárido do Ceará (-4,5%), Paraíba (-20%) e Rio Grande do Norte (-17%) entre 2000 e 2010, estados com maior número de municípios do semiárido. De acordo com os dados do último Censo, de 2010, as mulheres ainda são proporcionalmente as que mais emigram, mas essa diferença diminuiu nesse período, e os homens já se aproximam dos 49%. Como não foi realizado o Censo em 2020, não há dados oficiais recentes sobre emigração no país, nem pesquisas para entender como a crise do clima no semiárido tem impactado nesse fluxo.
“Esse movimento de deslocamento interno de 2000 a 2010 teve uma regressão porque também tivemos o retorno das famílias que foram para outras regiões no semiárido. Devido ao fortalecimento das políticas de convivência com as políticas integradas voltadas para essa realidade, as pessoas melhoraram suas rendas, sua qualidade de vida e houve esse retorno, mas hoje o cenário é diferente”, explica Valquíria Lima, referindo-se às interrupções de políticas de acesso a direitos, como a água, luz e produção.
Segundo Andrea Pacheco Pacífico, pesquisadora e coordenadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Deslocados Ambientais da Universidade Estadual da Paraíba (NEPDA/UEPB), em geral os migrantes não saem com intenção de ser permanente, mas muitos não conseguem voltar à sua região de origem devido a condições socioeconômicas e falta de políticas públicas. Ela alerta que o retorno dessas pessoas é “um outro problema que o país precisa trabalhar” e lembra que ainda existe um imaginário social que empurra a população do semiárido para o Sul e o Sudeste.
Os dados disponíveis sobre emigração também revelam disparidades raciais. Enquanto a porcentagem de homens e mulheres que emigram tende a se igualar, as pessoas negras eram 64% dos emigrantes do Ceará, 56% da Paraíba e 56,5% no Rio Grande do Norte em 2010. Apesar disso, as especialistas ouvidas pela reportagem destacam uma lacuna nos estudos que relacionam raça e deslocamentos ambientais. Lacuna esta que se estende à relação entre gênero e mudanças climáticas.
Emigração no semiárido x raça x gênero entre 2000 e 2010
Ceará
Paraíba
Rio Grande do Norte
Crise do clima no Semiárido: deslocados ambientais e falta de legislação
Os impactos e alterações no meio ambiente, principalmente os associados às mudanças climáticas, fizeram emergir uma nova “categoria” na mobilidade humana: os deslocados ambientais. O termo, ainda desconhecido das legislações e políticas públicas ambientais no Brasil, define as pessoas que são obrigadas a emigrar de uma região para outra em virtude de eventos climáticos e ambientais de origem natural ou humana.
Às vésperas da 26ª edição da Conferência das Partes (COP) e da crescente discussão sobre os impactos das mudanças climáticas, o país está atrasado também neste aspecto. Na América Latina, aliás, só cinco países têm uma uma lei de clima que menciona o termo “migrantes ambientais”: Costa Rica, México, Nicarágua, Peru e Uruguai.
Os dados disponíveis sobre emigração também revelam disparidades raciais. Enquanto a porcentagem de homens e mulheres que emigram tende a se igualar, as pessoas negras eram 64% dos emigrantes do Ceará, 56% da Paraíba e 56,5% no Rio Grande do Norte em 2010. Apesar disso, as especialistas ouvidas pela reportagem destacam uma lacuna nos estudos que relacionam raça e deslocamentos ambientais. Lacuna esta que se estende à relação entre gênero e mudanças climáticas.
Segundo a pesquisadora Andrea Pacífico, é urgente que o país tenha normas e insira o termo de fluxo populacional por questões ambientais nas leis e políticas públicas: “Os marcos jurídicos sobre o clima e meio ambiente no país nem mencionam o tema. Essa resistência acontece porque o uso do termo iria dar uma visibilidade maior ao problema e faria com que o governo fosse responsabilizado internacionalmente; afinal de contas, ele é membro dos tratados internacionais de direitos humanos, e isso o vincula juridicamente”.
Duas iniciativas internacionais se destacam como fonte de inspiração para os Estados elaborarem suas legislações nacionais e podem servir também quando o assunto é a crise do clima no semiárido: o Projeto de Convenção sobre o Estatuto Internacional dos Deslocados, proposto por um grupo de juristas do direito ambiental e dos direitos humanos ligados à Universidade de Limoges, na França, tem uma perspectiva universal de adoção de todos os países e propõe uma série de garantia de direitos como moradia, educação e ao regresso às pessoas deslocadas por motivos ambientais. E a iniciativa Nansen, um processo de consulta mundial que contou com a participação de 111 países e serve como um guia prático para os países garantirem os direitos dos deslocados ambientais.