Karl Lagerfeld era, sem dúvidas, uma mente inquieta e criativa, responsável por deixar sua marca e um legado nessa indústria. Porém, o designer, que faleceu ontem aos 85 anos em Paris, também era responsável por perpetuar comportamentos e práticas ultrapassados e inaceitáveis, com os quais tanto lutamos para nos livrar quando falamos de moda. Gordofobia, racismo, misoginia, islamofobia, uma capacidade estonteante de ignorar o problema dos transtornos alimentares – tão sérios – na moda e de transformar o feminismo em piada são apenas alguns deles.
É difícil esquecer também de quando o estilista chegou a comentar que as mulheres levando o movimento #MeToo para moda deveriam se tornar freiras se não quisessem ter suas calças arrancadas à força; e de quando ele achou uma boa ideia forrar uma passarela com pêlos de animais mutilados para os modelos pisarem em cima numa época onde cada vez mais marcas estão abolindo o uso de pêlos; ou de quando ele apoiou publicamente um homem acusado de estupro, enviando-lhe flores e dizendo que o problema são as mulheres e sua excitação com a política e com o poder.
Podemos sentir muito pela forma com a qual o estilista deixou a moda. Mas não deveríamos lamentar o espaço deixado por ele e a oportunidade que temos de preenche-lo com alguém realmente capaz de articular a moda para os novos tempos.
Como escreveu Lara Witt, “em vez de separar a arte do artista, acho que é hora de a moda chegar a um acordo com os comentários repulsivos de Lagerfeld – a primeira coisa a fazer seria admitir que eles existem e que os comentários continuam a ser prejudiciais e que as crenças do designer só afirmaram os sentimentos e ideologias de milhões que odeiam pessoas cujos corpos estão fora da norma supremacista branca, misógina, capacitista”.
Dois pesos, duas medidas
Esse mar de lamentações que apagam a outra face de Lagerfeld me faz repetir algo que já falei antes por aqui. Para ser levada a sério, a moda precisa se levar a sério. Na época, o questionamento era sobre como os jornais e as publicações de moda estavam tratando a volta do John Galliano para a moda como uma simples questão de estilo, esquecendo dos seus comentários anti-semitas em um bar francês – a gota d’água que o lançou pra fora da indústria e o fez ser despedido do seu posto de diretor criativo da Dior.
Novamente, estamos reduzindo a figura de Karl e seu legado a uma questão de estilo, algo que não cabe e, sinceramente, nunca coube à moda. Se a moda reflete os tempos, ou imagina tempos por vir, o quão desesperados devemos ficar quando um de seus nomes mais importantes diz que “Coco Chanel não era uma feminista, ela nunca foi suficientemente feia para isso” ao mesmo tempo em que faz um desfile patético para surfar na onda do feminismo?
Honestly, shit talking Karl while the body is still warm is the most Karl thing you can do, you are honouring his legacy
— Anna Fitzpatrick (@bananafitz) 19 de fevereiro de 2019
Por que somos capazes de reclamar sobre a ausência de modelos negras e diversidade no time da Vogue Brasil, celebrando a expurgação de Donata Meirelles da revista pós festa racista, mas esquecemos que durante os anos de reinado de Karl, a Chanel acumulou cifras milionárias defendendo uma visão eurocentrada de beleza? Também não devemos esquecer que grande parte da sua criatividade estava ancorada em apropriações culturais como no caso do boomerang de dois mil dólares e em vestidos que transformavam as crenças muçulmanas em simples adereços estéticos.
Sou eu ou parece que os homens dessa indústria sempre conseguem passar ilesos de seus comportamentos repulsivos graças a uma genialiadade criativa tão facilmente concedida a eles enquanto não conseguimos ter a mesma condescendência com as mulheres?
É hora de descansar em paz
É bom lembrar que, igualmente, o legado de Coco Chanel não reside apenas em sua criatividade. Mais de uma vez, descobertas históricas ligaram a estilista ao nazismo alemão. O que mostra, na verdade, que nunca houve uma grande ruptura entre a Chanel de Coco e a de Karl. Por trás de mentes criativas que fizeram história há uma pilha de controversas que a moda pode – e deve – muito bem passar a viver sem. Talvez agora, se realmente formos capazes de reconhecer e falar sobre os fantasmas do passado e do presente, conseguiremos deixa-los descansar em paz e abriremos caminho para novas mentes aptas a pensarem novos mundos e novas modas.