Esses personagens tão característicos representam pessoas reais ou são exageros necessários do mundo do entretenimento? Já que a moda vive de imagem, o quanto pessoas reais dessa indústria se baseiam em personagens para construir a própria expressão pessoal? Dez anos depois – uma década, um período que marca uma transição de gerações – o quanto evoluiu o modelo mental que temos a respeito do profissional de moda? A construção desse imaginário beneficia ou prejudica o mercado nos dias de hoje, uma vez que estamos em tempo de repensar a moda, mas temos uma grande dificuldade em transcender os sistemas e modelos predominantes?
Questionar o modelo mental responsável por retratar o status quo de representações da moda se faz necessário, senão urgente, nesse momento de questionamento sobre a indústria da moda como um todo. É tempo de refletir não só sobre quem fez minhas roupas ou a transparência das cadeias produtivas, mas também alçar vôos no subsconciente coletivo e imagético da moda, inquerindo as imagens que consumimos e assumimos como verdadeiras.
As Múltiplas Imagens da Moda
Enquanto o ser humano consome produtos, o cérebro consome imagens (Antonio Damásio). O audiovisual é comunicação direta e sem filtro para uma mente sedenta em montar quebra cabeças imagéticos. O cinema, a televisão e hoje as multitelas, que veiculam vídeos e fotos de todos os tempos e temas, dialogam diretamente com o que muitos chamam de alma ou essência humana. Nesse contexto de comunicação eficaz e excessiva pode-se dizer que os conteúdos audiovisuais têm parte significativa na formação do ser humano como ser social e é capaz de construir personas ou esteriótipos que serão assimilados e até confundidos com pessoas reais. O que é de verdade nesse contexto?
Entramos em uma era onde o consumismo é pauta e foco de manifestações diversas. A moda como grande articuladora de consumo enfrenta essa crise de identidade e propósito (André Carvalhal) enquanto confecções buscam um novo sentido de ser e um jeito possível de fabricar produtos. O mal estar causado pelo excesso de consumo nas últimas décadas desencadeou uma enxurrada de estudos, questionamentos e discursos em prol da sustentabilidade do planeta e do sentimento humano.
Humanização, sustentabilidade, compartilhamento, colaboração, economia e comunicação afetiva, empatia, coletivo e propósito são as palavras mais usadas nesses discursos. Mas, sem julgamentos, precisamos complementar essa manifestação contemporânea com um olhar para os processos neurobiológicos na formação de imagens que determinam comportamentos.
A indústria da moda tem parte fundamental na economia brasileira e mundial (Abit) e é comum reconhecer a moda em desfiles e editoriais de revistas, assim como é comum esquecermos que tênis e outros calçados, bolsas de diferentes matérias-primas, óculos, fivelas e outros artigos de fundição, unidos com a indústria da beleza (cosméticos e cirurgia plástica), é que formam a INDÚSTRIA DA MODA. Sem mencionar alguns elos importantíssimos da cadeia como as empresas de beneficiamento têxtil e de corantes, que se distanciam muito dos holofotes do glamour e que são parte fundamentais do atual sistema da moda (Roland Barthes). A moda não é feita apenas de roupas, mas de um conjunto de elementos que constituem uma imagem: formas, cores, padronagens, texturas, aromas, materiais, sons, pessoas e uma história. Isso tudo é moda como conceito.
É esse espetáculo não anunciado que chamamos de moda e os elementos são criteriosamente orquestrados e ensaiados; de fútil e inocente não há nada. O que se apresenta sob os holofotes nas passarelas e telas é resultado de produções minuciosa e intencionalmente trabalhadas. Stylists, produtores e profissionais da moda em diferentes atuações de mercado constroem imagens, direta ou indiretamente. Um evento transmite uma atmosfera, uma vitrine retrata uma mensagem, uma música, um vídeo clip, um figurino, um look – tudo transmite conceitos rapidamente registrados, de forma consciente ou inconscientemente, a quem tem qualquer tipo de contato com essas imagens.
Desde crianças recebemos um sem número de informações em forma de imagens que contribuem para formação de nosso repertório cognitivo e ao longo da vida formamos crenças e valores com base em vivências: o que nossos pais dizem, o que vemos eles fazendo, o que vemos e ouvimos na escola e o que vemos e ouvimos no mundo. O audiovisual faz parte dessas fontes e como fonte de imagem e som, age diretamente em nosso sistema cognitivo. Sem filtros. A imagem acessa nosso cérebro e faz conexões com o que já existe naquele arquivo, ou abre novas pastas criando novas conexões.
Nosso cérebro é uma máquina em busca de padrões, até onde não existem (Daniel Kanehman). Buscamos padrões para garantir nossa zona de conforto e isso significa gastar menos energia, assim como significa sobrevivência em um sentido instintivo e animal. O que nos diferencia dos outros animais é a capacidade ao pensamento complexo, ou seja, podemos transcender nosso próprio instinto e criar novos rumos. Porém, pré-conceitos imagéticos podem nos impedir de trilhar verdadeiramente novos caminhos.
Moda sustentável, marcas com propósito, o futuro da moda e diversidade são temas em voga na sociedade contemporânea e prioridades de pautas no mundo da moda, mas continuamos repetindo modelos mentais incapazes de mudar, verdadeiramente, o rumo das coisas.
A moda como conceito superficial sempre foi saber dos iniciados, talento dos escolhidos e quase um poder restrito ao Olimpo Fashion. Já a moda como ofício e trabalho é pauta para dedos apontados ao trabalho escravo, exclusão, imagens irreais que iludem e causam doenças, indústria poluente e exploradora dos nossos recursos naturais. No meio desse paradoxo está a vida vida real. Nem deuses do Olimpo nem inimigos da mãe natureza. A moda somos nós, seres humanos em busca de formas de expressão pessoal e coletiva, consciente ou inconscientemente. Dois séculos de construção de imagem e de formação desse pré-conceito imagético nos levaram a um determinado entendimento sobre o que é moda e como temos que SER para fazer parte dela.
De Miranda Pristley à Sophia Amoruso: Novas Representações, Velhos Conceitos
Uma década depois da validação dessas imagens por meio do filme “O Diabo Veste Prada”, o Netflix – plataforma contemporânea de disseminação de conceitos imagéticos muito eficiente entre as gerações Y e X – trouxe, em forma de série baseda no livro original, a história de Sophia Amoruso, ou a Girlboss, responsável por criar a Nasty Gal, e-commerce de moda americano que começou como um brechó online e se tornou um negócio milionário. Sophia ganhou vida na pele da atriz Britt Robertson como uma versão contemporânea de Miranda Priestly. No lugar da revista temos um ecommerce, no lugar de uma alta executiva temos a empreendedora, e no lugar das grandes marcas de luxo temos os achados vintage. As representações mudaram, o conceito permanece.
Não é minha intenção trazer respostas, mas levantar alguns questionamentos acerca do quanto estamos transcendendo os modelos tradicionais e o quanto estamos apenas colocando em novas embalagens o mesmo conteúdo. Moda sustentável, marcas com propósito, o futuro da moda e diversidade são temas em voga na sociedade contemporânea e prioridades de pautas no mundo da moda, mas continuamos repetindo modelos mentais incapazes de mudar, verdadeiramente, o rumo das coisas.
Continuamos fazendo coleções, campanhas, fotografando modelos (o próprio nome da profissão propõe um padrão, seja plus size, elder, fashion, comercial, são pessoas que cumprem critérios de imagens rotuladas), colocando mercadorias em promoção, fazendo ações colaborativas em datas “especiais”, reproduzindo o modelo de desfiles e semanas de moda, etc, etc. Colocado como entendido as necessidades comerciais de qualquer marca, iniciativa ou projeto, e o fato do nosso cérebro trabalhar com as referências que ele já possui, a questão é que se estamos mesmo entrando em uma nova era, é necessário um novo jeito de pensar e fazer.
É o pensar que faz o ser humano (Antonio Damásio) e tudo aquilo que criamos como expressões. Já as formas com que apresentamos isso ao mundo são resultados de como fazemos conexões neurais. É nosso cérebro materializando nossa essência e nosso próprio SER. Então o que acredito e proponho aqui é uma transformação no pensar que se realize no fazer. É um convite para expandir a mente além do que já foi dado, além do que é conhecido, seguro e confortável, fora das passarelas.
Possivelmente suas formas não lhe parecem nem um pouco confortáveis, mas se exigirmos um pouco mais do nosso cérebro, perceberemos que podemos mais. Podemos elevar o nível da discussão da moda para as imagens que formaram nossas crenças e valores e que moldam o mundo como conhecemos hoje. Imagens que adoeceram muitas jovens, física e emocionalmente. Imagens que criaram ambientes hostis, segregadores e simplesmente cruéis. Ao desconstruir todas elas encontraremos pessoas com suas histórias, que vestiram uma máscara para sobreviver. Não à toa, o óculos escuro faz tanto sucesso no nosso meio.
A moda tem muitos temas urgentes e não sei se vamos dar conta de todos eles na próxima década. O que podemos dar conta é de colocar em pauta a reflexão e provocação. E a cada ação, questionar e se forçar a fazer novas conexões e experimentar outras formas de fazer. Colocar um fim no absolutismo e nas certezas que nada mais são do que uma história que nos contaram muito bem e assumimos como nossa. Toda história tem várias versões e nós podemos criar a nossa própria. Eu acredito que a nova era da moda é feita da expansão do pensamento e da realização consciente da expressão humana.
Esse é parte de uma série de textos que convidam as leitores e leitores a entenderem e repensarem os pré-conceitos estéticos e imagéticos da moda. O primeiro texto, Para Mudar a Moda, Precisamos Transcender o Sistema Predominante, falou sobre a necessidade de questionar o modelo mental responsável por retratar o status quo de representações da moda. Veja mais textos da série clicando aqui.