É por isso que, em 2020, a Global Fashion Agenda, em parceira com a McKinsey & Company, lançam o relatório Fashion on Climate analisando as áreas nas quais os diversos atores da indústria da moda devem concentrar seus esforços para cumpri as metas climáticas.
O relatório aponta que, até o momento, apenas cinquenta empresas se comprometeram com propostas alinhadas ao Acordo de Paris. Por meio de uma análise de todas as esferas da rede produtiva, ele sugere 16 passos para marcas, varejistas, fabricantes, cidadãos, investidores e políticos atuarem, apontando que cerca de 43% do potencial de redução de gases da indústria pode se dar pela descarbonização da produção e melhor eficiência de processos. Mudanças nas etapas de fiação, tecelagem, malharia, a troca de processos úmidos para secos e aumento do uso de energia renovável são alguns dos exemplos.
Cerca de 43% do potencial de redução de gases da indústria pode se dar pela descarbonização da produção e melhor eficiência de processos.
Outros pontos citados sugerem uma mudança de mentalidade da indústria, com a diminuição na superprodução de peças, o desperdício no processo de manufatura, o maior uso de modelos de negócio circulares e, para o lado dos consumidores, a compra de peças de segunda mão e a redução de lavagens das peças de roupa. Para chegar a tais recomendações, o estudo analisou toda a rede de valor da indústria da moda, incluindo uso posterior e estágios de fim de uso (análise do berço ao túmulo). Atividades secundárias como desfiles não foram contabilizadas.
Foram utilizados dados proprietários e dados de terceiros, considerando volume de roupas produzidas, usadas e descartadas em 2018 e dados sobre a intensidade das emissões de matérias-primas de diversas fontes. Além disso, foram usados dados dos relatórios Global Energy Perspective e Energy Insights, ambos da McKinsey & Company. Com isso, o relatório estima que as emissões de GEE da indústria da moda variam de 3% a 10% do total global – a disparidade é explicada pela sensibilidade do cálculo base do consumo de energia e suposições sobre energias de fonte mistas, bem como a complexidade das cadeias de valor analisadas.
A indústria global da moda produziu cerca de 2,1 bilhões de toneladas de GEE em 2018, o equivalente a 4% do total global – ou o total de todas as emissões da França, Alemanha e Reino Unido combinadas. Cerca de 70% desse total vieram de atividades classificadas como upstreams, ou seja, atividades necessárias para a composição de um produto, como processamento de materiais e produção. Os 30% restantes estão associados às operações de venda, utilização e fim de uso.
A fim de exemplificar em números o impacto das mudanças propostas no estudo, o relatório supõe três cenários futuros: se nenhuma outra ação de redução for tomada, se a trajetória de redução seguir o ritmo atual e se a redução torna-se acelerada. No primeiro caso, as emissões de GEEs aumentarão em ⅓, para cerca de 2,7 bilhões de toneladas em 2030. No segundo caso, as emissões serão limitadas a 2,1 bilhões de toneladas por ano até 2030, praticamente o mesmo emitido agora – esse segundo cenário significa quase o dobro do máximo estabelecido para não ultrapassarmos os 1,5ºc.
A indústria global da moda produziu cerca de 2,1 bilhões de toneladas de GEE em 2018, o equivalente a 4% do total global – ou o total de todas as emissões da França, Alemanha e Reino Unido combinadas. Cerca de 70% desse total vieram de atividades classificadas como upstreams, ou seja, atividades necessárias para a composição de um produto, como processamento de materiais e produção.
Já no terceiro cenário, caso a indústria da moda intensifique seus esforços, estima-se uma redução de 1,1 bilhão de toneladas nas emissões anuais, cerca de metade do total atual. O foco imediato deve ser redução das emissões nas operações upstream, em particular a partir do aumento do uso de energia renovável, por meio de esforços colaborativos em todos os elos da rede produtiva. Existe um potencial de redução de 60% das emissões de GEEs emitidas na produção de produtos.
Operações relacionadas a marcas têm potencial de redução de 20%, e os 20% restantes se encaixam na mudança de hábitos de consumo. Nesse cenário, a mudança comportamental na indústria será tamanha que, até 2030, uma em cada cinco peças de vestuário será comercializada por meio de negócios circulares.
Ações para toda a indústria
Para as reduções de emissões na produção das peças, o relatório elenca, primeiramente, uma melhoria de 20% na eficiência energética do maquinário ao adotar novas tecnologias. Além disso, a diminuição de fertilizantes e pesticidas no cultivo do algodão pode diminuir em cerca de 70% as emissões de GEEs nesse processo. A utilização de energia renovável também pode gerar uma economia de 703 milhões de toneladas no processamento de materiais – Isso pressupõe um ganho de eficiência de 5% nas fases de fiação, tecelagem e tricô, por meio de modificação do motor e pressão do ar em máquinas, por exemplo. Processos secos também consomem menos energias que os úmidos.
Minimizar a geração de resíduos na fase da fabricação de roupas por meio de melhores designers e técnicas de corte pode reduzir 24 milhões de toneladas de emissões. Assim, de modo geral, em um cenário de redução acelerada, cerca de 45% do abatimento deriva de melhorias na eficiência da produção, preparação e processamento da matéria-prima, enquanto 39% está ligado à transição para energias renováveis.
Um caminho para essa transição energética são Acordos de Compra de Energia (PPA – “Power Purchase Agreement”, em inglês), no qual empresas que necessitam de grande quantidade de energia assinam um acordo para comprá-la durante um período de longo prazo (10-20 anos). Contratos desse tipo estão disponíveis em países fornecedores como China, Índia e Vietnã. Mas ainda não existem em outro produtores importantes, como Bangladesh e Turquia.
As ações de descarbonização dentro as operações das marcas podem reduzir em até 18% as emissões de GEEs. O aumento do uso de transportes mais sustentáveis – trocando 7% do transporte aéreo para o marítimo – pode gerar uma economia de 39 milhões de toneladas de CO2eq. Atualmente, o transporte marítimo corresponde a 83% do total e o aéreo 17%. As medidas também devem se somar a um fortalecimento das redes de suprimento regionais.
Apesar de pouco expressiva, a mudança de embalagens para mais aprimoradas pode salvar 5 milhões de toneladas de emissões. As empresas devem adotar o uso de papelão ondulado, com corte no número de camadas – de cinco para três – de forma a reduzir seu peso. Ao contabilizar uma redução de 40% no consumo de energia em equipamentos de aquecimento, ventilação e ar condicionado, junto com a melhoria de 80% na eficiência energética com a mudança para iluminação de LED e transição para energia 100% renovável nas operações, o varejo pode reduzir suas emissões em 52 milhões de toneladas.
O relatório aborda a importância de reduzir a superprodução: atualmente, devido ao volume produzido, cerca de 40% das roupas são vendidas com descontos. Uma redução de 10% da produção em todo setor, por meio de investimentos em tecnologias para trabalhar demanda e gestão de estoque, pode reduzir cerca de 158 milhões de toneladas de emissões em 2030. É também fundamental que as marcas priorizem a transparência das emissões ao seus consumidores e estabeleçam metas. Monitorando, analisando e ajustando o desempenho de suas operações, as marcas podem definir padrões de rotulagem e tal comunicação transparente promoverá o envolvimento do consumidor.
Por fim, o relatório elenca a importância de aderir a modelos de negócios circulares. O estudo diz que “se as marcas forem capazes de envolver os consumidores sobre suas expectativas e necessidades, por exemplo, em relação à demanda por produtos duráveis, de alta qualidade e recicláveis, há uma oportunidade de expandir a participação de mercado no crescente segmento”. Modelos como aluguel de roupas, consertos e re-vendas são alguns dos exemplos sugeridos.
Outros atores, – governos e investidores – apesar de tão importantes quanto, são citados mais abaixo no relatório. Entre as ações necessários do poder público, o relatório enumera a promoção de práticas e consumo sustentáveis, dando como exemplo o Plano de Ação de Economia Circular da União Europeia, estabelecido em 2020. O plano foca em políticas para apoiar produtos, serviços e modelos de negócios sustentáveis que reduzam a produção de resíduos.
Os governos também devem se envolver no setor como participantes. “Os formuladores de políticas têm a oportunidade de aumentar seu envolvimento com participantes da indústria, permitindo-lhes formar opiniões sobre tópicos relacionados às emissões e apoiar regulamentos que permitirão a redução acelerada”, afirma o estudo.
Já os investidores são chamados a responsabilidade de incentivar esforços de descarbonização, direcionando as empresas de seus portfólios para a adoção de metas baseadas na ciência e nos esforços de redução de GEEs. Da mesmo forma, eles devem motivar a transparência nas empresas e promover o uso de avaliações de sustentabilidade padronizadas e apoiar a inovação com foco em soluções para os desafios de descarbonização, como a reciclagem de ciclo fechado.
Pontos cegos
O relatório segue apontando que “a boa notícia para a indústria da moda é que muitas das ações necessárias podem ser realizadas a um custo moderado”, além de pontuar que 55% das operações resultarão na economia de custos líquidos no setor. Usar a língua dos negócios, entendemos a estratégia. Mas não estamos tentando isso há décadas… e sem sucesso? Mas há outros pontos cegos. A começar pela metodologia utilizada pelo estudo: ter uma única “unidade de medida”, revertendo todos os GEEs no seu valor correspondente em CO2. Apesar de ser um método comumente utilizado, alguns estudos já comprovaram que, a longo prazo, essa equivalência torna-se incompatível, pois os gases se comportam de maneira diferente na atmosfera e têm consequências diferentes. Por exemplo, enquanto o metano permanece na atmosfera por 12 anos, o dióxido de carbono permanece por milênios.
Outra questão ressaltada é a importância da mudança da matriz energética utilizada no maquinário e nos processos para energia renovável. Os autores salientam que essa transição diminuirá as emissões de GEEs e permitirá maior lucratividade dos negócios, mas eles deixam de fora a necessidade de preservação de energia e suficiência da produção. O Paradoxo de Jevons mostra que uma mudança tecnológica que promove eficiência de um determinado recurso (como energia ou dinheiro) tende a aumentar a taxa de uso desse mesmo recurso.
Além disso, a produção energética nunca será totalmente verde – por isso a necessidade de pensar em conservação e suficiência. Painéis solares, por exemplo, têm como matérias-primas minérios extraídos, em sua grande maioria, de atividades insalubres em países no sul global. A atividade por si, além de gerar efeitos negativos sobre o ambiente local – como vemos no caso dos garimpos ilegais na Amazônia e nos grandes projetos de mineração como Mariana e Brumadinho – prejudica a saúde do minerador, cria disputas de terra, emite uma quantidade de gases na atmosfera, empobrece a comunidade local, interfere duramente na geopolítica internacional e pode terminar em ecocídios.
Nesse sentido, o grande elefante branco na sala permanece, no relatório, fora da sala: o volume obsceno de peças produzidas anualmente. Os autores sugerem uma redução de 10% da super produção, mas o próprio relatório aponta que cerca de 40% das roupas são produzidas para sobrarem e serem vendidas em liquidações. Nesse modelo de produção, todos os ganhos de eficiência apontados pelo relatório não tendem a desembocar em suficiência e conservação, mas sim gerar mais produção.
Nesse modelo de produção, todos os ganhos de eficiência apontados pelo relatório não tendem a desembocar em suficiência e conservação, mas sim gerar mais produção.
Na mesma toada, o relatório deixa de fora oportunidades de produção de matérias-primas de base regenerativa. É também lamentável ler diversas vezes pelo texto sobre pet reciclado ser uma alternativa de material sustentável, ganhando mais destaque que a necessidade de ampliação da produção do algodão agroecológico ou de agroflorestas com fibras têxteis, que, verdadeiramente, trabalham a premissa de justiça ambiental, climática e social.
Curiosamente, o relatório também reforça mais de uma vez a necessidade das marcas e varejistas apoiarem sua rede produtiva a fim de que esta também faça a transição para energias mais limpas e possam diminuir suas emissões. Porém, acumulamos exemplos da ineficácia dessas propostas e o mais emblemático deles talvez seja como as empresas sistematicamente têm negado qualquer tipo de responsabilidade por sua rede produtiva. Bangladesh depois do Rana Plaza e Bangladesh durante a pandemia são ótimas provas. Insistir numa colaboração voluntária – que nunca aconteceu de forma voluntária na prática – não seria um tipo de utopia (não concreta)? Varejistas são sempre os primeiros a se eximirem das suas responsabilidades e por que isso mudaria agora?
Mas talvez a grande falha do relatório tenha sido pontuar de diversas formas – na fala, no tamanho do texto – que a sociedade enquanto consumidora tem a mesma responsabilidade que as grandes corporações em “salvar o planeta”. O relatório ignora os modelos de negócio, a indústria da publicidade e o próprio fundamento da economia ao compartilhar a responsabilidade de forma igual entre quem produz e quem consome. Entretanto, ignorar que o mercado molda os hábitos de consumo, os falsos desejos e os excessos tem sido uma estratégia eficaz para garantir que as coisas continuem exatamente do jeito que estão. No livro Para a Crítica da Economia Política, de Karl Marx, o autor ressalta essa inter-relação como “a produção não produz, pois, unicamente o objeto de consumo, mas também o modo de consumo, ou seja, não só objetiva, como subjetivamente. […] A produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto”.
Os autores recorrem à compra de segunda mão (mesmo não falando sobre a necessidade de responsabilidade estendida pelo produto por parte das empresas) como prática sustentável – deixando de fora do debate a própria mentalidade consumista imputada durantes séculos nas pessoas por meio do marketing e das revistas de moda. A compra de uma roupa usada, na verdade, tem servido mais para gerar uma falsa sensação de bem-estar e de orgulho, mas não para mudar a lógica do consumo tão pouco a motivação e intensidade deste.
O coronavírus ilustrou quão difícil é fazer negócio frente a condições ambientais e sanitárias instáveis, mas o colapso climático será ainda pior. Frente a essa realidade, o relatório Fashion on Climate tenta dar caminhos, mas segue conservador. A mudança terá que vir pautada na realidade, ou ela, verdadeiramente, não virá.