Na verdade, consumir consciente é o mínimo que podemos fazer quando pertencemos à restrita classe consumidora global 1Segundo o relatório The State Of Consumption do World Watch Institute, um pouco mais de 1.7 bilhões de pessoas pertencem à chamada “classe consumidora” enquanto 2.8 bilhões de pessoas lutam para viver com menos de $2 dólares por mês e 1 bilhão de pessoas não tem acesso à água potável..
É (ou pelo menos deveria ser) um dever de cada um de nós pensar e ponderar nosso consumo, nos colocando como corresponsáveis dessa história porque, de fato, somos. Se pensarmos de maneira bastante simplista, o consumo por essa pequena parte da população mundial está causando impactos quase irreparáveis na Terra, então repensarmos ele é obviamente urgente.
Consumir consciente é o mínimo que podemos fazer quando pertencemos à restrita classe consumidora global
Entretanto, vivemos numa sociedade complexa e não podemos descolar o consumo – e os produtos – de toda a máquina social e econômica que opera a todo vapor e mantêm a roda girando. E é exatamente isso que estamos fazendo quando passamos todo nosso tempo tentando convencer pessoas de comprar menos, comprar melhor, decorar ingredientes dos rótulos e sempre optar por produtos “mais verdes” (se é que eles existem ou o quão verde é o produto verde?) – e não falamos das questões que impactam nessas tomadas de decisões e no modo de produção desses produtos, como cultura do consumo, sistema econômico, desigualdades, estruturas de poder, relações pessoais, organização política e assim por diante.
Dizer que consumo consciente não vai curar as mazelas da cultura do consumo e de um sistema econômico baseado em crescimento contínuo não é o mesmo que dizer que todos devemos comprar sem pensar ou desconsiderar totalmente o impacto das nossas escolhas de consumo. É apenas dizer que devemos ir além.
Comprar melhor e mudar o mundo
“Vote com a sua carteira” é de fato um discurso tentador para uma sociedade que deposita todas as fichas no dinheiro, porém ele acaba endossando as próprias estruturas sociais atuais de classe nas quais o dinheiro é soberano para conceder determinados poderes e privilégios. Inclusive o de mudar – ou não – o mundo. Afinal, como ressalta Tansy Hoskins, “você compra o que você pode comprar. Se você não pode comprar um par de calcinhas por 16 libras, então não importa se elas foram feitas à mão na Inglaterra; você terá que comprar 5 pares por 3 libras na Primark – e provavelmente se sentirá culpada e envergonhada por isso”.
Esse imperativo moral, bem lembrado também por Maya Singes, desequilibra o peso das responsabilidades: “somos implorados para comprar de forma responsável, mesmo que governos e corporações façam acordos geopolíticos com o objetivo de nos fazer comprar mais coisas”. Mesmo que as propagandas e ações dos próprios governos estejam focadas em nos fazer aceitar, a qualquer custo, o modelo econômico que só funciona pela expansão da oferta (e logo do consumo) de produtos.
Em seu texto, Wicker destaca uma fala de Halina Szejnwald Brown, professora de ciência e política ambiental na Clark University e autora do report Fostering and Communicating Sustainable Lifestyles: Principles and Emerging Practices para o Programa Ambiental das Nações Unidas, capaz de mensurar bem a complexidade do problema e como a questão do consumo está longe de ser apenas responsabilidade de quem consome: “Todos os sistemas, o mercado, as instituições, tudo está calibrado para maximizar o consumo. A indústria de marketing e publicidade inventa novas necessidades as quais nem sabíamos que tínhamos”.
Outro ponto de atenção no discurso “vote com a sua carteira” é apontado pela autora Kendra Pierre-Louis: “ao posicionar sustentabilidade ambiental como uma escolha de mercado, semelhante a escolher um leite batido ou não, nós rebaixamos a urgência da nossa atual situação ecológica”2Citação de Kendra Pierre-Louis no livro Greenwashed: Why We Can’t Buy Our Way To A Green Planet..
Dessa maneira, se é uma escolha que podemos ou não fazer, aparentemente sem consequências significativas tangíveis para o nosso dia a dia além do quanto vamos tirar da nossa conta bancária, há grandes chances de continuarmos dando pouco importância ao assunto.
Enxergar o consumo como única saída, porém, não é algo incomum para nossa sociedade. Como Stuart Ewen explicada detalhadamente em seu livro Captains Of Consciousness: Advertising and the Social Roots of Consume Culture, estamos há anos sendo moldados para resolver nossos problemas por meio do consumo e das escolhas individuais. Temos dificuldades imensas de nos organizarmos politicamente e estamos sendo preparados para desenvolver habilidades e funções únicas, o que vem minando nossa capacidade de pensar interseccionalmente e reforçando posicionamentos binários.
Esse é um dos motivos que nos leva a passar mais tempo falando de produtos e sobre quais produtos consumir do que tentando entender e buscar soluções mais pragmáticas para as questões socioeconômicas que impactam na saúde do planeta e na vida das pessoas. O outro motivo pode ser a nossa relutância em sair da zona de conforto somada a nossa sensação de impotência, o que nos leva a acreditar que “a corporação certa, o político certo, a filantropia certa, a tecnologia certa, o produto certo aparecerá e consertará tudo”. Nós só precisamos comprar o tal produto, apoiar a tal empresa e esperar todo o resto acontecer enquanto continuamos pensando e vivendo da mesma maneira.
Somos implorados para comprar de forma responsável, mesmo que governos e corporações façam acordos geopolíticos com o objetivo de nos fazer comprar mais coisas.
Indo além do consumo
Autora e um dos nomes mais fortes para uma moda mais justa e sustentável hoje, Lucy Siegles reconhece que alguns de nós comprando um pouco mais consciente não mudará muito, por isso ela começou a trabalhar com advogados para encontrar uma maneira legal de melhorar a vida dos trabalhadores nas fábricas de roupas. “Eu acho que nós precisamos de ações estratégicas sérias para conseguir resultados”, disse ela ao The Guardian.
Segundo o relatório Pulse Of The Fashion Industry, lançado mês passado pelo The Global Fashion Agenda e o Boston Consulting Group, enquanto as marcas e empresas acreditam que o consumidor é o principal responsável por mudar a indústria da moda, colocando claramente a responsabilidade nas costas de terceiros, elas admitem que legislação e regulamentação pública estão em primeiro lugar nos fatores responsáveis por influenciar a empresa a adotar uma agenda de práticas mais sustentáveis.
Isso mostra que, querendo ou não, nossas ações precisam ser também políticas. Somos afastados da política pela própria política e pelo entendimento da sociedade brasileira sobre política. Essa rejeição nos leva a ter atitudes desconexas como ser contra condições precárias de trabalho na moda, mas dar nosso voto a políticos conservadores, que ignoram a pauta e até mesmo colocam os avanços em risco. Se engajar com política não significa que devemos nos candidatar a cargos públicos, mas que precisamos entender melhor sobre ela, sobre como apoiar (ou fazer) trabalhos de advocacy e de outros atores que estão articulando soluções e políticas públicas.
Indo além, é necessário mudarmos a forma com a qual nos relacionamos com o mundo, com o trabalho, com a sociedade. Como primeiro passo é urgente entender que muito mais do que consumidores somos cidadãos, trabalhadores e pessoas. Em todas essas facetas temos capacidade para mudar as coisas. Esse é um passo essencial para nos libertarmos da mentalidade neoliberal – que transforma pessoas em máquinas de produção e consumo – e voltar a tratar e nos referir a pessoas como pessoas. E agir como pessoas.
A participação em um mercado industrial tornou-se uma expressão moderna da atividade política popular, mas foi uma atividade que manteve os barões industriais americanos como diretores sociais da nação, por participação de modo algum estava implícito controle ou determinação.
Concluindo
Em seu texto sobre Novas Economias, Camila Haddad lembra que é preciso enxergar o mundo com outras lentes e mudar a forma, indo além do conteúdo (ou, no nosso caso aqui, produto e produção): “Não basta trabalharmos com propósito ou sermos as pessoas que vão ofertar novos produtos e serviços, mais justos e sustentáveis. Nada disso basta se seguirmos interpretando o mundo pelos mesmos óculos. Para nos libertarmos de um modelo econômico que destrói a natureza e nos afasta de toda e qualquer conexão significativa, temos que nos libertar de suas premissas. A liberdade não reside na escolha de consumo (“o que consumir?”), nem de produção (“com o que trabalhar?”), mas na escolha de como fazê-los.”
Colaboração, liderança real, melhores legislações e uma sociedade capaz de entender a importância da ética nos negócios, que não coloque o ser humano acima do meio ambiente, desrespeitando seus limites, é essencial se quisermos mudanças significativas. Precisamos de sistemas que desencorajem o acúmulo, enxerguem a abundância e promovam a fluidez dos recursos. Mudanças que têm muito menos a ver com dinheiro e produtos, e muito mais com quebra de paradigmas sociais, econômicos e monetários.
Podemos ser consumidores conscientes, mas podemos também ser líderes para transformação, podemos entender a importância da política e incentivar quem está apoiando legislações que preservem o meio ambiente e favoreçam quem está protegendo os recursos naturais comuns. Não devemos deixar de colaborar com ONGs, empresas e movimentos que estão à frente de ações que visam melhor qualidade de vida das pessoas e a preservação da Terra. Devemos nos envolver com os problemas e soluções, não terceirizando responsabilidades ou assumindo que porque nós compramos (ou deixamos de comprar) isso ou aquilo, já estamos fazendo nossa parte.
Acima de tudo, precisamos entender outras formas de viver em sociedade e como podemos colaborar para a construção do mundo que queremos – para muito além do cartão de crédito.
Outras fontes não citadas que ajudaram na construção desse texto: “Muito Além da Economia Verde”, de Ricardo Abramovay; a conversa entre o economista internacional James Quilligan e Charles Eisenstein traduzida por Camila Haddad (no YouTube); e o texto de Tamsin Lejeune sobre maneiras de transformar a indústria da moda.