O Backstage é o podcast do Modefica para falar sobre moda a partir de diversos pontos de vista e para muito além do que vemos nas passarelas, nas revistas, no Instagram e nas manchetes. Sempre com convidadxs especiais contando sua trajetória, e junto com nossa editora Marina Colerato, o Backstage debate indústria, carreira, questões de gênero e raça, temas quentes e futuro da moda. Ouça no Spotify ou iTunes.
No novo episódio do Backstage, Hanayrá Negreiros conta sobre como a moda pode transcender o tradicional espaço da confecção, do varejo, do estilo e reatar laços históricos e culturais brasileiros. Pesquisadora e educadora em moda, história cultural e curadoria, Hanayrá tem como principal área de estudo as estéticas afro-brasileiras e africanas, foi pioneira no estudo da indumentária do Candomblé no Brasil e busca evidenciar a importância das mulheres costureiras negras escravizadas do século XIX.
Hanayrá define moda como uma herança de família: seu avô paterno era alfaiate e a avó materna costureira. Ela tem lembranças de desenhar croquis aos sete anos e combinar com uma amiga de criar uma marca de roupa. Ela cultivou essa paixão até que, aos 18 anos, entrou no curso de Negócios da Moda, na Universidade Anhembi Morumbi. Após passar algum tempo como vendedora, sempre com muita dificuldade de adentrar na moda por meio de sua área de formação, ela entendeu que gostava mesmo era da pesquisa.
Os botões foram se encaixando e ela percebeu que o amor por fotografia, o interesse pelo Candomblé e por história poderiam se tornar objetos de estudo. A visita a um terreiro de Candomblé foi um despertar. A pesquisadora relata como se apaixonou pelo jeito que as pessoas estavam vestidas. “Foi a parte que mais me chamou a atenção”, explica, reforçando que a roupa é nossa linguagem natural.
Em 2015, ela começou a montar seu projeto de pesquisa de mestrado com esse olhar para a importância das roupas na religião centro-africana no Brasil. O departamento de Ciência da Religião da PUC-SP, bastante tradicional, não contava com muitos pesquisadores de Candomblé, muito menos pensando em indumentária. Os alunos, relata Haynará, tão pouco: além de ser uma pesquisadora negra na faculdade, ela conta que quando apresentava a pesquisa nas disciplinas, as outras pessoas a olhavam como se ela fosse “um et”. “Eu ia bem preta, com as minhas roupas coloridas falar de roupa de Candomblé, as pessoas ficavam meio confusas”, comenta rindo.
Marina aproveitou para lembrar sobre a importância dos profissionais da área de ligarem a moda com outros campos de atuação e pesquisa científica. Ela reforça como a moda ainda é atrelada à uma história eurocentrada e como estudos de outras culturas parecem pouco importantes no meio acadêmico. E, de fato, Hanayrá confirma que teve dificuldade de seguir com sua pesquisa pela falta de bibliografia. “Não existem muitos estudos sobre a indumentária religiosa, sejam quais religiões forem, e muito menos de Candomblé”, afirma.
Mas mesmo a dificuldade serviu para que a pesquisadora trouxesse um outro olhar na sua pesquisa. “Eu entendi, no final, que não precisava encaixar a moda dentro da ciência da religião. Eu poderia apresentar estes dois campos de conhecimento e ver como eles poderiam caminhar juntos”, explica a pesquisadora.
A herança das costureiras negras
Hanayrá elege como uma das descobertas mais significativas do seu estudo a compreensão de que boa parte das roupas produzidas no século XIX foram feitas por mulheres negras que eram vendidas, muitas vezes em jornais, para modistas. Sua pesquisa teve como fio condutor os registros fotográficos da época; ela explica que o Brasil possui um dos maiores acervos de fotografias da época da escravidão.
Ela se encantou tanto pelo tema que ele seguirá sendo seu foco de estudo no doutorado, cujo projeto está sendo construindo. “Essa estética, que se mantém até hoje nos terreiros de Candomblé, com as baianas de acarajé na Bahia, nas várias manifestações negras, é uma estética que foi desenhada por mulheres negras, escravizadas muitas vezes”, afirma.
Seu estudo também lhe rendeu o entendimento de como fazer uma pesquisa e contar uma história, principalmente de um objeto como a roupa, que muitas pessoas não refletem compreender como algo importante, mas que pode servir como uma leitura da comunidade, principalmente uma tradicional. “Um de nosso papéis, de quem trabalha com moda, é de trazer luz neste campo e tirar um pouco desse lugar de futilidade que a moda carrega”, reforça. Marina pontua como a moda pode ser uma ferramenta para conhecimento histórico, para entender a sociedade atual, modelos econômicos, sistemas, rede produtivas, publicidade e muitas outras áreas.
A pesquisadora aproveita para comentar sobre sua vida como professora, mediadora, e como ela não deixa de pesquisar e estudar para passar estes conhecimentos para outras pessoas. Ela termina o episódio nos dando uma ótima dica de filme que tem tudo a ver com o tema da importância da roupa para a história e cultura dos povos africanos.