Na moda, é indiscutível como as marcas, designers, agências de publicidade, de modelos e mídias não enxergam essas pessoas como público alvo. Basta perceber a completa ausência de peças com modelagens pensadas para uma maior diversidade de corpos, a falta de lojas adaptadas, de etiquetas em braile e de modelos com algum tipo de deficiência em campanhas e desfiles de moda.
Daniela Auler, idealizadora e coordenadora do Projeto Moda Inclusiva da Secretaria da Pessoa com Deficiência, criado em 2008, levanta essa pauta e busca atrair a atenção da indústria da moda, principalmente de estilistas e designers, para esse nicho de mercado até então completamente esquecido. Referência mundial, a iniciativa segue o conceito de design universal, ou seja, atingir o maior número de usuários possível para o produto. “Temos dois focos principais. O primeiro é levar para a sociedade […] as questões e o universo das pessoas com deficiência sensibilizando sobre a importância dos aspectos do autocuidado e autoestima, influenciando novas tendências para o mercado”, explica a idealizadora. “O segundo é chamar a atenção de todos os setores da sociedade para novas oportunidades de negócios”.
O Concurso de Moda Inclusiva é um dos meios de atuação do projeto e propõe um novo entendimento sobre moda, corpos e inclusão. Há três anos, vieram os cursos de moda inclusiva, que se mostraram necessários depois de Daniela perceber a quantidade de trabalhos recebidos nos concursos com conceitos não funcionais para as pessoas com deficiência. A falta de material acadêmico, debates na mídia e discussões em universidades sobre o tema é uma das principais razões para a importância da disseminação destes conhecimentos.
Extrapolando as fronteiras, o Projeto Moda Inclusiva já fez parcerias especiais em universidades estrangeiras, em forma de concurso, palestras e desfiles, inspirando não só a criação de mais material sobre o assunto, mas também incentivando outros países a atrelar a usabilidade da roupa para pessoas com deficiência ao design, criando peças com personalidade. “As peças que são fáceis de vestir não são bonitas, ficam com aquela cara de hospital. Eu ouço muita reclamação relacionadas ao estilo e design das peças”, conta Daniela, o que torna a missão do projeto ainda maior: democratizar a moda com todo seu significado.
Backstage do Desfile de Moda Inclusiva, um desdobramento do concurso // Foto: Midori de Lucca
A jornalista Heloisa Rocha, criadora do Moda em Rodas, que nasceu com osteogênese imperfeita, aponta exatamente essa dificuldade. Os sapatos que encontra em seu tamanho são sapatos de crianças, não condizentes com seu estilo e idade então ela tem que fazer sob medida. “[O sapato] não é barato, é um produto totalmente artesanal, mas eu dependo dele”, comenta. Outra dificuldade para Heloísa são lingeries e biquínis. “O tamanho de cima é diferente do de baixo e eu fico numa busca constante de achar uma loja que produza tanto lingerie quanto roupa de praia”, explica.
Daniela explica que as dificuldades do cadeirante, por exemplo, começam antes mesmo de provar as roupas. Ir até a loja já é um desafio, com calçadas irregulares, poucos transportes e ambientes acessíveis. Muitas vezes o atendimento nas lojas mostra total despreparo. É por isso que o Projeto Moda Inclusiva conta também com curso de varejo, para preparar vendedores e lojistas para as demandas das pessoas com deficiência. Heloisa comenta também sobre espaço pouco pensado para esse público, com degraus na entrada da loja ou provadores pequenos que não cabem a cadeira de roda.
Incomodada com esse padrão excludente, a publicitária Ana Clara Schneider criou a Sondery, consultoria para acessibilidade e inclusão em situação de consumo, principalmente na mídia. Ana Clara conta que estava cansada de como a acessibilidade é pobremente tratada no meio publicitário. “Normalmente, dentro de uma agência de publicidade, tudo é prioridade menos a acessibilidade. O roteiro está pronto, vídeo gravado e editado, a campanha pronta, só ai pensam nisso. A acessibilidade é tratada como a cereja do bolo quando, na verdade, já é a farinha”, conta ela. Outro problema em colocar os recursos de acessibilidade como “retoque final” é o custo extra, não previsto no orçamento. É aí, então, que essa inclusão é cortada logo no início.
A acessibilidade, porém, não traz vantagens apenas para as pessoas com deficiência. Daniela usa de exemplo a calçada adaptada, um recurso pensando para pessoas com deficiência, mas responsável por facilitar o dia a dia de todo mundo, desde pessoas com carrinhos de bebê e bicicletas até crianças com mochila de rodinhas. Ou a tecnologia de QR Code, que substitui as etiquetas em braile, ao mesmo tempo que é possível colocar informações pertinentes como quem fez suas roupas, se esse produto tem algum tipo de certificação, mostrar que não é fruto de trabalho análogo à escravidão. Para ela, esse entendimento é imprescindível na hora de pensar moda inclusiva.
O futuro é mais promissor.
Ao longo de nove anos, Daniela viu as evoluções de modelagem e tecnologia aperfeiçoando a confecção das peças, por isso todo ano uma cartilha é feita para mostrar os participantes do concurso e seus produtos. O ganhador de 2016 foi Eduardo Inacio Alves, com por sua jaqueta com ilhós para acomodar fone de ouvido e painéis solares para recarregar aparelhos portáteis, sendo útil não só para o cadeirante que tem dificuldade em alcançar tomadas próximas ao chão, mas também à pessoa sem deficiência, para quando necessitar recarregar o celular fora de casa. É o design universal em prática.
A jaqueta conta com zíper, argola nas laterais e abertura nas costas. Todas as peças tem leitor QR Code com áudio descrição das funcionalidades e etiqueta em braille // Divulgação
Otimista com o momento de aceitação, amor próprio e novos experimentos pelos quais a sociedade brasileira tem passado, Daniela acredita que a moda inclusiva pode deslanchar junto com as discussões sobre moda sem gênero, plus size, feminismo. “É um movimento que está acontecendo e as pessoas querem respirar coisas novas. As pessoas vêm (para o curso) para isso, pra aprender uma coisa diferente. Eu acho que, hoje, a moda inclusiva está vindo desse movimento, de toda democratização da moda, esse regaste. Eu acredito que a moda nada mais é do que um reflexo do que a sociedade está passando”, explica.
Heloisa pode viver um passo deste florecer recentemente, quando participou de uma sessão de fotos para a marca Livanz, desenvolvida como projeto de conclusão de curso de Design de Moda por Denise Gonçalves de Sousa. Com uma coleção de 13 peças, a designer alia praticidade da moda inclusiva com peças criativas, coloridas e inspiradas no irmão cadeirante com qual conviveu durante 17 anos e presenciou a dificuldade dos pais para vesti-lo.
Heloisa participou da sessão de fotos utilizando peças nas quais ela tem mais dificuldade em encontrar para si: vestido e macacão. Foto: Paula Lira
Ana Clara, que aposta muito na mudança de mindset da publicidade e na valorização do público com deficiência como consumidores em potencial, acredita que uma opção para a venda de peças acessíveis em grandes magazines seja o serviço pós-venda. “Quando você compra vestido de festa, você tem que fazer ajustes, barra. Então, porque não prever um serviço de pós-venda com adaptações?”, sugere.
Para Heloisa, está na hora de designers e estilistas “saírem da caixinha”. Ao abrir espaço para as pessoas com deficiência, eles passam a atender um público enorme e pronto para consumir. Derrubando paradigmas, Daniela afirma que, quando tenta resgatar a essência e projetar novas luzes sobre as pessoas com deficiência, enaltecendo seus talentos, ela acaba resgatando algo mais profundo. “É o resgate do Brasil, da mulher, do brasileiro. É um resgate do que somos. Quem falou que é certo a gente ser assim, que é errado ser assado?”, conclui.