Se apoiando nele, o Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo e a Secretaria Estadual de Infraestrutura e Meio Ambiente lançaram o Plano Estratégico de Monitoramento e Avaliação do Lixo no Mar do Estado de São Paulo (PEMALM). O documento busca envolver academia, gestão pública, iniciativa privada e sociedade civil para alcançar o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14.1 da ONU – prevenir e reduzir significativamente a poluição marinha de todos os tipos até 2025.
O mar do estado de São Paulo se distribui por 16 municípios, em aproximadamente 883 km de extensão de linha de costa, e é dividido em três áreas: Litoral Norte, Litoral Centro e Litoral Sul. Cada região possui características físicas e ambientais distintas, bem como o desenvolvimento da economia associado à paisagem e dinâmica sociocultural. O Litoral Norte, por exemplo, está inserido na região de escarpas, com características morfológicas ligadas à Serra do Mar. Um dos fatores de transformação principal da região é o turismo. Mas o documento adverte: o lixo encontrado no mar de São Paulo é responsabilidade dos 645 municípios do estado, tendo em vista o potencial de redistribuição dos resíduos por rios e correntes marinhas.
Segundo o plano, a geração de resíduos sólidos urbanos (RSU) no estado, em 2018, ultrapassava a casa das 41 mil toneladas ao dia – o equivalente a 256 baleias azuis. Para entender como gerir esse lixo, o plano buscou mapear os indivíduos e organizações já mobilizados pela causa, a literatura científica já existente, o histórico de iniciativas e políticas públicas e o levantamento de dados sobre lixo no mar já coletados anteriormente.
No Brasil, não existem valores referentes ou uma base de dados nacional com informações sobre o lixo no mar, apesar de termos iniciativas, planos e leis ambientais que datam desde a década de 80, como o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC) (Lei Federal 7.661/1988). Por isso, um dos motivos do documento é sintetizar a literatura já existente, além dos atores que atuam no campo. “Existem muitas instituições e iniciativas que produzem esses dados, mas eles não estão estrategicamente reunidos para subsidiar a tomada de decisão”, explica Vitória Scrich, Bióloga e Consultora Técnica do PEMALM. A consultora dá exemplos de relatórios e mutirões, que são ações pontuais, sem uma metodologia padronizada e, cientificamente, não possuem a confiabilidade de representar a realidade como um todo.
O mapeamento dos resíduos
Para mensurar a quantidade de lixo e a magnitude de seus impactos, o plano considera as características do lixo, sua abundância e a vulnerabilidade do local que ele se encontra. O Grupo de Especialistas em Aspecto Científicos de Poluição Marinha (Gesamp), classifica o ambiente costeiro em quatro compartimentos: a linha da costa, representada por ecossistemas ao longo do litoral, como praias, manguezais e costões rochosos; a superfície e coluna d’água, que inclui áreas costeiras e áreas em alto-mar; o fundo marinho, tanto em áreas rasas quanto profundas e a biota, que representa o lixo que está em contato direito com a fauna e flora, seja por meio de ingestão ou emaranhamento.
O lixo encontrado no mar de São Paulo é responsabilidade dos 645 municípios do estado, tendo em vista o potencial de redistribuição dos resíduos por rios e correntes marinhas.
Já no que diz respeito às características desses resíduos, o Gesamp os classifica em nano lixo, micro lixo, meso lixo, lixo macro e mega lixo. A composição também é importante. Apesar de grande parte desses resíduos serem compostos por itens de plástico, o plano também identifica materiais como papel, bituca de cigarro, tecido, madeira, vidro e materiais mistos. Essa tendência também aparece em um painel feito pelo Ministério do Meio Ambiente, avaliando os resultados de 10 mutirões de limpeza. Dos quarenta mil itens recolhidos, 23 mil eram plásticos, 3 mil papel, e 11 mil outros resíduos, sendo eles: bitucas de cigarro, entulhos, fraldas e absorventes, banco traseiro de carro.
O Gesamp sintetiza os impactos causados pelo lixo no mar em sete grandes temas de preocupação para a política pública, sendo eles: turismo, segurança alimentar, saúde e bem-estar humano, navegação, bem-estar animal, pesca e aquicultura e biodiversidade. O documento segue reforçando a importância dos diversos atores pelo capítulo de Indicadores. Segundo o plano, “indicadores que refletem o contexto político, institucional e cultural no qual estão sendo construídos são mais aderentes à realidade e ajudam a compreender temas de interesse da sociedade”. Neste capítulo, em especial, os especialistas montaram tabelas sugeridas para o monitoramento de geração do lixo no mar.
Há destaque, por exemplo, para a qualidade da gestão de resíduos sólidos, aterros e usinas de compostagem em municípios, seguindo o indicador Índice de Gestão de Resíduos Sólidos (IGR), pelo Sima (Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente). Quando nos apoiamos em outros números, percebemos a necessidade dessas informações: segundo o Painel Qualidade Ambiental Costeira, do Ministério do Meio Ambiente, as cidades costeiras do estado de São Paulo não possuem o Plano Municipal de Gerenciamento Costeiro (PMGC). Apenas 56% tem plano de gestão de resíduos, 63% possuem coleta seletiva e 31% não declararam informações ao SNIS (Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento).
Os atores públicos e privados
As atividades industriais também tem uma participação de destaque nesse resíduo, que muitas vezes passa despercebido. No transporte e comercialização de produtos acontecem perdas de materiais, como os pellets plásticos, que são a forma inicial da maioria dos itens plásticos utilizados no dia a dia. Os pellets medem de 1 a 5mm, possuem formato cilíndrico ou discóide e são considerados microplásticos. Eles são encontrados em praias do mundo inteiro e no trago digestório de animais marinhos. “Lixo é sempre visto como um problema do consumidor”, ressalta Vitória, “o lixo do mar tem todo um ciclo de vida que surge da cadeia de produção e consumo e descarte de resíduos”.
O processo de governança colaborativa é essencial para envolver os setores público e privado, esse último, em especial, classificado por Vitória como “o mais desafiador”. “O setor privado possui um interesse privado, não tem como a gente lutar contra isso”, explica, “a gente já sabia que ia ser difícil por conta de toda a lógica que esse setor funciona, às vezes não existe muito esse espaço pré-concebido para estar colaborando com uma política pública”. A especialista também aponta que o setor privado trabalha com a projeção de metas já definidas para os próximos anos, então, é necessário escutá-los e saber dialogar com seus interesses.
Ainda sim, o grupo teve sucesso em engajar alguns dos autores no processo de aprendizagem social, no qual diversos setores se reúnem em uma conversa para falar sobre determinado tema. “Cada um vai trazendo seu interesse, ideias, conhecimento. O tema vai sendo internalizado por todos eles”, afirma. A estratégia utilizada pelo PEMALM é clara: tentar engajar e trazer discussões para os setores e, aos poucos, ir crescendo dentro dos segmentos da indústria.
Os atores públicos e privados também podem – e são – utilizados em ações de organizações sem fins lucrativos que reúnem cidadãos interessados pela questão ambiental. É a forma que o Limpa Brasil, ONG criada em 2010 e parceira do movimento global Let’s Do It, encontrou de unir esfera público, privada e sociedade civil. O intuito da ONG é realizar parceria com prefeituras, voluntariado corporativo e cidadãos para a realização de ações de limpeza e educação ambiental. Segundo Edilainne Pereira, diretora executiva do Limpa Brasil, toda atividade é realizada com essas três frentes juntas.
Além dos mutirões, que acontecem em parceria com prefeituras e empresas locais, a ONG também trabalha com a Campanha de Mapeamento de Pontos Viciados de Lixo. “São lugares eleitos pela comunidade para que eles utilizem ali para o descarte de resíduos. A gente já fez atividades com pontos viciados de 30 anos. Às vezes, tem pessoas que se deslocam de outras localidades para jogar os resíduos naquele local”, relata. Apesar desses “costumes”, Edilainne afirma perceber uma atenção maior da população quanto ao lixo jogado na rua e sua relação com a poluição marinha. Ela destaca as redes sociais como porta para o fortalecimento e disseminação dessa conscientização.
Em 2019, o Limpa Brasil participou do Dia Mundial da Limpeza, e conseguiu mobilizar 1200 líderes de municípios. Em 2021, o evento acontece em 18 de setembro. Edilainne destaca a participação de famílias, universitários e, principalmente, de mulheres na causa. “Temos uma estimativa de em torno de 60% de mulheres. Eu acho que o tema do cuidado é algo mais no radar delas. Elas também são mais pró-ativas”, explica.
Ações futuras
A pandemia da Covid-19 não parecia que teria a dimensão que tem hoje quando o PEMALM foi lançado. Logo, o reforço online foi fundamental para continuar engajando os atores da sociedade civil. Ainda sim, Vitória conta que alguns não estão mais presentes, devido a dificuldade de utilizar a internet em certos locais. “Mantemos a comunicação com e-mails e um grupo no Whatsapp. Investimos bastante em comunicação externa também, falando do plano em eventos e em congressos internacionais”, enumera, “estamos produzindo um documentário para contar o processo de construção do plano, para que ele seja útil para outros estados do Brasil”.
Espera-se que demais estados também passem por esse processo de construção de um monitoramento do lixo no mar e que o conteúdo também seja replicado em escolas. Segundo Vitória, a parte da comunicação está sendo o grande pilar pós-publicado do PEMALM e a equipe organizadora se reúne toda semana para elencar os próximos passos, como a definição da plataforma que vai receber os dados e que vai alimentar os indicadores que foram propostos.
Essa metodologia padronizada e tecnologia para a criação da plataforma é fundamental para que os dados atuais deixem de ser dados esporádicos. Vemos sua necessidade de utilização quando comparamos com planos que não seguiram tal metodologia, como o Plano de Combate ao Lixo no Mar, lançado pelo Governo Federal, em 2019. “O plano tinha um processo participativo envolvendo o início dessa construção. Mas, o governo mudou e vários processos foram interrompidos, inclusive esse diálogo com os pesquisadores”, explica.
Segundo Vitória, o plano nacional foi publicado sem processo de engajamento e, por isso, não se torna tão efetivo na prática. A ação de combate segue a linha principal dos mutirões e não visa estancar as fontes do problema, tampouco conversam com todos os setores necessários.
Frente a isso, temos um cenário que não muda: um plano que celebra 400 toneladas de resíduos retirados de praias em um ano, mas desconsidera todo o ambiente marinho, os microplásticos, a falta de saneamento básico e reciclagem nas cidades, o lixo produzido por portos e empresas, a pesca e turismo desenfreados. O problema é de ordem coletiva, de responsabilidade compartilhada. Enquanto as instâncias públicas e privadas não se comprometerem a essas mudanças, a saúde do mar, que é a mesma que a nossa, seguirá decaindo.
Essa é a 5ª matéria da série 97,5%: Oceano, Clima e Saúde Coletiva, no qual nos propomos a abordar a Década da Restauração Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, aproximando nossos leitores do oceano, espaço que conhecemos tão pouco e que, apesar de estar distante do imaginário coletivo, é essencial para a saúde de todas as pessoas. Veja todas as matérias da série aqui.