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Ciência Sob Uma Perspectiva de Gênero: 5 Pesquisadoras Falam Sobre Desmonte, Assédio e Racismo

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  • Juliana Aguilera
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Victória Lobo

13 min. tempo de leitura

Enquanto vemos o Estados Unidos e China lutando pela vacina da Covid-19, algo que está sendo chamado de "Segunda Guerra Fria", o Brasil parece estar em outro tempo. Não é segredo para ninguém que investimentos na pesquisa reverberam em avanços da medicina, tão fundamentais para o bem estar social, e, ainda sim, o Brasil tem dado vários passos para trás com o fomento no setor nos últimos anos.

 

Da esquerda para a direita, as pesquisadoras Thainá Lins, Luciana Ventura, Luísa Molina, Gabriela Couto e Bruna Pereira

 

O cenário promissor da expansão de universidades para o interior, dos incentivos com bolsas fora do eixo Sudeste-Sul e para o exterior deu lugar ao enxugamento de recursos, diminuição de bolsas e outros incentivos. Somente em 2020, 8 mil bolsas permanentes de pesquisas foram cortadas do Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) que, junto com o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), é responsável pela distribuição de bolsas de pós-graduação no país. Os dados são do relatório do SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), publicado em junho.

Segundo o documento, quatro portarias publicadas entre fevereiro e março afetaram cerca de 6,8 mil programas de pós-graduação no país, aumentando a desigualdade regional de mestres e doutores – justamente o que o Ministério da Educação defendeu combater com a mudança. O SBPC apontou que o corte chegou a 22% em cidades com IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) baixo, sendo o recorte regional mais expressivo: enquanto a região Sudeste perdeu 7% das bolsas, as demais regiões perderam, em média, 14%. Por hora, a mudança não será sentida, porque muitos estudantes já aprovados para alguma pós-graduação seguem recebendo o benefício por meio do “bolsa empréstimo”. Porém, após a conclusão da pesquisa, a bolsa deixará de existir e prejudicará estudantes e pesquisas futuras.

Buscando entender como a precarização dos órgãos, corte de bolsas e baixos incentivos afetam o fazer intelectual, o Modefica conversou com cinco pesquisadoras sobre suas experiências nos últimos anos. Elas são mestrandas, doutorandas e pós-doutoras que lidam desde o desconhecimento de outras pessoas do que é ser pesquisadora, a assédio, racismo, dificuldades financeiras e de conciliar maternidade com a academia.

O desmonte

Na virada do século, o cenário era promissor. Sob o governo Lula, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações recebeu diversos investimentos; apenas em 2006 foram R$ 10 bilhões. Foi com o início da crise econômica, em 2014, que os ventos mudaram. Os investimentos foram, ano após ano, diminuindo e os valores das bolsas, congelados. A precarização atinge a academia de diversas formas e para além das bolsas de pesquisa: falta de materiais e de manutenção para laboratórios e corte em programas de cooperação internacional são outros exemplos.

Mas há muitas outras consequências. O DW apontou que, em 2018, a falta de investimento do CNPq em bolsas de doutorado para estudantes residentes na Alemanha fez com que o investimento do DAAD (Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico) caísse de € 11 milhões (R$ 67 milhões), em 2016, para € 8,7 milhões (R$ 53 milhões), diminuindo ainda mais as chances de estudantes brasileiros de produzirem seu doutorado no país. Outro dado levantado é o comparativo de investimento em ciência, tecnologia e inovação do governo brasileiro, que fica aquém da média dos países europeus. Enquanto o Brasil investe menos de 1% do seu PIB na área, os investimentos de países da Europa chegam a 3% do PIB.

É válido lembrar que o baixo investimento na área vai além do corte de bolsas de pós-graduação. Apesar do CNPq ser mais voltado ao desenvolvimento de profissionais e pesquisas científicas e tecnológicas, o Capes é responsável, além das bolsas, pelo intercâmbio de professores universitários e pela formação de professores da educação básica – são diversas bolsas ofertadas.

 

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A Pedra no Caminho

Uma das consequências desse desmonte foi a demora para o repasse de verbas para bolsas já aceitas, o que atingiu em cheio o planejamento de doutorado de Luísa Molina, em 2017. Ela descreve o atraso como um efeito dominó: “só comecei a receber a bolsa no segundo semestre. Isso foi bem impactante, porque tive que refazer meus planos, atrasou minha saída para campo”. Sua turma foi a primeira que não dispôs de bolsas para todos os pesquisadores. Luísa realiza seu doutorado em antropologia social na UnB (Universidade de Brasília) e estuda a importância vital da terra para o povo Munduruku, no médio Tapajós, sudoeste do Pará, na região do município de Itaituba.

 

A saída de campo consistia justamente na aproximação com a etnia, para entender o que significa a importância da terra para eles, seus projetos de futuro e o que acontece quando grandes empreendimentos – chamados de “projetos de morte” pelos indígenas – destroem suas terras. Por conta do atraso, ela precisou reduzir o número de disciplinas cursadas no primeiro semestre para poder trabalhar além de estudar. Apesar do empecilho, Luísa se considera privilegiada: “de lá pra cá ficou muito pior e as pessoas estão demorando mais para conseguir bolsas”.

Já a pesquisadora Bruna Pereira enumera diversas dificuldades encontradas na academia. Ela entrou no mestrado em 2011, uma época frutífera para a área, no qual universidades estavam expandido. No caso da UnB, onde estudou, haviam bolsas sobrando. Já em 2015, quando começou seu doutorado sobre vivências afetivos-sexuais de mulheres negras, a história já era outra. “A gente sente isso de várias formas. Uma delas é o contingenciamento de recursos, que muitas vezes só eram liberados mais tarde durante o ano, então o departamento não podia apoiar nossa participação em congressos”, explica.

Ela também cita como exemplo a diminuição de bolsas para o exterior, as histórias que ouviu de pesquisadores que desistiram dos programas por conta de não conseguirem se manter sem o auxílio e a dificuldade de conseguir emprego nas instituições acadêmicas, pós-término do doutorado. “É bem decepcionante, a gente se especializa muito e depois não consegue trabalho. Não vemos mais concurso para professor efetivo”, afirma, “tem para professor substituto, mas são poucos e postos super precarizados, porque são temporários e incertos”. Bruna também aponta que por conta da diminuição da oferta, a concorrência aumentou consideravelmente para tais vagas de trabalho.

“Toda forma de produção de conhecimento acaba sendo um trabalho que vai para além daquilo que é feito”.

Gabriela Couto

O desmonte da área pode afetar pesquisadores das mais diversas formas e isso inclui, claro, o psicológico. É o caso de Thainá Lins, que iniciou seu mestrado em Geografia, na URFJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), no início deste ano. “Não sofri com os cortes de maneira direta, o que coube a mim foi a apreensão e incerteza do financiamento à pesquisa, logo, da minha permanência no mestrado”, recorda. A instabilidade a fez pensar em desistir da pesquisa por diversas vezes, mas o incentivo de familiares, ex-professores e amigos do meio a ajudaram a persistir pela bolsa. Thainá estuda a mortalidade negra, a partir de um entendimento inicial de que ela resulta da construção social de desumanização, marginalização e criminalização de vidas negras.

Há também quem faça pesquisa “por amor”, como define a pesquisadora Luciana Ventura. Em 2012, ela iniciou seu doutorado na PUC-RJ, com o objetivo de mapear o comportamento da poluição do material particulado fino no estado do Rio de Janeiro. Apesar de seu estudo ser fundamental para o controle de poluição atmosférica, já que o Brasil não possui nenhuma legislação para o MP2.5, como é conhecido, Luciana não recebe incentivos por ser funcionária pública. Desde 2009, ela atua na gerência de qualidade do ar, do Inea (Instituto Estadual do Meio Ambiente).

Por isso, além de realizar suas pesquisas, ela cumpre horário de trabalho de 40 horas semanais. Para driblar a falta de recursos, ela faz parcerias com universidades públicas e particulares quando precisa de equipamento ou alunos para sua pesquisa. “O correto seria avaliar em função da sua produtividade científica, da sua relevância, não do local que você trabalha”, aponta.
 

Pesquisadora não trabalha?

E o entendimento da sociedade em geral sobre ser pesquisadora? A falta de incentivo na área se reflete também na pouca promoção na grande mídia. Mesmo dispersas em diversos estados do país, a resposta de todas as entrevistadas foi a mesma: as pessoas não sabem o que elas fazem. “De forma geral, quase 100% da reação de pessoas que não são da acadêmia quando você diz ‘sou pesquisadora, faço doutorado’, é dizer ‘mas você não trabalha?’”, relembra Gabriela Couto, doutoranda no Centro de Ciência Terrestre do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Gabriela estuda os desastres ambientais brasileiros pelas lentes de gênero e analisa como e porquê variáveis como contextos socioeconômicos e ambientais podem afetar homens e mulheres diferencialmente em tais eventos.

Thainá aponta para o estranhamento das pessoas, que não entendem a importância da pesquisa acadêmica. Ela relata que, em geral, escuta respostas como “eu nem sabia que existia pesquisa em geografia”. Luísa exemplifica com uma ida recente ao hospital: “a médica disse ‘qual sua profissão?’, eu respondi ‘sou pesquisadora’, e ela ‘tá, mas você não trabalha?’”. Já Bruna e Gabriela, apesar de não se conhecerem, apontam também outra resposta comum: a de estranharem que, com suas idades, “só” estudam. “Eles [pessoas fora da academia] não entendem o que eu tô fazendo até os 30 e pouco anos estudando. Tem uma dificuldade adicional: as pessoas não têm muito ideia do que é sociologia. Eu acho que eles pensam que eu fico lendo, mas tem outra parte que eu fico escrevendo”, conta Bruna.

Apesar desse cenário, Gabriela reconhece que cada vez mais vê grupos “como o Modefica, que estão buscando discutir questões que vão além do consumo, e que põem na pauta a importância da ciência e produção do conhecimento”. Mesmo pesquisas de base, como estudos de moléculas específicas do corpo humano tem alto potencial de resultar em conhecimentos determinantes no tratamento de doenças ainda não compreendidas pela medicina. “Toda forma de produção de conhecimento acaba sendo um trabalho que vai para além daquilo que é feito”, afirma.
 

Barreiras de gênero, classe e raça

Não importa que espaço ocupe na sociedade, a mulher ainda será subjugada pelo seu gênero. Essa regra, infelizmente, longe de ser quebrada, segue no meio acadêmico. Para além da falta de promoção e investimento da União na área, as mulheres tem que superar todas as formas de assédio, questões econômicas e preconceito racial para permanecer no espaço de pesquisadora. Luísa fez uma grande lista no Twitter sobre sua vivência como mãe na academia. Ela também nos enumera algumas outras situações: o assédio moral de dois professores homens; uma professora próxima que lhe disse ‘não sei porque você faz antropologia, você tem a sua beleza e desenha’, mesmo com sua dissertação tendo sido indicada a dois prêmios; os aplausos aos “gênios” da academia, sempre homens, e as dificuldades financeiras que, segundo ela, mãe de um filho de seis anos, é “a história de sua vida”.

A dificuldade financeira acompanhou Thainá durante sua graduação. A pesquisadora afirma que tinha o dinheiro contado para a alimentação do bandejão, dos materiais necessários às disciplinas, às saídas de campos. Por diversas vezes, ela também se sentiu não pertencente ao ambiente majoritariamente branco. “Ser preta no espaço acadêmico, por vezes, me faz sentir como se eu precisasse provar a todo momento que sou capaz de fazer isso”, afirma. Bruna também sentiu o preconceito racial de diversas formas, uma delas sendo excluída de diálogos. Ela classifica seu mestrado como “momentos muito intensos de solidão”.

“Ser preta no espaço acadêmico, por vezes, me faz sentir como se eu precisasse provar a todo momento que sou capaz de fazer isso”.

Thainá Lins

Para a pesquisadora, a sociedade brasileira não gosta de se ver como racista e é um preço muito alto que pessoas negras pagam para levantar tais questionamentos. “Eu senti muita falta, na pós-graduação, da interlocução. Isso me chateava bastante, de ver que alguns professores não tinham o que falar do meu projeto. Às vezes, eu preferia até uma crítica, porque era uma falta de engajamento com nossos projetos”, relembra. Bruna também aponta a inclusão de obras racistas nas disciplinas, que tiraram seu prazer de cursá-las. Ela complementa que não é o caso de tirá-las da grade, mas que, ao serem estudadas, sejam reafirmadas como obras racistas.

Às vezes, a motivação por trás dos impedimentos é velada, como o caso relatado por Luciana. Para realizar seu doutorado, ela precisava que um documento fosse autorizado pelo conselho diretor do Inea. Segundo o regimento do órgão, se o assunto fosse de interesse público, ela poderia ser liberada para o doutorado. “Eu tinha que fazer as disciplinas, não só a pesquisa. Mas tive um impedimento de um diretor, ele falou ‘se você quiser continuar cursando as disciplina, vai ter que compensar as horas que estiver fora’”. Por isso, ela chegou a trabalhar 12h por dia para compensar os horários. “Eu já sofri esse tipo de coisa e eu vou te dizer que não sei se isso foi devido a minha cor, por eu ser mulher, ou ambos”, reflete.

Apesar de não ter vivido algo do tipo, Gabriela reconhece que o campo é cheio de tais preconceitos. Ela aponta para a situação atual, da pandemia, onde mães pesquisadoras são esperadas a ficarem em casa, cuidando dos filhos. “Se a gente joga no Google ‘mulheres’ e ‘ciência’, tem várias publicações sobre a queda da produtividade das mulheres”, observa, “isso acarreta na diminuição da produtividade, de publicação de artigos científicos e do reconhecimento como boa pesquisadora”.

Ações necessárias para a ciência brasileira

A ciência brasileira pede socorro e não é de hoje, mas hoje convidamos as cinco pesquisadoras a apontar o que precisa ser feito. Dizer que “falta investimento” pode soar pouco objetivo, afinal, todas as áreas precisam de investimento. Thainá começa nossa lista com ações que, na verdade, custam zero reais: “é indispensável que o Governo Brasileiro tenha respeito pela ciência e pelos pesquisadores brasileiros. É inconcebível que representantes do Governo ponham estudos científicos em questionamento sem qualquer respaldo para tal”. Ela reforça que o discurso de aversão à ciência ganha força junto à população e, assim, torna-se viável o apoio popular para gerar mais cortes na educação.

Bruna também lista ações que dizem mais sobre coordenação do que investimento: “uma ação coordenada do Governo Federal pode ajudar muito. Outra questão é retomar o apoio às ciências sociais e humanas, que são vistas como ciência inútil, Marxismo Cultural”. Ela também aponta a importância da interiorização das universidades, para que a educação chegue nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. “Dessa forma, a gente consegue democratizar a ciência, trazer outros temas à tona, e colocar outras caras de cientista”, afirma.

O apoio a grupos mais vulneráveis certamente é uma opção indispensável para a produção de novos conhecimentos. Luísa apoia não só o financiamento de projetos de pesquisas, mas o auxílio para estudantes indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais. Luciana acredita que, além da necessidade de abertura de novos editais, as verbas destinadas para tais também precisam crescer. Ela também gostaria que tais benefícios se estendessem para pesquisadores de órgãos públicos.

Gabriela destaca a necessidade de fortalecer os órgãos federais de financiamento em pesquisa, como Capes e CNPq, e estimular parcerias com universidades internacionais. “Quando você olha alguns grandes e importantes projetos científicos, a maior parte deles teve financiamento da Capes e CNPq em parceria com universidades ao redor do mundo”, explica. É o caso do programa LBA (Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia), que trata do funcionamento e da dinâmica da floresta, que teve financiamento do CNPq e NASA. Alguns pesquisadores desse programa foram ou ainda são parte do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) e ganharam, em 2007, o prêmio Nobel da Paz pelo avanço no conhecimento das mudanças climáticas.

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