Em 2017, a Cooper Glicério e Nova Glicério receberam uma ordem de despejo da Gestão Dória, alegando que ocupavam ilegalmente os locais e que havia falta de segurança nos terrenos. As cooperativas estão instaladas na região há mais de dez anos. Os catadores sempre trabalharam na região do Glicério, mas, em 2001, a Recifran (Serviço Franciscano de Apoio à Reciclagem), organizou uma associação a fim de tirar os catadores da rua. Dessa organização nasceu ambas cooperativas.
A negociação para a permanência dos catadores na região teve diversos episódios mas, ao final de quase três anos, ambas cooperativas firmaram um acordo com a Prefeitura para se unirem em um único local – na Cooper Glicério, que fica totalmente abaixo do viaduto – e permanecer na região. Cleiton está à frente da Nova Glicério desde 2017 e nos conta que, apesar de ser difícil trabalhar com catadores em situação de vulnerabilidade social, a cooperativa consegue trabalhar de forma a agregar o individual e coletivo simultaneamente. “O associado é responsável pela sua própria coleta. Quando ele pesa na balança, vai no nome dele” explica, “quando ele joga na caçamba, a venda é coletiva e o rateio é dividido por cabeça”.
A Nova Glicério tem 101 associados, que possuem três ou quatro dependentes, ou seja, a cooperativa provém para aproximadamente quatrocentas pessoas. “A gente é a única nesse formato em São Paulo”, afirma, “esse formato dá certo, porque o efeito que temos é dobrado. É o mesmo sistema que ajudei a implementar em Kisumu, uma cidade do Quênia”. Em 2018, Cleiton viajou duas vezes ao país, por meio do projeto Mapping Waste Governance. Ele foi escolhido para representar 23 cooperativas de São Paulo e ensinou não só esse sistema, mas também como construir um biodigestor com materiais recicláveis, que transforma matéria orgânica em gás de cozinha.
Na associação são reciclados apenas materiais pós-consumo, como papel, plástico, embalagem cartonada, ferro, sucata. O material considerado fino – latinha, alumínio, cobre – fica na parte individual do sistema, cada catador recolhe sua quantidade, pesa e esse valor vai apenas para ele. Assim, a Nova Glicério garante um salário justo a seus associados. O quilo da latinha, na época da nossa conversa, variava de R$ 4 a R$ 4,20, enquanto o pet, por exemplo, não passa dos R$ 2,50.
A variação se explica pela qualificação do material. Existem máquinas que conseguem separar o pet por densidade/qualidade do plástico, elevando, assim, sua qualidade. No caso da associação, o pet é vendido solto por R$ 2,40 o quilo.
Outros tipos de materiais também são recolhidos. “Retiramos das ruas, todos os meses, quase mil toneladas, mas só damos destinação correta para 300 kg, 350 kg”, afirma. Apesar dos materiais mais coletados serem resíduos pós-consumo, os catadores recolhem aproximadamente 5% de rejeito que, segundo Cleiton, se explica pois a população não separa tudo. O restante são cadeiras, puffs, microondas, tv, geladeira – tudo que for passível de reuso. Como o produto ainda tem tempo útil de vida, a associação opta por vendê-lo inteiro.
Integração de carroceiros e comunidade
Em novembro, com a ideia da junção de ambas cooperativas, Cleiton pensava que seria uma oportunidade para agregar carroceiros que ainda estão na rua ao grupo. Ele contou um pouco a relação dos catadores com pessoas em situação de vulnerabilidade social: “hoje, não trabalhamos com usuários de drogas. Temos ex-usuários, ex-alcoólatras. A gente já agregou todas essas vertentes que estão à margem da sociedade, mas também temos que entender que não temos estrutura – física e psicológica – para ajudá-los”.
Naquele dia que visitamos a Nova Glicério, um grupo de dependentes químicos e pessoas em situação de rua se concentravam ao redor da associação. Ao lado da cooperativa está um Ecoponto, onde as pessoas podem descartar recicláveis, entulhos, etc. Os carros vêm descarregar os materiais, mas, segundo Cleiton, eles não têm paciência para esperar e entrar no local e acabam descarregando na rua, alimentando uma outra situação.
O dependente ali parado recolhe o entulho e troca no Ecoponto, ficando com o dinheiro que, muitas vezes, é usado para sustentar o vício. “Se você passa na nossa porta e vê isso, você associa com a gente. Esse tipo de pensamento vem de forma sistêmica e cultural, é muito difícil trabalhar ele de forma isolada, tem que trabalhar de forma coletiva”, afirma.
Para entender como foram os meses seguintes com as cooperativas e como a pandemia afetou os catadores do Glicério, conversamos com Cleiton novamente, desta vez por telefone. A junção das cooperativas foi adiada para 2021 e, como diversos setores do mercado, frente ao coronavírus, a produção da associação caiu pela metade. Após fazerem teste de Covid-19, agora os trabalhadores voltam, aos poucos, ao trabalho.
De modo a fortalecer não só os catadores, mas a comunidade local, a Cooper Glicério e a Nova Glicério criaram o projeto Corre Moedas Mudas, com parceria da Rede Brasileira de Bancos Comunitários e a Horta Comunitária da Vila Nancy, no Distrito de Guaianases, em São Paulo. O projeto promove o fortalecimento do comércio local por meio da utilização de uma moeda de troca na comunidade.
A proposta é que os moradores separem seus resíduos recicláveis, que serão recolhidos na porta de suas casas. Eles podem pedir ao catador ou agente do projeto o seu cadastro para obter o cartão e, com isso, todo produto que entregar será contado como crédito na moeda social local Mudas, de acordo com a quantificação (em quilos) dos resíduos coletados. O morador poderá, então, efetuar compras nos estabelecimentos cadastrados no Projeto Corre Moeda Mudas e na horta comunitária – onde está localizada sua sede.
A responsabilidade de empresas e da academia
Para Cleiton, uma das dificuldades da reciclagem se encontra no início da rede produtiva, na produção dos materiais. Atualmente, muitos insumos são jogados em aterros sanitários e lixões porque não existem máquinas para reciclá-los. “A engenharia mecânica e elétrica não estão acompanhando o setor industrial com a produção de máquinas para a destinação de outras embalagens”, explica, “eles fizeram esse acompanhamento até 1990, depois parou”.
É por isso que, não só as empresas produtoras de tais materiais devem buscar alternativas de embalagens, mas a universidade também deve circular dentro do universo da reciclagem. Cleiton questiona também a culpabilização da sociedade por não separar determinado resíduo: “mesmo se ela separar, continua sendo rejeito. Eu tiro o foco, culpo a sociedade pela má educação ambiental e deixo o cara da indústria, que está produzindo o produto de má qualidade, isento”.
Além da criatividade em desenvolver soluções ambientais para determinado material, Cleiton também ensina crianças em escolas sobre a importância de reciclar. Mas a verdadeira necessidade de mudança é no início da produção. “Não é mais fácil falar para a empresa ‘não pode mais fabricar copo poliestireno, vai ter que ser polipropileno’?”, indaga. Ele diz já ter escutado de dono de empresa para entender a indústria: “‘se eu mudar de embalagem, não vai alterar o sabor do meu produto? o preço?’ pega um laboratório para estudar!”. Para Cleiton a questão não está, claramente, só na falta de educação ambiental da sociedade.
As empresas não têm cultura de logística reversa e, assim como a sociedade, existe um preconceito com os catadores, associando-os à população em condição de vulnerabilidade social. “Eles querem ajudar, mas não querem tratar diretamente. Então, pegam uma ONG, entregam R$ 100 mil, a ONG nos repassa R$ 40 mil, sendo que eles poderiam vir tratar diretamente comigo”, afirma.
Alternativas como o Projeto Corre Moeda Mudas – que pode ser repensado e aplicada em outras regiões e cidades – com a ideia da troca de produtos por materiais reciclados é uma forma mais assertiva de conscientizar a comunidade local, criar e fortalecer vínculos entre os moradores e comerciantes e aumentar a geração de renda. Outro movimento desse tipo, por parte da sociedade, é a adereência ao aplicativo Cataki, que Cleiton reforça “ser um grande parceiro”. Tais formatos mais horizontais e circulares são uma saída para a crise socioeconômica gerada pelo coronavírus e que podem estabelecer relações comunitárias e autônomas de longo prazo.