No fundamental, a dinâmica da crise evidenciada pela pandemia é do modelo de relação social, baseado na apreensão dos meios de produção pelas mãos de alguns e pela exclusão automática da maioria dos seres humanos das condições de sustentar materialmente sua existência, sustento que as classes desprovidas de capital são coagidas a obter mediante estratégias de venda de sua força de trabalho. O modo de produção capitalista é a crise.
Os custos humanos da pandemia vislumbram-se extremos. Também isto não se deve a uma pretensa má-sorte da economia contra a natureza, porque aquela não é o ponto fixo e estável em favor do qual se devam moldar o natural e o social. A economia capitalista não tem que ser assim como é. O flagelo do desemprego, as habitações precárias para suportar quarentenas, as contaminações em transportes públicos lotados e a fragilidade do sistema de saúde são, exata e necessariamente, condições históricas de um modo de produção específico, o capitalismo.
Pela aceleração da acumulação burguesa, o Brasil gestou um golpe em 2016 e, em seguida, vem desmontando seu Sistema Único de Saúde (SUS), historicamente não consolidado, agora ainda mais fragilizado. Caso a situação pandêmica se revele menos grave, é possível que o sistema econômico capitalista e suas demandas sociais venham a se ajustar, contornando parcialmente sua crise. É provável, no entanto, que a dor humana e a morte se vejam em quantidades exacerbadas e as coordenações sociais, institucionais, políticas e econômicas sejam insuficientes ou disruptivas. O capitalismo, pelas suas formas, não pode resolver as questões da saúde coletiva, do assalariado ou da habitação.
No primeiro caso porque, se tudo é mercadoria, a saúde não consegue deixar de ser capturada por tal determinação. O SUS nunca conseguiu ser totalmente público; cada vez mais está sendo desmontado em favor dos negócios privados. No segundo caso, porque o salário é justamente a forma da exploração econômica. No terceiro caso, porque a propriedade privada orienta as condições de habitação, e sua característica é ser erga omnes 1Erga omnes é uma expressão usada principalmente no meio jurídico, para indicar que os efeitos de algum ato ou lei atingem todos os indivíduos de uma determinada população ou membros de uma organização, para o direito nacional. , contra todos. Assim, a propriedade é de alguém, não dos demais, fazendo com que a maioria não tenha onde morar. Em momentos extremos, pode ser que a saúde, o desemprego e a ausência de condições básicas de vida não consigam ser minorados com as políticas públicas do Estado.
Então, somente a superação das formas do capital – mercadoria, Estado e direito – dará conta de resolver seus impasses: contra a fragilidade do sistema da saúde semipúblico e dependente do capital, não só hospitais de campanha, mas a saúde pública universal; contra o desemprego, não só novos empregos ou bolsas de apoio, mas a tomada dos meios de produção; contra as habitações precárias, não só tendas provisórias, mas o fim da propriedade privada.
O grau da crise demonstrará o grau das necessidades e das urgências. A reação das sociedades capitalistas tende sempre a ser uma resposta no limite mínimo às demandas máximas. Neste começo de crise, pensa-se pelo trivial: renda básica disponibilizada aos mais pobres, linhas de crédito de socorro a empresas, dilatação de prazo de pagamento de tributos. É possível que nenhuma das receitas tradicionais ou de menor impacto sejam suficientes e, por fim, o capitalismo não consiga dar conta da pandemia: deve-se então superar rapidamente o capitalismo.
Trecho do livro "Crise e Pandemia" por Alysson Leandro Mascaro. Copyright © 2020 por Alysson Leandro Mascaro e Editora Boitempo. Trecho publicado com permissão da Editora Boitempo. Compre o ebook e leia na íntegra no Kindle ou Kobo, Google e Apple.