Uma olhada rápida nos números prova que há algo errado em insistir com a mentalidade fordista na indústria da moda. De acordo com um levantamento feito pela Ellen MacArthur Foundation, organização inglesa estabelecida em 2010 com a missão de acelerar a transição rumo a uma economia circular, cerca de $500 bilhões são perdidos todos os anos em roupas que mal são usadas ou recicladas. O equivalente a 1 caminhão de lixo têxtil é descartado no mundo por segundo.
Antes mesmo de chegar às prateleiras das lojas, o desperdício já começa na costura: cerca de 20 a 30% de tecido é descartado no processo de corte de uma peça. Mesmo as confecções mais eficientes, que contam com processos automatizados de encaixe, não conseguem perder menos que 10%. Segundo dados da Abit – Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção, em 2017, somente no Brasil estimou-se um desperdício de 170 mil toneladas de resíduos têxteis.
De olho nesses volumes, governos europeus estão começando a tratar a indústria da moda e seu lixo como um problema que deve ser endereçado. A França está estudando a possibilidade de proibir o descarte de produtos de moda ainda em 2019. No Reino Unido, cogita-se uma taxa para cada item de peça de moda vendido pelas empresas com maior volume e lucro – o valor seria uma das muitas formas de responsabilizar as marcas pelo pós-consumo.
Enxergando brechas na indústria, e desconfortáveis com o desperdício de recursos – naturais e financeiros -, uma gama de novos negócios estão tateando o começo do que pode vir a se tornar uma transformação de mentalidade em se tratando de processos criativos e modelo de negócio motivados pelo conceito de reaproveitar até onde for possível. À frente de legislações impostas, marcas e projetos buscam minimizar um problema antigo e, até então, muito desprezado: o “lixo” da moda.
Enquanto a maior parte das marcas luta para aceitar que o lixo também é responsabilidade da empresa, torcendo o nariz para as legislações por vir, um tanto de gente criativa vem mostrando que é possível, sim, praticar o upcycling, inclusive em grande escala. Simples não é, mas com imaginação, boa vontade, colaboração, criatividade e investimento juntos e misturados, dá pra fazer.
Novas soluções estão tateando cenários futuros
Um dos exemplos é o Banco de Tecido, iniciativa pioneira de Luciana Bueno, que se propôs a olhar para um problema muito corriqueiro na confecção: a sobra de tecidos das coleções de moda.
O Banco de Tecido funciona como um negócio de economia mista: o correntista traz o tecido que já não o serve para ser trocado – ganhando um crédito equivalente a 75% do total deixado. Os outros 25% ficam com o Banco para manutenção do negócio. Quem quiser comprar, sem trocar, também pode. O valor do quilo é de R$ 45, independente do tecido, pode ser uma seda pura ou uma malha simples.
A ideia veio da experiência pessoal de Luciana com meia tonelada de tecido, sobras de sua produção como cenógrafa e figurinista. “Ao tentar resolver esse problema, eu descobri que era um problema da rede. Meu primeiro medo foi: ‘caramba, a rede produtiva da moda é selvagem. Será que ela vai me aceitar?’ E só estamos aqui, em crescimento, porque existe uma demanda”, afirma. Com cinco anos de existência, o Banco de Tecido possui, atualmente, 1.100 correntistas só na cidade de São Paulo – da costureira que pega dois ônibus para chegar ao espaço físico do Banco na Vila Leopoldina, em São Paulo, até marcas consagradas.
Enquanto Luciana olhou para as sobras de tecido, um problema que perpassa falta de planejamento, possibilidade de comprar muito e falta de responsabilização da indústria com o próprio lixo, enxergando a possibilidade de transformar tecido em moeda, outras iniciativas seguem por outras brechas da rede produtiva, como, por exemplo, o excesso de estoque de roupas paradas de coleções passadas ou toda aquela roupa que vai parar em bazares de caridade entupidos de roupas que, dificilmente, terão uma segunda chance.
Roupa velha, roupa nova
Mirella Rodrigues é a responsável pela Think Blue, marca carioca criando a partir do bom e velho jeans, um dos itens mais produzidos no Brasil. Na faculdade, a estilista teve o primeiro contato com o tecido e notou questões contrastantes: o jeans é um tecido muito resistente, muito poluente e facilmente descartável. “Eu reparei quantas peças tinham nos bazares que eu frequentava na Zona Norte e, aí, pensei: ‘pra quê vou criar mais roupas com jeans novo se tem um monte espalhado por aí, abandonado?’”, explica. Juntando a versatilidade e resistência do tecido, a Think Blue surgiu há três anos para trabalhar com o jeans com olhar diferente.
As peças são feitas uma a uma, com um leque de possibilidades maior do que Mirella teria no modelo linear de produção. “Eu já sei as cores que tenho, a gramatura do tecido, o caimento. No upcycling, você tem a possibilidade de trabalhar com a criatividade o tempo inteiro”, afirma. Para conscientizar seu público sobre a importância de repensar os processos de moda, Mirella informa a quantidade de água utilizada em cada peça, quantas calças foram necessárias para criá-la e quantas horas a costureira levou para cortá-la e costurá-la.
Para Agustina Comas, fundadora da Comas, o insight veio depois de muitos anos trabalhando na indústria e, principalmente, da sua experiência com alfaiataria masculina. Criada em 2015, a Comas produz peças de tricoline, malha circular, linho e jeans de camisaria através de roupas que não chegam no mercado convencional por apresentarem pequenos defeitos. “Às vezes são manchas, furos, problemas na modelagem. E nós fazemos esse questionamento: por que um defeito não pode virar um efeito?”. Agustina trabalha com upcycling desde 2008, mas foi quando deixou o trabalho na Daslu que começou a pensar em um projeto grande de reaproveitamento de tecidos.
A inspiração para criação das roupas vem com o que Agustina chama de design por restrição. “Não é uma coisa que você parte do zero. ‘Ah, eu quero criar isso, então vou atrás do tecido’. No nosso caso, com a nossa técnica de upcycling, falamos de conservar o conhecimento congelado do produto, ou seja, como eu vou resolver esse problema utilizando o material da melhor forma”, explica. A limitação gera um exercício de criação que Agustina adora. Com os tecidos em mãos, vem o desafio de construir uma linguagem da marca, com todos os produtos produzidos através de garimpos de camisas paradas em estoques por aí.
Usar a matéria-prima que chega até a empresa, sem garimpar itens específicos, é algo que desafia todo o processo produtivo do projeto Re-Roupa, criado por Gabriela Mazepa, em 2013, época que o upcycling era pouquíssimo discutido no Brasil. Com a proposta de criar novas roupas a partir de roupas antigas, estendendo seu ciclo de vida, o projeto funciona num tempo e espaço particulares. “Temos que lidar com estas arestas ao longo do processo, porque pode acabar a matéria-prima no meio do caminho, pode ser necessário fazer encaixes mais ousados de tecido e a mão de obra não é igual, porque não é uma maneira simples de confeccionar roupa”, destaca Gabi.
A inspiração para criação das roupas vem com o que Agustina chama de design por restrição. “Não é uma coisa que você parte do zero. No nosso caso, com a nossa técnica de upcycling, falamos de conservar o conhecimento congelado do produto, ou seja, como eu vou resolver esse problema utilizando o material da melhor forma”, explica”.
A habilidade de usar o que tem na mão possibilita a estilista trabalhar numa ampla gama de projetos. Há pouco mais de um ano, Gabi está com a FARM para o projeto re-FARM, responsável por dar vida nova às milhares de peças paradas no estoque da marca carioca. Gabi também assina figurinos para artistas e teatro, além de tocar sua própria marca, com espaço loja-ateliê aberto ao público na Santa Cecília, em São Paulo.
Esquematizar o artesanal
Para dar um pouco mais de agilidade na produção e viabilizar o negócio, cada marca trabalhando com upcycling busca criar suas próprias metodologias, que acabam sendo um misto de produção em série com o artesanal. “Eu já entendi que não posso usar uma única metodologia. Trabalhamos as peças uma a uma, mas conseguimos esquematizar uma forma de usar máquina de corte, por exemplo. Nossas quantidades estão variando, mas aumentando nesse sentido”, explica Gabi. Recentemente, a Re-Roupa entregou uma produção de mais de 1.500 peças para a Farm.
Já Agustina conta que desenvolveu o método Comas de “Upcycling Raiz”, que envolve vários processos e técnicas. “Temos a ficha técnica, as receitas, as tabelas de medidas, mas não deixa de ser um trabalho artesanal, principalmente porque não costuramos as peças em série”, explica. As roupas são costuradas do começo ao fim por uma única costureira e as tiras de tecido são entregues cortadas, uma a uma, nas pequenas oficinas. A técnica ajuda a otimizar a produção.
Além disso, ela também consegue aplicar a mesma mentalidade a outras “sobras”. Os tecidos Oricla, Oricla Ponta de Rolo e Caquinhos partiram daí. “Nós criamos e produzimos [o Oricla] através das ourelas, das bordas laterais das camisas. Com o Oricla Ponta de Rolo, nós pegamos as pontas do rolo que sempre sobram na hora de fazer o enfesto (quando um tecido é posto em cima da mesa para corte)”, explica. O pedaço de tecido é vendido, normalmente, a quilo. Com a linha “Caquinhos”, a Comas também trabalha com malharia circular, no qual pega as sobras de corte de malhas e as junta, criando um novo tecido.
Os processos de prototipagem e corte das peças são os maiores desafios para Mirella, que aponta que, ao trabalhar com uma equipe pequena, a ajuda e sugestão de ideias para resolver problemas torna-se escassa, mas que não deixa de ser um processo enriquecedor do início ao fim. “Eu tenho o privilégio de exercitar minha criatividade. Prefiro mil vezes ter desafios assim, diariamente, do que cortar 50 calças iguais”, afirma.
Para além da criatividade: Escalabilidade, investimento e lucro
Como manter e crescer marcas e projetos que apostam numa estrutura menos robótica e mais constituída por mãos humanas num cenário dominado pelo pensamento linear, volume, escalabilidade e velocidade do fast fashion? Verdade seja dita: não é uma tarefa fácil.
Para Gabi Mazepa, o processo de testar, errar e perder dinheiro é natural e individual de cada empresa. No Re-Roupa, ela balanceia os gastos com consultoria em empresas e workshops, sem ficar atrelada única e exclusivamente à venda de roupas da sua marca. Augustina também aposta em workshops para pessoas interessadas e parcerias com marcas maiores. A Comas já esteve no SPFW junto com Fernanda Yamamoto e fez o primeiro teste ao trabalhar com uma grande confecção, a Souza e Campos. Aumentar e otimizar produção, para chegar em mais pessoas e gerar lucro, é uma missão que leva tempo.
Agustina Comas contou para o Modefica sobre seu processo criativo e como ela enxerga o futuro da moda por meio do upcycling
Luciana entende que seu maior desafio é levar a solução do Banco de Tecido para um público cada vez maior por falta de verba. “Nos negócios que são de propósitos sociais ou ambientais, ou todos eles, às vezes o propósito de escala não é ser gigantesco, mas é acessar [pessoas]”. Para ela, a falta da cultura do investimento no Brasil é um limitador para a escalabilidade dos novos negócios e das pequenas e médias empresas. “Eu estou fazendo, mas estou fazendo da maneira que o ritmo de um negócio pequeno permite.”
É imprescindível destacar que escala e quantidade de aporte financeiro interferem diretamente no preço final do produto nas lojas. Hoje, preços baixos são possibilitados por, entre outras coisas, volume. Quanto mais se produz e quanto mais acesso aos meios de produção, mais barato fica. Para quem está desafiando essa lógica produtiva, este é um gargalo que, para ser superado, depende muito mais de colaboração entre diversos elos da rede produtiva, do que de um simples esforço em produzir mais e baixar preços. “Qualquer solução tem que ser em rede, inclusive dos pequenos e médios com os grandes”, lembra Luciana.
Social > Capital
Estar inserido dentro de uma lógica, tentando transcende-la, também tem seus ganhos sociais. Os correntistas do Banco de Tecido, por exemplo, trabalham em uma colaboração ambiental, que se mostra social também. “O sistema [do Banco] oferece uma forma de melhorar sua produção, melhorar a produtividade e a precificação”, expõe Luciana. Dessa forma, micro e pequenos empreendedores podem ter uma maior autonomia e um acesso que a indústria, operando em escala dos milhares, não os oferece.
Mirella aposta na disseminação de informações dos seus produtos no site e redes sociais como forma de valorizar o trabalho da rede produtiva da moda e alertar para a responsabilidade ambiental. “Eles entendem que a roupa não brota na nossa frente. Existem humanos por trás das roupas e valorizá-los é primordial para mim”, afirma.
Gabriela avalia que, com o Re-Roupa, para além dos funcionários e do trabalho em conjunto com cooperativas e confecções, possibilitando, muitas vezes, o primeiro contato de muitas pessoas da rede produtiva com essa nova mentalidade, os workshops são uma ferramenta para algo maior, como trabalhar em conjunto com pessoas desconhecidas e se desafiar manualmente. “A costura é uma coisa ancestral, em algum lugar da nossa história celular já fizemos isso”, conta Gabi.
A lógica pensante do upcycling também é o saldo positivo para Agustina. “Essa parte de disseminar ideias em workshops é uma parte muito importante da empresa hoje”, afirma. Ao capacitar pessoas pensantes, não repetidoras de ações, o cliente passa a entender como o produto é feito, o seu custo. Já quem é capacitado para trabalhar nesse novo modelo aprende a pensar de forma não robótica.
Futuro da tendência
É em um mercado de moda em mudança que o upcycling vai abrindo seu espaço para promover diálogos mais profundos do que o simples “reciclar” as roupas. “Estamos querendo, na verdade, repensar o consumo, a extração de recursos virgens, repensar a relação das pessoas com as roupas”, afirma Agustina.
Mudar o movimento não é fácil em uma cadeia de produção que funciona desde o século XVIII no sistema linear e capitalista, mas como alertou Luciana, esse sistema está sendo questionado em todas as áreas e agora chegou a área da moda e do têxtil. É um processo que não tem volta e está movimentando das micro às grandes empresas.
Re-Roupa e FARM já estão na terceira coleção de roupas da marca carioca feitas com sobras de tecidos e peças com defeito
Não há melhor prova disso do que a parceria do Re-Roupa com a FARM, ou da marca jovem da Renner, a YouCom, com marcas de upcycling para repensar os jeans parados da marca. A própria Agustina tem um projeto de capacitação em Florianópolis com grupos de costureiras e artesãs que trabalham com peças do processo de logística reversa das lojas Renner. O número de marcas com a motivação do reaproveitamento só aumenta e extrapola o segmento das roupas: sapatos, acessórios e joias entraram no jogo. Na nossa galeria, uma seleção das marcas brasileiras para conhecer – e se inspirar – mais.
Confira uma seleção com 7 marcas brasileiras que engrossam o caldo da moda como ferramenta para repensar o descarte na nossa indústria, responsáveis por liderar um movimento pioneiro, navegando na nossa galeria.
Tem mais dicas de marcas, projetos e iniciativas legais para conhecer com essa pegada? Deixa nos comentários para que mais gente possa conhecer também.