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Para Uma Moda Sustentável é Preciso Reconhecer Que Consumidores Não Controlam o Mercado

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  • Marina Colerato
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Repensar a “fábula do consumidor rei” é necessário se quisermos realmente criar uma moda mais sustentável.

Se você já esteve em algum evento de moda com painéis e palestras sobre sustentabilidade, eu posso apostar que você não saiu de lá sem ouvir sobre como tudo seria diferente, e a indústria da moda seria muito mais ética e justa, se ao menos os consumidores fossem conscientes e comprassem melhor. Esse pensamento nos informa que o mercado opera única e exclusivamente sob demanda: as pessoas pedem, as marcas entegram.

Infelizmente (ou felizmente?), essa informação não está totalmente correta e é tempo de desafiarmos o pensamento comum – e extremamente confortável para quem está dando as cartas do jogo – se nós quisermos ver mudanças realmente significativas na moda. Eu não quero ser pessimista, mas as previsões para o futuro não são nada favoráveis e mostram que nosso tempo para agir contra e pelo menos mitigar os efeitos da devastação ambiental está cada vez mais curto.

Esse discurso, que nós chamaremos aqui de “fábulula do consumidor rei”, é frequentemente repetido por diversos atores e atrizes do setor e não surpreendentemente está na ponta da língua de todas as pessoas trabalhando na indústria que tive oportunidade de encontrar e conversar com. Nessa fábula, a história é mais ou menos assim: se os consumidores se preocupassem mais, as empresas já estariam fazendo as coisas direito. O que falta não é ética e moral por parte das empresas – nem ações por parte do governo para incentivar a sustentabilidade, muito menos educação para responsabilidade social e organização por parte da sociedade civil pra pressionar por melhores legislações e incentivar a pauta da sustentabilidade no debate público. Tudo se resume ao interesse e disposição do consumidor em pagar mais por produtos mais éticos e sustentáveis.

Uma pausa para olhar além da moda

Quando as empresas de refrigerante notaram não haver futuro próspero apenas na venda de uma bebida de baixo teor nutricional e prejudicial à saúde das pessoas, elas precisaram diversificar seu portfólio de produtos para garantir suas finanças e encontraram na água engarrafada um mercado extremamente promissor. Uma campanha de marketing de 5 milhões de dólares da Perrier nos Estados Unidos ajudou, e muito, a criar o desejo e a diferenciação em torno da água de garrafa.

Ao olharmos para história, o que descobrimos é que o sucesso da água engarrafa está pouco baseado em demanda de público, e totalmente firmando em branding e no mark up mais lucrativo do planeta.  Nos convencer da superioridade da água engarrafada, privatizar um bem humano comum e nos vender de volta em uma embalagem que nem as próprias empresas de bebidas não-alcóolicas dão conta de reciclar, tudo isso com consentimento, quando não incentivos, dos governos, é parte de uma estratégia, não de uma demanda. Não à toa, a água engarrafada se tornou o mercado de bebidas de mais rápido crescimento no mundo.

Água engarrafa foi divulgada como “a cura da natureza” // Reprodução

Agora, quando ouvimos sobre a poluição dos oceanos causada por garrafas plásticas, o que o ambientalismo mainstream gosta de dizer é que a obrigação de consertar esse problema é nossa, minha e sua. Não das empresas e do poder público que nos meteram nessa enrrascada (sem nem se dar ao trabalho de implementar uma logística reversa decente com políticas públicas para reciclagem). Enquanto a responsabilidade de lidar com as bilhões de garrafas plásticas descartadas diariamente é jogada nas costas  das pessoas que menos têm poder financeiro para lidar com o problema, empresas continuam faturando milhões e mantendo metas baixíssimas de reciclagem. Além de ser absurdo, esse discurso desequilibra o peso das responsabilidades e ignora que quem mais contribui para e lucra com a poluição por plástico é quem deve ser responsável por ela.

De volta pra moda

Na moda, eu nunca imaginei poder pagar R$ 10 numa camiseta numa loja de shopping estilo Forever 21 antes de ver uma à venda, você imaginou? É difícil demandar algo o qual somos incapazes de imaginar ser possível existir. É por isso que a junção de governos mais indústria para exploração da mão de obra em países considerados subdesenvolvidos sob a defesa do desenvolvimento econômico e da “democratização do consumo” tem um papel fundamental no surgimento e manutenção da indústria da moda como a conhecemos hoje. Nessa equação, nós não podemos deixar de destacar as cifras bilionárias da publicidade e do marketing. Quanto mais as pessoas são expostas à propaganda, mais elas consomem. Naomi Klein não escreveu 400 páginas sobre a influência de corporações, governos e indústria da propaganda no mundo em “Sem Logo: A Tirania das Marcas Em um Planeta Vendido” para nós simplesmente ignorarmos essas informações.

Em uma sociedade na qual educamos nossas crianças para ter bons empregos para comprar boas coisas, estamos sendo simplistas demais – e extremamente generosos com os players ausentes nesse discurso – ao dizer que as mudanças dependem do consumidor. Dizer que consumidores controlam o mercado é substimar quão profundo e enraigado o consumo está na nossa cultura e nos nossos hábitos. Em um texto recente, Ali El Idrissi, fundador e CEO da UpChoose, cuja missão é ativar o papel do consumidor na transição para um futuro sustentável, lembra:

“O surgimento do consumismo começou no início do século 20, em um contexto particular. A energia dos combustíveis fósseis tornou-se abundante e barata. O modelo de produção de linha de montagem, adotado pela primeira vez na indústria automotiva, começou a se espalhar. A produção e o uso de produtos petroquímicos, por sua vez, expandiram-se. Combinados, esses desenvolvimentos resultaram em um aumento maciço na capacidade de fabricação. Isso levou a um problema de superprodução com muitos produtos para poucos compradores. As empresas precisavam de um mercado maior de consumidores. Publicidade e crédito foram desenvolvidos como ferramentas muito eficazes para criar novos consumidores”.

“A publicidade nos leva a perseguir carros e roupas, trabalhar em empregos que odiamos para que possamos comprar porcarias que não precisamos” // Giphy

As pessoas por trás das marcas que estão nos vendendo roupas deveriam ser mais honestas com seus posicionamentos, enquanto nós, por outro lado, mais cautelosos em endossá-los.  Se não tivemos poder para demandar produtos de moda por R$ 10 nem água engarrafada em cada esquina do ocidente por R$ 2, e mesmo assim essas duas coisas aconteceram e estão aí gerando contas recheadas para os acionistas, por que agora empresas e seus representantes defendem a necessidade da “demanda do consumidor” por uma produção ética e limpa para mudar a forma como elas produzem as coisas? Empresas não respondem passivamente às demandas de mercado. Elas também ajudam a criar demandas de mercado.

Além disso, se a mudança de comportamento de quem produz moda hoje só dependende da consciência do cliente e de sua disponibilidade em pagar por sustentabilidade, está na mão das empresas fazer esse papel educativo e transformar sustentabilidade em algo atraente, assim como fizeram para nos levar para o caminho oposto. Seria bastante audacioso ver marcas educando seus consumidores sobre o impacto negativo do consumismo e sobre a necessidade da sociedade ocidental comprar menos em suas campanhas de marketing, porém desacelar não parece estar nos planos. Pelo contrário e com raras exceções, todas as estratégicas de marketing permanecem calibradas para nos fazer comprar mais.

Camisetas a R$ 10 nem sempre existiram, práticas duvidosas sim

O argumento que relaciona preço à coeficiente de sustentabilidade também é cheio de falhas. Marcas de luxo, com cadeias produtivas opacas e pouco envolvimento com a pauta da sustentabilidade, são a prova de que preço e sustentabilidade não estão diretamente conectados. Sim, peças muito baratas não existem sem um custo humano e ambiental negativos, mas peças caras não são sinônimos incontestáveis de boas práticas.

Também é preciso olhar uma pouco para trás e lembrar que antes de termos acesso a roupas muito baratas, a produção de moda a nível nacional e global já tinha práticas bastante duvidosas, que persistiram durante anos e persistem até hoje, como o despejo de água contaminada de químicos da lavanderia industrial em rios e nascentes sem tratamento, trabalho doméstico e em condições precárias e assim por diante. Fast fashion e roupas baratas agravaram a situação ao acelar o processo de produção, compra e descarte, mas a exploração do meio ambiente existe há décadas e nem sempre esteve relacionado ao preço final do produto.

Também é desonesto transferir a responsabilidade dizendo que os consumidores não se importam com nada, apenas com preço. Isso não é verdade. Ninguém quer comprar produtos responsáveis por devastação, poluição e sofrimento. Muitas pessoas nem imaginam que isso possa acontecer, não fazem as conexões e, quando sabem, têm enorme dificuldade em se ver fora desse sistema. Pela lente da psicologia, Mark Summer nos lembra ainda que quanto mais informações sobre essas questões as pessoas têm, mais elas se afastam de escolhas éticas devido à própria complexidade dessas questões. As informações conflitantes de grupos e ONGs fazem com que as pessoas não saibam em quem confiar ou o que escolher.

Todos somos responsáveis. Mas não igualmente responsáveis

É claro que se a moda está prosperando da maneira como está é porque a demanda existe, mas ao invés de demandar  uma mudança de comportamento de um lado, enquanto a indústria e governo seguem no jogo fazendo business as usual, devemos entender o porquê consumimos da maneira como consumimos e porquê as coisas são feitas da maneira como são feitas. Parece simples, mas é uma mudança radical na abordagem do tema.

Pensar duas vezes sobre a “fábula do consumidor rei” não é sobre isentar responsabilidades ou sugerir passividade. Enquanto pessoas temos responsabilidade com o outro e a responsabilidade com o outro deveria incluir os Outros também (meio ambiente e seres vivos não-humanos) – essa responsabilidade passa, sem sombra de dúvidas, pelo consumo. Quando compramos algo, e na sociedade na qual estamos inseridos isso acontece o tempo todo, estamos endossando práticas e empresas que na realidade pouco sabemos sobre.

Não podemos perder de vista que em cadeias de fornecimento globais, eu posso conhecer quem fez minhas roupas, mas provavelmente eu não sei nem onde nem como o tecido daquela roupa foi feito. Eu posso saber sobre a procedência do tecido, mas posso não saber nada sobre a produção daquela peça. Eu posso saber sobre o discurso de uma marca e as matérias-primas que ela usa, mas não saberei sobre o relaciomamento dela com todos seus stakeholders. Se saber tudo é difícil para as empresas, é praticamente impossível para quem está na ponta final dessa cadeia.

Por isso, a consciência de alguns, pautada em informações dissonantes e discursos difíceis de comprovar, nunca será suficiente para promover mudanças em grande escala. O consumo consciente não basta e a fábula do consumidor rei é exatamente isso, uma fábula. Demandar mais ética e transparência de todas as empresas, reconhecer boas práticas por meio de incentivos e uma legislação eficaz que apoie quem está fazendo diferente, além de demandar que sustentabilidade entre no debate público com mais força são saídas coletivas para um problema igualmente coletivo, que afasta imperativos morais individuais e compartilha o peso das responsabilidades.

Ao invés de jogar a responsabilidade nas costas dos consumidores, as empresas precisam assumir sua parte e pensar além de um sistema econômico pautado em consumo, moldado por questões econômicas e de classe que permeiam a sociedade de maneira consciente ou subjetiva. Novos modelos de negócio, alternativas ao padrão indústrial de lucro aliado ao volume, design eficiente, disruptivo e capaz de monetizar as externalidades negativas para reduzí-las, além de pensar nas pessoas enquanto pessoas são algumas das alternativas ao que está posto enquanto forma de gerar valor para a sociedade.

Uma abordagem alternativa e radical pode ser reconhecer que os humanos sempre usaram moda para satisfazer desejos emocionais e egoístas. Portanto, o desafio deve ser transferido da tentativa de controlar esses comportamentos primitivos e irracionais para encontrar uma abordagem sistêmica e ética para abraçá-los.

É mais fácil falar do que fazer e é importante ressaltar que não há um único responsável, nem um grande vilão. Acordos comerciais, corporações preocupadas em entregar lucros cada vez maiores, petróleo barato, crédito em abundância, psicologia humana e o entendimento de que inclusão social acontece pelo consumo formam um emaranhado complicado e insustentável. Mas quando insistimos em olhar para o consumo individual e colocá-lo como o principal problema dessa história, sem pautar quem está efetivamente lucrando com ele, nós esquecemos que as responsabilidades por estarmos onde estamos não devem ser distribuídas de forma igual para todos porque os lucros que nos trouxeram até aqui não foram. Enquanto indústria da moda e enquanto sociedade, está na hora de reconhecermos essa verdade e jogarmos limpo para evoluir como desejamos quando o assunto é sustentabilidade.

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