Worth é um nome de extrema importância para a moda em diversos aspectos, mas principalmente porque foi ele quem começou a transformar a moda num espetáculo publicitário. Com ele os costureiros saíram do anonimato e foram dados os primeiros passos para a posteriormente batizada haute couture – a alta-costura. O costureiro inglês foi percursor em perceber e fazer uso da ligação da moda com o “prazer de ver e ser visto, de exibir-se ao olhar do outro”, como afirmou o filósofo francês Gilles Lipovetsky. Desta afirmação pode-se tirar a real finalidade dos desfiles de moda: projetar-se no spot da passarela.
Os desfiles de moda cresceram junto com a indústria têxtil e da beleza expandidas e se tornaram verdadeiros espetáculos. Neste contexto, esses eventos foram crescendo exponencialmente e se tornaram um segmento específico dentro do mercado de moda, trazendo a atenção do público para o próprio desfile em si e para toda estrutura e movimentação que envolve o processo de sua realização, deixando as roupas em segundo plano.
Mais de cem anos depois, as semanas de moda, que sempre foram espaços exclusivos para clientes fiéis, editoras de moda, compradores e celebridades, estão enfrentando uma severa crise existencial. Os questionamentos são diversos: a disseminação dos desfiles nas mídias sociais, relevância das semanas de moda, a saturação do mercado de street style, o lançamento do não tão bem sucedido see now buy now… Tudo isto está tocando agora numa severa crise de valores pessoais e mercadológicos não só da indústria da moda, mas da indústria dos desfiles especificamente falando. Até que ponto as semanas de moda continuam fazendo sentido?
São Paulo Fashion Week: Sim, não, por que
No Brasil são diversos eventos que servem de espaço para diferentes marcas lançarem suas coleções. O mais importante deles segue sendo o São Paulo Fashion Week (SPFW). A semana de moda paulista se tornou o mais importante evento da moda brasileira movimentando uma considerável quantia de recursos financeiros, além de possuir uma gigantesca estrutura de montagem, e um enorme corpo de profissionais de diversas áreas de atuação na moda.
Mas, entra ano, sai ano, o SPFW se depara com debandeamento de marcas, dificuldade de patrocínio e desgaste de imagem. Enquanto o evento nunca se preocupou muito em incluir, dialogar, diversificar – e, por isso, nunca conseguiu de fato se reinventar e se renovar – quem ficou na periferia do debate encontrou meios de fazer e comunicar sua própria moda. O mundo mudou e as tentativas do seleto clubinho fashion de se manter relevante sem realmente mudar mentalidade se mostram cada vez mais frustadas. Os até então esnobados pela elite da moda, ganharam uma relevância impossível de ser ignorada. Esses não precisam da “grande mídia” e do SPFW, eles dialogam com seu público diaramente nas redes sociais e chamam atenção de quem comunica moda hoje: influencers, bloggers e novas mídias.
Antes da SPFW n47 começar, o jornalista Eduardo Viveiros já tinha refletido sobre a mudança do line up com um tanto histórico de “novas marcas” (novas entre aspas, já que muitas marcas são novas na semana de moda, mas existem há alguns bons anos fora dela) e sobre como estas precisam ficar atentas para não “cair sem aviso no moedor de carne ético e estético”. Porque, verdade seja dita, o SPFW precisa mais das novas marcas do que as novas marcas precisam do SPFW. Para muitas iniciativas, inclusive, pode até soar como algo deslocado de lugar e de propósito, arriscando uma crise de imagem com o próprio público que pode gerar mais perdas do que ganhos.
“Moedor de carne ético e estético”
Até parece que Viveiros escreveu o prólogo de algo que só uma boa ficção de distopia poderia prever. Um modelo cai na passarela, morre e uma sequência de erros de comunicação, posicionamento e gerenciamento de crise seguem. Uma distopia irônica, diga-se de passagem, já que o tema da edição n47 era “utopia”. Enquanto o debate suscitado pós-evento tendeu a cair num falso moralismo, numa mea-culpa, numa ilusória moda humana onde “todos erram”, a gente perdeu a oportunidade de falar sobre a realidade nua e crua desse universo: pessoas sempre foram o de menos, a imagem sempre foi o demais. O ver e ser visto de Lipovetsky, aos poucos, foi alcançado extremos cada vez mais insustentáveis na moda.
Para qualquer um que acompanha o backstage da moda há um tempo é difícil colocar em palavras o porquê os acontecimentos envolvendo a morte do modelo Tales Cotta são indigestos. Por mais que seu falecimento não tenha tido absolutamente nada a ver com o “moedor de carne ético e estético” que a moda é, os acontecimentos subsequentes – como o reinicio do show, a falta de transparência na comunicação e a reação vaga das mais diversas personalidades e pessoas da moda às tentativas de “justificativas” por parte da organização do evento – têm.
Enquanto o debate suscitado pós-evento tendeu a cair num falso moralismo, numa mea-culpa, numa ilusória moda humana onde ‘todos erram’, a gente perdeu a oportunidade de falar sobre a realidade nua e crua desse universo: pessoas sempre foram o de menos, a imagem sempre foi o demais.
Se, por um lado, assumir responsabilidades nunca foi o forte do nosso setor e jogar na zona neutra sempre foi a forma de garantir estar dentro do jogo na próxima estação, por outro, a avalanche de críticas que o evento recebeu por ter continuado normalmente após a morte de Cotta é, na verdade, reflexo da estafa coletiva de pessoas engasgadas com essa indústria, que vem se acumulando há anos.
Modelos que adoecem para se encaixar num padrão, pessoas que são tratadas com extremo desprezo e desrespeito por agentes, fotógrafos, estilistas, assessorias de imprensa e afins, abuso e assédio sexual, trabalho análogo à escravidão, racismo, falta de ética são só alguns dos diversos problemas da moda… Eles são tantos e estão acontecendo há tanto tempo que é desonestidade ou comodismo falar sobre imprevistos. Sem orgulho e com convicção, dizemos que tratar gente como item descartável não é imprevisto, é modus operandi da moda como ela foi construída.
Fim do ciclo
A desumanização sistematizada dessa indústria, em todos os níveis hierárquios e lugares de atuação, não é mais segredo, e nega-la não serve à ninguém, muito menos à necessária mudança. É impossível pensar em renovação, mudança e nova era sem estarmos dispostos a transcender os modelos mentais e comportamentais dominantes que nos trouxeram até aqui. Quanto antes encararmos essa realidade, pouco bela e nada glamourosa, antes vamos estar aptos a criar novas modas. Isso passa invariavelmente por repensar o papel das semanas de moda e questionar o porque temos tanta dificuldade de reformulá-las ou simplesmente deixá-las para trás.
Assumir o fim de um ciclo não significa desprezar o passado. Pelo contrário. Significa entender que tudo tem seu tempo. Abrir espaço para outras possibilidades ao invés de ficar agarrado a um modelo cansado e obsoleto, pode, inclusive, abrir novos caminhos para a indústria como um todo. Se tirarmos todas as camadas, a moda somos nós, seres humanos em busca de formas de expressão pessoal e coletiva, consciente ou inconscientemente.
Assumir o fim de um ciclo não significa desprezar o passado. Pelo contrário. Significa entender que tudo tem seu tempo. Abrir espaço para outras possibilidades ao invés de ficar agarrado a um modelo cansado e obsoleto, pode, inclusive, abrir novos caminhos para a indústria como um todo.
É neste lugar desnudo onde podemos nos reencontrar como pessoa, que, assim como quaisquer outra, está vulnerável à vida e às mudanças. A transformação começa com esse olhar individual para que possamos 1. nos perceber como seres humanos parte de um universo; 2. reconhecer por que estamos onde estamos, trabalhando com o que trabalhamos; 3. compreender nosso papel no contexto presente de modo que o que fazemos hoje constrói o futuro e 4. pensar e agir para o coletivo diverso. Abertos para esta vulnerabilidade, a criatividade e inovação ficam com espaço livre para encontrar novas rotas, novas formas de estabelecer diálogo, fazer e comunicar moda.
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Esse texto foi escrito por Nathalia Anjos e Marina Colerato como parte de uma série de textos que convidam as leitores e leitores a entenderem e repensarem os pré-conceitos estéticos e imagéticos da moda. O primeiro texto, Para Mudar a Moda, Precisamos Transcender o Sistema Predominante, falou sobre a necessidade de questionar o modelo mental responsável por retratar o status quo de representações da moda. Veja mais textos da série clicando aqui.