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Protagonistas do Marco Temporal, Etnia Indígena Xokleng Tem Longo Histórico de Resistência

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  • Bárbara Poerner
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Victória Lobo

17 min. tempo de leitura

Era final do século XIX. À época, o estado brasileiro, mirando em uma limpeza étnica, passou a trazer imigrantes europeus para ocupar a região sul do país, alegando que o território estava disponível. Alemães e italianos, em maioria, chegavam ao Brasil financiados pelo próprio país e por agências de colonização.

Esse foi o início do genocídio da população Laklãnõ/Xokleng, etnia indígena que já ocupava regiões de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul há milênios. Afastados de forma violenta de suas terras originárias, para que elas fossem concedidas aos colonos, hoje protagonizam a tese do marco temporal, que segue em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF).

Se aprovada, a medida será de repercussão geral e exigirá a comprovação da ocupação dos territórios demarcados, por parte das comunidades originárias, no dia da promulgação da Constituição Federal, 05 de outubro de 1998. Contudo, isso é algo que a história dos Laklãnõ, e de tantos outros povos, mostra ser impossível devido ao histórico de violência sistemática contra os indígenas.

Lucimara Patté diz que seu povo Xokleng sofreu todas as formas de genocídio e tem uma trajetória de resistência no sul do país. “Agora, o único jeito é tentar tirar nossos territórios, e quando tiram nosso território perdemos nossa identidade e cultura. Sem território não há povos indígenas”, completa ela, que trabalha na Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) Saúde Indígena.

Hoje, os Laklãnõ/Xokleng estão presentes na Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, em Santa Catarina, integrando quatro cidades: Vitor Meireles, José Boiteux, Doutor Pedrinho e Itaiópolis. Recentemente, em dezembro de 2020, algumas famílias ocuparam a Floresta Nacional de São Francisco de Paula (RS), reivindicando outra parte do território na Serra Gaúcha.

Oficialmente, a respectiva TI catarinense tem 14 mil hectares homologados, mas aguarda a incorporação de outros 23 mil. No entanto, o estado catarinense não reconhece a demarcação. Em 2019, o Instituto de Meio Ambiente (IMA) de Santa Catarina abriu uma ação de reintegração de posse contra os Xokleng, que tramita no STF no caso do marco temporal, como Recurso Extraordinário 1017365.

Diversos indígenas Xokleng estão presentes em Brasília. Essa foi a maior mobilização nacional da etnia, mas não sem represálias da comunidade não-indígena local, que, segundo Ana Patté, faz ameaças constantes: “hoje nos matam de forma diferente: a canetada”. Ela, que também é assessora parlamentar da deputada Isa Penna (PSOL-SP) e membra da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), vê no marco temporal uma tentativa de “desmerecer e desvincular a trajetória de luta dos povos indígenas”. Para Ana, a proteção judicial é essencial justamente porque prevê conflitos com a população das cidades vizinhas da TI – com ou sem o parecer positivo sobre a tese.

A tentativa de minar os direitos originários sob a escusa do desenvolvimento não é nova na política brasileira. Em 2007, o então deputado matogrossense Homero Pereira (PR) protocolou o Projeto de Lei (PL) 490, que objetiva alterar o Estatuto do Índio ao incluir a tese do marco temporal. Em junho deste mesmo ano, o PL foi aprovado pela Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça (CCJ), e agora segue para votação no Plenário. A pauta é de interesse dos ruralistas e representantes do agronegócio, “que de norte a sul almejam nosso território”, afirma Lucimara. A advogada acredita que isso é um reflexo das promessas realizadas por Jair Bolsonaro (sem partido) à bancada ruralista.

O presidente nunca se mostrou favorável à demarcação de terras indígenas e já afirmou, em declarações recentes, haver “muita terra para pouco índio”. O mesmo argumento é amplamente usado pelos defensores da tese, entre deputados e senadores, mas não tem respaldo factual. No Brasil, as propriedades rurais consomem 41% de terras, sendo que 22% são apenas para pastos. Já as terras indígenas homologadas ou requisitadas ocupam 13,8%; deste número, 98% estão na Amazônia Legal, conforme informações do Instituto Socioambiental (ISA).

Especificamente em Santa Catarina, delatora da ação a ser julgada pelo STF, as propriedades rurais particulares representam 9.556.634,32 hectares contra os 83.136 hectares de TI. Ou seja, 0.87% do estado é resguardado como terras indígenas. Além disso, o direito dos povos originários às suas terras ancestrais é garantido pela Constituição de 1988, responsável por afirmar que todos os territórios indígenas demarcados são, na verdade, da União Federal.

No Brasil, as propriedades rurais consomem 41% de terras, sendo que 22% são apenas para pastos. Já as terras indígenas homologadas ou requisitadas ocupam 13,8%; deste número, 98% estão na Amazônia Legal

Os povos indígenas, por essa relação íntima e milenar com a Natureza, são os que mais lhe protegem: menos de 1% do desmatamento no país, entre 1985 e 2020, ocorreu em TI, conforme o MapBiomas. Ana ressalta que mesmo os povos originários sendo os defensores das florestas, são eles quem sofrem com o desmatamento e a crise climática. “Eles [ruralistas] acham que a terra deve dar dinheiro, mas não sei se irão respirar ou comer dinheiro quando não houver água potável ou ar puro para respirar”, questiona ela.

“Santa Catarina não foi descoberta pelos imigrantes europeus”

A história dos Laklãnõ/Xokleng é milenar. Ao lado dos povos Kaingang e Guarani, eles ocupam a região de Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná há mais de dez mil anos, conforme estudos arqueológicos referenciados por Elis Nascimento e Viviane Vasconcelos, doutorandas do Núcleo de Estudos de Povos Indígenas (NEPI) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ambas afirmam que a presença desses povos foi essencial para a formação de parte do bioma Mata Atlântica. “Todas as florestas do sul têm influência e contribuição destas comunidades originárias, não são matas virgens. Eles produziram e lavaram suas sementes através de suas caminhadas históricas”, explica Elis.

Contudo, o genocídio legislado dos Xokleng começou muito tempo depois, na metade do século XIX, durante o intenso fluxo imigratório de alemães, italianos e eslavos. Nesse período, a coordenadora do NEPI, Edviges Ioris, explica que a Europa vivia sua industrialização e surgem as teorias eugenistas de classificação da humanidade por meio das raças, que reivindicavam uma ‘raça pura’ e sem misturas.

Ela ressalta, porém, que o Brasil fez essa apropriação de forma inversa: “aqui, acreditou-se que a miscigenação poderia melhorar geneticamente, ao invés de degenerar”. Surgem então os projetos de imigração europeia, sendo o estado de Santa Catarina o piloto dessas ideias. O objetivo era “trazer brancos da Europa, camponeses sem terra dado o processo de industrialização, que abraçaram esse convite de vir ao Brasil recuperá-las na condição de pequenos agricultores”, continua a coordenadora.

O sul do país era vendido como uma área fácil de ser ocupada, “com um território fértil e não habitado, para que os europeus viessem e fizessem a limpeza étnica ao misturar e miscigenar a população”, complementa Lucimara. Os trâmites eram feitos por agências de colonização e pelo próprio governo à época. Porém, como os Laklãnõ/Xokleng já estavam presentes no território, sua presença foi vista como um empecilho. O estado catarinense criou, então, seus grupos de extermínio, chamados de bugreiros. Eles buscavam eliminar a presença indígena das terras, para que fossem disponibilizadas aos colonos imigrantes.

Foi o início do genocídio Xokleng. “Costumamos dizer que somos resistência e se estamos vivos até hoje é porque houve pessoas, lá atrás, que lutaram para que nosso povo se mantesse”, diz Thairaa Antonia Pripra, mulher Laklãnõ/Xokleng. “Antes da chegada dos não-indígenas, éramos dez mil ou mais. Agora, depois de muita luta e resistência, somos um pouco mais de dois mil”, afirma Thairaa, estudante de Psicologia na UFSC.

Normalmente, os homens eram mortos e as mulheres e crianças levadas como comprovações das expedições dos bugreiros e condicionadas às igrejas, ou ainda doadas a famílias locais. Um caso que ficou conhecido foi o da indígena Korikrã, renomeada de Maria Gensch, após ser adotada pela família do médico blumenauense Hugo Gensch. Lucimara afirma que as mulheres sofriam, além da perseguição, o peso do abuso e da objetificação de seus corpos. Ela relembra um trecho de um dos livros do antropólogo Silvio Coelho, em que Martinho Bugreiro, um dos mais famosos assassinos do período, relata que cortou uma mulher grávida ao meio, pela barriga, e viu cair o feto de seu ventre.

A violência contra os indígenas em Santa Catarina foi tão intensa que gerou repercussão internacional. Órgãos globais emitiram um alerta ao Brasil, sinalizando que as expedições dos bugreiros iriam dizimar por completo a população não-branca. Por conta da pressão externa, o país criou o Serviço de Proteção ao Índio (SPI, atual FUNAI), em 1914. O objetivo passou a ser ‘pacificar’ os povos originários, ao invés de matá-los deliberadamente. Eduardo Hoerhann, bisneto de Duque de Caxias, foi enviado pelo SPI às terras catarinenses para colocar o plano em curso. Conhecido como “o pacificador de índios”, ele foi o único não-indígena que conseguiu, à época com a ajuda de indígenas Kaingang, estabelecer um contato direto com os Laklãnõ/Xokleng, que acabaram sendo confinados no Posto Indígena Duque de Caxias​.

Nuno Nunes, filósofo indigenista e pesquisador de etnoplanejamento territorial, explica que, desde então, se sucederam várias tentativas de demarcação das terras indígenas Laklãnõ Xokleng. Ela tornou-se a TI Ibirama-La klãnõ em 1926, por meio de um decreto catarinense, que demarcou uma área de aproximadamente 20 mil hectares. Anos mais tarde, em 1965, foi oficialmente demarcada, mas com uma área menor, de 14 mil hectares. Nuno destaca que houve, também, invasões e conflitos com os colonos, mas que os povos indígenas sempre se mobilizaram em prol de seus direitos.

A violência contra os indígenas em Santa Catarina foi tão intensa que gerou repercussão internacional. Órgãos globais emitiram um alerta ao Brasil, sinalizando que as expedições dos bugreiros iriam dizimar por completo a população não-branca

A decisão demorou até 1996 para ser homologada e, em 1997, os Xokleng reivindicaram uma nova demarcação. Cinco anos depois, em 2003, o Diário Oficial da União publicou sua ampliação para os 37 mil hectares. A decisão, contudo, ainda não foi homologada e tramita agora no STF, sob o atual julgamento do marco temporal.

Vale destacar que o estado de Santa Catarina nunca se mostrou favorável à demarcação. No ano de 2008, os deputados federais Valdir Colatto (PMDB-SC) e João Matos (PMDB-SC) apresentaram o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 480/08, que tentava suspender o decreto de demarcação da TI Ibirama-Laklãnõ publicado pela União. O pedido era baseado na justificativa de que a área a ser ampliada residiam famílias de agricultores e pequenas propriedades privadas. O PDC foi arquivado, mas a disputa pelas terras continua.

A Barragem Norte

Na década de 70, o país começa a observar os primeiros efeitos do El Niño, fenômeno meteorológico em que chove mais no sul do que no norte do país. Com o intenso volume fluvial, o governo catarinense passou a procurar alternativas para remediar as enchentes que aconteciam em algumas cidades. Foram projetadas três barragens para contenção de cheias nos municípios de Ituporanga, Taió e José Boiteux. A última, a chamada Barragem Norte, foi instalada na Barra do Rio Dollmann, afluente do Rio Itajaí-Açu, e ocupou grande parte da TI Ibirama-La Klãnõ. A obra, iniciada em 1976 durante a ditadura militar e concluída apenas em 1992, foi edificada sem consulta à comunidade indígena e sem estudos de impacto.

Os alagamentos não tardaram a ocorrer na aldeia do povo Xokleng, que vivia próximo ao Rio. Eles foram sucessivos em 1978, 79, 83 e 84. Pessoas morreram afogadas, plantações foram devastadas e as residências ficaram ilhadas. Ana relata que “mais de 900 hectares de terras férteis do território foram alagados e o cemitério de nosso povo está embaixo da água”.

Como resultado houve fluxo migratório da população indígena para as regiões mais altas do vale, em uma tentativa de fugir das enchentes. Com isso, sua agricultura e alimentação mudaram drasticamente. Grande parte dos solos próprios para cultivo tornaram-se lodo e lama, o rio já é quase inexistente, e a vegetação nativa foi tomada pela água.

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Também houve consequências na dinâmica social e mitológica. Com a movimentação para os morros da região, a comunidade se separou: “antes tínhamos só uma aldeia, mas com a criação da barragem, a água dividiu nosso território e atualmente somos em oito”, explica Ana. Até hoje, “em toda enchente ficamos ilhados em nossa própria terra, a educação nas escolas fica parada pois não conseguimos transitar no local, e a saúde também pois não conseguimos sair da aldeia”, complementa Lucimara.

Costumes e culturas dos Laklãnõ/Xokleng também foram diluídos após a construção da barragem. Um exemplo é o ritual com o peixe pégtodé, referenciado no Trabalho de Conclusão de Curso “Impactos da colonização e da barragem norte sobre a espiritualidade do povo Laklãnõ/Xokleng: memórias do ritual do Pétogdé”, de Voia Criri. O animal era utilizado em uma prática ancestral feita com os meninos indígenas, para a escolha do novo chefe espiritual, chamado de Kujá. Com o desaparecimento da espécie no rio, por conta da construção, o ritual deixou de acontecer e poucas pessoas têm conhecimento sobre ele.

Os indígenas Xokleng, contudo, nunca foram passivos à construção. Desde o início da obra, eles realizaram diversos protestos e manifestaram seu desacordo com a barragem, exigindo um estudo de impacto efetivo e as devidas indenizações. Algumas até foram pagas, mas de forma insuficiente, alegam Ana e Lucimara. Hoje, além da TI sofrer com os alagamentos, ela é impactada pela plantação de tabaco que ocupa parte de sua extensão e mina as poucas áreas fluviais e de plantio com agrotóxicos. O estado de Santa Catarina também objetiva a construção de uma hidrelétrica no território.
 

Os impactos para as mulheres

Para as mulheres, a construção da barragem somatizou outras violências. Lucimara, Ana e Thairaa dizem que a presença dos não-indígenas aumentou exponencialmente na aldeia durante a edificação da obra, e com isso casos de abuso sexual, doenças sexualmente transmissiveis e consumo excessivo de bebidas alcoólicas tornaram-se recorrentes. Foi também um período onde as igrejas cristãs – católica e evangélica -, intensificaram sua presença na comunidade. Thairaa acredita que “a religião trouxe a questão do machismo e quem acaba sofrendo com isso são as mulheres”.

Ana afirma que essa manifestação do patriarcado começou a existir justamente com a presença do homem branco, que impôs sua cultura às culturas indígenas. “Se estamos buscando nosso território, devemos buscar também nossas práticas ancestrais, que são a luta das mulheres junto aos homens”, acredita a assessora. A análise é consonante à de Lucimara, que vê na reprodução do machismo uma herança colonial.

Ela diz que com a entrada dos brancos em terras originárias, veio também “a visão de que as mulheres são menos, são objetos e coisas a não serem ouvidas ou respeitadas”. A advogada cita a morte de Daiane Griá Sales, de apenas 14 anos, há aproximadamente um mês. A jovem kaingang foi encontrada morta, nua e com o corpo dilacerado nas redondezas da TI Guarita, no Rio Grande do Sul. Para Lucimara, essa é “a prova da violência que as mulheres indígenas sofrem em seus territórios”.

Para as mulheres, a construção da barragem somatizou outras violências. Lucimara, Ana e Thairaa dizem que a presença dos não-indígenas aumentou exponencialmente na aldeia durante a edificação da obra, e com isso casos de abuso sexual, doenças sexualmente transmissiveis e consumo excessivo de bebidas alcoólicas tornaram-se recorrentes

Diante do patriarcado e machismo, porém, o que se mantém firme é a resistência. Lucimara reforça que as mulheres indígenas são a continuidade dos povos originários e cita a Marcha das Mulheres Indígenas como um exemplo de mobilização. A passeata ocorreu pela primeira vez em agosto de 2019, e reuniu por volta de 2.500 mulheres, de mais de 130 diferentes povos indígenas. A segunda edição da Marcha está acontecendo desde ontem, 07, e irá até a próxima sexta, 11. Lucimara diz ter “certeza que nossa marcha não só será histórica por vários quesitos, mas que também será na marcha que vamos conseguir demarcar nossa terra e enterrar a tese do marco temporal”.

Com a repercussão do julgamento, Ana vê uma possibilidade de mais pessoas “entenderem que no sul do país existem indígenas, mas que foram silenciados”. A assessora fez parte do documentário Laklãnõ/Xokleng: Órfãos da Terra, Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo de Andressa Santa Cruz. A jornalista acredita que “a mídia brasileira ainda é muito racista e não reconhece isso”, o que gera uma cobertura de mídia insuficiente sobre as pautas dos povos originários e potencializa a invisibilização da diversidade indígena.

História invisibilizada

Santa Catarina, considerado um dos estados mais conservadores do país, foi o que mais votou em Jair Bolsonaro nas eleições de 2018. Para Ana, isso não é ao acaso. O racismo é nítido e experienciado diariamente, muito marcado pela origem colonial das cidades ao entorno da TI Ibirama-La klãnõ. “Eles [população não-indígena] dizem que já estão há mais de 100 anos ali, mas estamos muito além de 100 anos”, afirma a assessora. Relatos de discriminação também não faltam nos depoimentos de Lucimara e Thairaa. “Grande parte da população prefere reproduzir o preconceito ao invés de buscar compreender a origem da própria cidade”, acrescenta a advogada.

Casos extremos revelam a gravidade do racismo: em 2016, Vitor Pinto, criança de apenas dois anos da etnia Kaingang, foi assassinado brutalmente em Imbituba, litoral catarinense. Em 2017, a indígena Guarani Ivete de Souza teve uma de suas mãos decepada com golpes de facão, desferidos por dois adolescentes durante um ataque à TI Morro dos Cavalos, em Palhoça, município vizinho de Florianópolis. Em 2019, o professor e indígena Xokleng Marcondes Namblá foi espancado até a morte na cidade de Penha (SC).

Não ao acaso, as violências são heranças coloniais para com um povo que resiste há mais de 500 anos. Se a maioria dos catarinenses rememora sua origem européia, não é possível esquecer também da história de genocídio tecida e financiada pela mesma colonização, que até hoje insiste em não repará-lo. Lucimara lamenta que o próprio estado de Santa Catarina não conheça sua história. “Eles preferem exaltar o sangue europeu que minimamente têm nas veias, do que reconhecer o sangue indígina que têm nas mãos”, finaliza a advogada.

***

Poema da Laklãnõ/Xokleng Tolym Nunc-Nfôonro

Era 1988
Ano da constituição Brasileira…

Nestas terras já plantei
Neste rio já banhei
Nestes matos já cacei.

Minha história aqui é antiga
Tenho muito pra dizer
Já corri de bugreiro
Vi meu povo morrer.

Não abandonei minha terra
Ela de mim foi tirada
Em nome do progresso
Minha cultura foi inferiorizada
Minha gente exterminada.

Em Minhas terras hoje estão
Cidades, grandes centros comerciais,
Sítios, fazendas, grandes plantações.
E com o discurso do agro é pop
Envenenam a comida, destroem as florestas,
Em nossa terra sagrada.

Este Pindó inteiro
Já foi terra de povo originário
Muito antes,
Desse Marco Temporal.

Entramos em contato com a Procuradoria-Geral do Estado de Santa Catarina sobre o caso e deixamos na íntegra a resposta do assessor Felipe Reis:

Em relação ao julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365/SC, que trata sobre terras indígenas e tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), a Procuradoria-Geral do Estado (PGE/SC) informa que representa o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA). O órgão requer a reintegração de posse de parte da Reserva Ecológica Estadual do Sassafrás, no município de Itaiópolis, no Planalto Norte catarinense. Em 2009, cerca de 100 indígenas invadiram uma parte da reserva, que é de propriedade do IMA.

À época, a então Fundação do Meio Ambiente de Santa Catarina (FATMA) buscou reaver a área por meio de uma ação de reintegração de posse contra a Fundação Nacional do Índio (Funai), que foi julgada procedente. Porém, o órgão indigenista apresentou o RE em que alega que o acórdão publicado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) “violou o artigo 231 da Constituição”, defendendo que a Carta Magna “adotou a teoria do indigenato e, portanto, a relação estabelecida entre a terra e o índio é originária e independe de título ou reconhecimento formal”.

Nos autos, a PGE/SC defende que seja definido um estatuto jurídico constitucional que traduza a justiça demarcatória, garantindo pressupostos materiais e processuais decorrentes da Constituição de 1988. A Constituição incentiva o resgate da dignidade dos povos indígenas, superando a “diretriz de integração” e constituindo o “paradigma da interação”, sem que para isso se violem “outros direitos fundamentais igualmente relevantes à sociedade brasileira e decorrentes da Carta”.

As alegações da PGE/SC buscam garantir a segurança jurídica, o direito de propriedade e impedir a violação do ato jurídico perfeito, pois um entendimento diferente do que tem sido prestigiado pelo STF implicaria na revisão e no desfazimento de diversos atos jurídicos ocorridos em todo o País.

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