“Ecofeminismo: Mulheres e Natureza” é um série de matérias que busca discutir a importância da conexão das mulheres com os seres não-humanos e o meio-ambiente. A série tem como objetivo abordar as questões éticas e morais, além das questões culturais, sociais e econômicas relacionadas ao feminismo, veganismo e ecologia.
Você pode ouvir essa pauta no player abaixo. Todos os textos da série Ecofeminismo: Mulheres e Natureza estão disponíveis para audição no Spotify, iTunes, Google Podcast ou no seu player preferido.
O ato de se alimentar pode, para muitas pessoas, parecer uma simples escolha, baseada em preferências pessoais. Entretanto, esse ato envolve questões éticas e políticas, de modo que a alimentação não é neutra, mas sensível também às questões de gênero. A partir do momento no qual nossas escolhas alimentares afetam outras vidas, comer passa a ser um ato político e ético.
Assim, é preciso lembrar que o alimento que nos chega ao prato necessariamente passa pela sua produção. Contudo, ela é invisível para quem vive nos centros urbanos e mantem no imaginário galinhas e vacas felizes no pasto. Tirar da invisibilidade a exploração de humanos, animais e natureza é um primeiro passo em direção a uma sociedade justa.
Nas últimas décadas, a agricultura e a alimentação passaram por significativas transformações. A industrialização afetou diretamente os meios de produção e a própria indústria passou a dizer o que é bom ou não para as pessoas comerem, a partir dos seus interesses privados.1Em Neither Man nor Beast: Feminism and the Defense of Animals, Carol J. Adams denuncia a influência da indústria na construção da pirâmide alimentar nos Estados Unidos. A revolução verde, na década de 1970, é um marco nesse processo, que passou a usar a lógica bélica para a produção do que deveria nos manter vivos e saudáveis, em equilíbrio com o meio ambiente.
Hoje, as consequências dessa industrialização bélica são devastadoras: são 56 bilhões de animais mortos por ano para consumo humano, enquanto 795 milhões de pessoas ainda passam fome no mundo,2FAO. State of Food Insecurity in the World. 2015 embora já se saiba que o problema da fome não é decorrente da escassez de alimentos, mas de acesso ao alimento.3Leia mais em: http://justificando.cartacapital.com.br/2015/08/10/fome-de-que/ e http://justificando.cartacapital.com.br/2015/08/19/quantos-pratos-de-exploracao-voce-consome-por-dia/
Nosso cenário hoje é de exploração de animais para consumo humano, envenenamento dos alimentos por uso de pesticidas e agrotóxicos, alimentos altamente industrializados, doenças decorrentes da má alimentação, poluição do solo, da água e do ar, pessoas trabalhando em situação análoga à escravidão.
Em 2016, a Corte Interamericana de Direitos Humanos responsabilizou internacionalmente o Estado brasileiro por não ter prevenido a prática de trabalho escravo moderno e o tráfico de pessoas, no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Nas notícias que repercutiram nacionalmente, não raro líamos que os trabalhadores e as trabalhadoras da Brasil Verde tinham “vida de gado”. Era gado cuidando de gado.
Mas qual seria a relação disso tudo com o feminismo ecoanimalista? A partir do momento no qual percebemos as relações de poder na agricultura e, especialmente, que mais da metade dos alimentos no mundo são produzidos por mulheres, agricultura e alimentação tornam-se também questões feministas. Mas se essas relações de poder são exercidas também contra outras formas de vida que não humanas, ela é também uma questão ecoanimalista. Nesse caso, a expressão “vida de gado” não é inocente: pressupõe e reconhece que gado é explorado e que subjaz a mesma lógica da dominação e opressão sobre os que estão do lado de baixo do dualismo.
Subverter essa lógica é papel do veganismo. Assim, a dieta abolicionista vegana 4Expressão da filósofa Sônia T. Felipe é uma implicação prática da ética sensível ao cuidado. Dieta, aqui, tem o sentido grego: significa modo de viver. O feminismo ecoanimalista busca um modo de viver no qual não haja qualquer tipo de exploração humana e não humana, ou seja, que rompa com a lógica da dominação presente em todos os “ismos” – machismo, racismo, elitismo, especismo etc.
Abolir todas essas formas de dominação significa tirar do prato qualquer alimento que provenha de exploração humana ou não humana. No lugar deles, é preciso colocar no prato alimentos que sejam produzidos com respeito a todas as formas de vida. A agricultura orgânica e familiar entra em cena como protagonista nesse cenário.
O veganismo, portanto, é uma condição necessária para o feminismo ecoanimalista. Ao considerar que o vegetarianismo não é uma questão neutra em relação ao gênero, a escolha da dieta em uma cultura machista é uma forma de politizar a ética do cuidado e opor resistência à pressão dos padrões machistas.5CURTIN, Deane. Toward an Ecological Ethic of Care, p. 76 A produção de ovos e leite no sistema bélico significa dor e sofrimento para fêmeas escravizadas, ou seja, são a exploração das capacidades reprodutivas das galinhas e vacas.
Ironicamente, os direitos reprodutivos são justamente centrais na pauta feminista. Portanto, é preciso romper a barreira da espécie e abolir a produção da proteína feminizada dos ovos e do leite, que transforma animais em referentes ausentes, pela mesma lógica que transforma as mulheres em objeto, em um exemplo de como especismo e machismo andam de mãos dadas. Enquanto a dieta machista – marcada pela dominação – for mantida, não haverá libertação das mulheres.6FELIPE, Sônia T. A perspectiva ecoanimalista feminista antiespecista. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska. Estudos feministas e de gênero: articulações e perspectivas. Florianópolis: Mulheres, 2014, p. 52-73