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Novo Relatório Revela Brasil Como Líder em Conflitos Socioterritoriais na Região Pan-Amazônica

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  • Juliana Lima
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Victória Lobo

9 min. tempo de leitura

O recém-lançado Atlas de Conflitos Socioterritoriais Pan-Amazônico traz dados específicos sobre o Brasil, Bolívia, Colômbia e Peru, que cobrem 85% da área da Pan-Amazônia, além de abordar os casos emblemáticos de violação de direitos dos povos dessa região.

A ideia de mapear os conflitos ocorridos entre 2017 e 2018 na região amazônica surgiu em um encontro na Bolívia em março de 2018, que reuniu organizações e movimentos sociais de países pan-amazônicos. O material foi organizado pela CPT (Comissão Pastoral da Terra), responsável também pelo relatório Conflitos no Campo Brasil, divulgado há 34 anos.


No levantamento, foram registrados 1.308 conflitos ativos no período (alguns deles ainda constantes), com lutas de território que afetaram e envolveram 167.559 famílias amazônicas. Nesse recorte, o Brasil é o país-líder com o maior número de conflitos, sendo palco para 995 deles com 131.309 famílias atingidas. O agronegócio aparece como principal causa de conflitos em território brasileiro destacada pelo Atlas, com 60% de registros. O número é preocupante ao considerarmos que, nos quatro países analisados, essa categoria é responsável por 43% dos conflitos. Outra causa que se mostrou relevante foi a construção de hidroelétricas e outros projetos energéticos, com 41 conflitos no Brasil, bem como a destinação de territórios comunitários/camponeses para uso público ou militar.


Os dados alfanuméricos para a construção do Atlas foram apresentados em planilhas e foram levantados pelos movimentos de cada país: Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Brasil, pelo Centro de Investigação e Promoção do Campesinato (CIPCA) da Bolívia, pela Federación Nacional de Mujeres Campesinas Bartolina Sisa da Bolívia, pelo Instituto del Bien Común do Peru e pela Asociación Minga e Universidad de La Amazonia, ambas da Colômbia. Essas planilhas trazem dados sobre os conflitos territoriais nos países amazônicos como o nome do grupo ou da comunidade em conflito, o número de famílias afetadas, categorias, causas e tipo de violência. No mapa temático, cores e tamanhos diferenciam os temas para uma melhor visualização.

Principais causas de conflitos socioterritoriais no Brasil (2017 – 2018) – Fonte: Atlas de Conflitos Socioterritoriais Pan-Amazônico (2020)
Situação territorial das comunidades em conflito no Brasil (2017 – 2018) – Fonte: Atlas de Conflitos Socioterritoriais Pan-Amazônico (2020)


Para realizar o mapeamento, foi preciso estabelecer protocolos e parâmetros para que os dados pudessem ser cruzados e a análise fosse a mais coerente possível. Os diferentes idiomas e dialetos foi um dos desafios encontrados na tradução e interpretação correta das informações, assim como os critérios legais definidos em cada país. A preocupação maior era sempre manter a identidade cultural dos povos, e por isso critérios foram criados para que os resultados apresentassem um olhar mais real e apurado dos conflitos.


De acordo com os pesquisadores, os mapas dos conflitos precisam ser compreendidos a partir de todo o conjunto de dados apresentados, transformando-se em um “documento de comunicação entre sujeitos que viabiliza a disseminação de informações por meio da representação gráfica e espacial de fatos e fenômenos gráficos como uma forma de linguagem”.

Panorama geral

É preciso se indignar. Esse é o convite feito à sociedade pelo Atlas com o objetivo de criar alternativas de resistência e esperança para os povos sistematicamente violados e que têm suas vidas afetadas por conflitos sem fim. A Amazônia abrange nove países e nesse relatório é possível visualizar algumas das ameaças institucionais, jurídicas e econômicas sofridas por quase 168 mil famílias, dentre as milhões de pessoas e povos que vivem na região.


Em vários anos de trabalho para construir o mapeamento, os grupos de pesquisa e os movimentos sociais se esforçaram para “ouvir” o que a realidade dos povos amazônicos diz. O que se escuta é, literalmente, um pedido de socorro. Um dos objetivos do projeto, ao lado de chamar a atenção para os conflitos, é promover encontros capazes de transpor fronteiras políticas e culturais entre os países. Criando pontes entre pessoas e instituições é possível encontrar alternativas para, pelo menos, reduzir o número de conflitos diários responsáveis por fragilizar comunidades inteiras e o meio ambiente ao redor.


O avanço da destruição do bioma na região amazônica deixa, cada vez mais, um rastro de violência e danos irreparáveis, e é esse motivo, segundo o Atlas, que conduz as diferentes classes e grupos sociais a buscarem um fortalecimento articulado em torno da resistência às ameaças causadas por grupos capitalistas para a região.


Segundo o documento, “a Amazônia é uma região de grande interesse estratégico para o capital, pois é aqui que se encontra grande parte das variadas matérias-primas que interessam às potências mundiais. Nessa disputa voraz, o resultado é a ameaça concreta de destruição sistemática e intensa do bioma amazônico, que tem levado ao extermínio não apenas do bioma, mas também de parte daqueles que o habitam e dependem dele para sua sobrevivência”.


O relatório revela, nos territórios avaliados, quatro grandes grupos sociais envolvidos nos conflitos, sendo eles os indígenas, as comunidades tradicionais (como ribeirinhos e seringueiros), os quilombolas e, por último, os colonos e pequenos agricultores. Mas existem outros grupos que se destacam em alguns países, no Brasil por exemplo, como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), suscetíveis a uma diversidade de tipos de conflitos por territórios não legalizados, os que possuem problemas de superposição de áreas ou concessões, as terras invadidas, as áreas com problemas ambientais e os territórios que abrigam grupos despejados ou acampados.


“Em vários anos de trabalho para construir o mapeamento, os grupos de pesquisa e os movimentos sociais se esforçaram para “ouvir” o que a realidade dos povos amazônicos diz. O que se escuta é, literalmente, um pedido de socorro”.

Causas em destaque

Na perspectiva global dos conflitos, as situações territoriais são distintas de acordo com o que é mais problemático em cada país. Na Colômbia, quase a totalidade dos casos envolve a situação territorial de conflito (84%); o valor também é alto no Peru (50%). Na Bolívia, o maior número de conflitos acontece por territórios atingidos por problemas ambientais. Também se destacam problemas de legalização e as invasões. Já no Brasil, 59% das lutas ocorrem por causa de terras sem legalização/falta de titulação legal entre as comunidades tradicionais, os indígenas e posseiros sem reconhecimento legal.


Falando sobre as causas, além do agronegócio ser a principal no Brasil – como citamos na introdução – nos demais países esse é também um dos maiores motivos para se iniciar um conflito. Em seguida, temos a mineração e a extração de petróleo e gás no Peru; a extração de madeira na Bolívia; e o plantio de produtos ilícitos como um alerta na Colômbia, porém sendo importante destacar a construção de infraestrutura de transporte como uma causa bastante relevante na Amazônia colombiana. A chamada “economia verde”, causa marcada por problemas ambientais, é um problema recorrente visto nos territórios peruanos e colombianos.


Para avaliar os casos de violência contra pessoas e a posse, foram utilizados critérios como o número de tentativas de assassinatos e os assassinatos propriamente ditos, as ameaças de morte, agressões, prisões, quantidade de famílias desalojadas e expulsas das terras e a destruição dos bens que inclui, por exemplo, a queima de casas, animais mortos e destruição de cultivos. No período de 2017 e 2018, foram registradas, nos quatro países, 118 mortes – 7 delas de mulheres que lutavam por suas famílias –, sendo no Brasil a maior parte dos assassinatos, 80 pessoas (6 mulheres). No total, foram contabilizados 100 tentativas de assassinato, 225 ameaças de morte, 115 casos de agressões e 351 pessoas presas ou submetidas a processos judiciais pela defesa de seus territórios.

O Atlas do Brasil

Em relação à violência contra a posse, o Brasil ainda registrou 375 despejos de terras e casos de destruição de bens dentro do total de 781 casos em todos os países avaliados. Em território brasileiro, mais de 42% dos conflitos envolveram pequenos agricultores que receberam promessas falsas. Indígenas respondem por 17%, as comunidades tradicionais estavam envolvidas em 29% das lutas e os quilombolas em 11%.

Na parte dedicada ao mapeamento do Brasil, Maria José dos Santos (Doutora em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará, professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Roraima; ribeirinha, filha e neta de extrativistas do Rio Jari – Amapá) e Raione Lima Campos (Advogada, agente da equipe da CPT Itaituba – Pará) foram convidadas para introduzir o cenário brasileiro.


Elas destacaram a importância do direito à existência dos povos da Amazônia, “um território sagrado”, não só para quem vive os conflitos hoje, mas para seus ancestrais, para a tradição e para toda a cultura dos povos que deveriam estar sendo preservados de geração em geração, e não atacados. Segundo as pesquisadoras, “toda essa biodiversidade existente no território amazônico é essencial para a vida não só de seus povos, mas do nosso planeta. A humanidade depende dos bens da natureza e os povos da Amazônia necessitam de seus territórios livres para continuarem a reprodução de suas vidas”.


Destacando a colonização que foi perversa no passado e continua destruindo vidas, agora disfarçada de progresso e desenvolvimento, Maria José aponta para o capitalismo como principal responsável pelas diversas atrocidades e violações de direitos humanos na população amazônica. “São projetos de hidroelétricas, hidrovias, ferrovias, portos, mineração, pecuária, entre outros, que foram e são compactuados com o Governo Federal, isto é, têm como seu principal aliado o próprio Estado brasileiro”, relata.


O direito ao território é uma conquista dos povos dessa região, mais do que isso, é uma dívida social e histórica que o Estado brasileiro tem com eles por serem negados de tantos outros privilégios. O relatório salienta: “nessa conjuntura, após um ano do governo atual, tivemos uma verdadeira guerra contra a Amazônia, sua gente e seus defensores. Os ataques foram sistemáticos e resultaram no aumento dos assassinatos, do desmatamento e dos conflitos”.


Desde o período colonial, passando pela Proclamação da República, até os dias de hoje, os povos da Amazônia estão sendo excluídos do acesso à terra, e é exatamente por isso que a resistência dessas populações tradicionais se torna uma arma contra a expansão capitalista e a favor da preservação ambiental. E, assim, os povos seguem lutando pela defesa de suas vidas e territórios de forma sustentável.

“Malditas sejam todas as cercas!
Malditas todas as propriedades privadas
que nos privam de viver e de amar!
Malditas sejam todas as leis,
amanhadas por umas poucas mãos,
para ampararem cercas e bois
e fazer da terra escrava
e escravos os homens”
– Dom Pedro Casaldáliga

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