“Simplesmente não há maneira de criar e matar animais para o mercado de massa de uma forma humana”. Essa é uma das frases que resume mais uma investigação do PETA (People For The Ethical Treatment Of Animals), dessa vez envolvendo os produtores da chamada “lã sustentável”, que veio à tona na semana passada.
O vídeo, que mostra os abusos sofridos pelas ovelhas criadas para produção de lã, não só chocou o público em geral, e as marcas Patagonia e Stella McCartney, compradoras da lã das fazendas investigadas e conhecidas por sua preocupação ética e ambiental, como também expôs, mais uma vez, a fragilidade da produção de moda ética em escala global.
As filmagens ocorreram em fazendas ligadas ao projeto Ovis 21, sediado na Argentina, e até então respeitado por ter como objetivo principal a recuperação do ecossistema devastado de antigos pastos através da criação holística de mais de 1 milhão de ovelhas para produção de lã. Criar 1 milhão de ovelhas de forma holística parece um tanto quanto contraditório, mas, na teoria, não há como negar que todo o projeto soa atraente por prometer unir o bem estar humano, social e ambiental. Tão atraente que a Ovis 21 conta, inclusive, com o certificado de Empresa B1 A certificação internacional Sistema B atesta que a empresa laureada visa “lucro com benefícios socioambientais”. No Brasil, a Natura é uma das empresas certificadas pelo sistema.. Porém, quando as imagens chocantes foram divulgadas, a realidade se mostrou bem diferente da teoria.
A verdade é que a moda (e todas as indústrias) enfrenta um problema complexo em sua produção massiva e em escala. Isso porque, quando a marca opera com produção globalizada, que funciona através de uma cadeia de fornecedores totalmente fragmentada, por mais bem intencionadas que algumas delas realmente estejam, manter as auditorias frequentes para garantir que a empresa fornecedora está realmente cumprindo com o prometido e solucionar os problemas encontrados se torna uma missão difícil e onerosa, gerando brechas perigosas e quebra de protocolos.
Imagine que para fazer uma peça de roupa, sem contar a fase de produção da fibra, são necessários exatos 101 processos; no sistema global de produção é praticamente impossível rastrear todos eles. As grandes empresas globalizadas estão muito longe de serem capazes de garantir a ética e sustentabilidade em todos os processos que envolvem a produção de seus produtos.
A prova disso são, não só as filmagens do PETA nas fazendas de lã proclamadas sustentáveis, como também as investigações conduzidas pela própria Patagonia na sua rede de fornecedores de tecidos e outros materiais. Em 2011, quando a empresa resolveu checar algumas tecelagens ligadas à marca, a Patagonia encontrou uma série de problemas relacionados à mão de obra como exploração, trabalho forçado e tráfico humano em todas as 175 delas.
Tecelagens são como parentes de segundo grau das marcas, sendo os parentes de primeiro grau as confecções (corte e costura). O elo de primeiro grau é considerado praticamente o “chão de fábrica” e, mesmo que em outro continente, é muito mais fácil rastrear e solucionar problemas. No caso das fazendas argentinas Ovis 21, elas podem ser consideradas fornecedoras de terceiro grau (produtora da fibra).
Para essas grandes marcas, produzir localmente não é viável principalmente por questões de custo, mas também pela falta de mão de obra e fornecedores. Então, qual seriam as soluções?
Especialistas como Christine Barder, autora do livro “The Evolution of a Corporate Idealist: When Girl Meets Oil” (sem tradução para o português), apontam que uma das soluções mais eficazes para reverter esses quadros ligados à mão de obra e insustentabilidade em projetos ditos sustentáveis e éticos dentro dessa cadeia extensa e global seria as empresas trabalhando unidas e dividindo os custos. Mesmo empresas grandes representam apenas uma pequena porcentagem do total de empresas que se apoiam na produção global em países de terceiro mundo, o que significa que, apesar de todo o esforço e boa vontade, ações isoladas não conseguem gerar as mudanças em massa tão necessárias.
“Compreender as causas e trabalhar com outras empresas e especialistas é muito mais difícil do que andar por aí com uma prancheta preenchendo checklists. Mas é a única maneira que os gestores da cadeia de suprimentos podem, efetivamente, ajudar os trabalhadores que fazem o seu negócio possível”, diz Barder.
Além disso, as auditorias nas empresas deveriam ser apenas um dos processos para garantir as condições adequadas de operação – no quesito de bem estar animal, humano e no respeito ao meio ambiente – e não todos os passos. Injeção de capital, e disponibilidade de tempo para entender e solucionar os problemas nas empresas fornecedoras também já se mostrou um caminho efetivo seguido pela Apple.
Coenjaerts, diretora do Fair Labor Association, acredita também na necessidade de mais ação por parte dos governos. “o primeiro elo é basicamente um chão de fábrica, mas segundo, terceiro e quarto? Você tem pequenos locais de trabalho, trabalhadores em domicílio. Há uma necessidade de ação do governo”, diz ela.
Após suas investigações de 2011, a Patagonia afirmou que não deixará de comprar das 175 empresas fornecedoras onde foram encontrados os diversos problemas com relação à gestão de mão de obra, pois acredita ter uma responsabilidade com todas elas. Por isso, continuará na luta para viabilizar condições de trabalho satisfatórias em toda a sua cadeia de produção.
No caso dos abusos animais ocorridos nas fazendo Ovnis 21, tanto a Patagonia, quanto a Stella McCartney já afirmaram ter cortado seus acordos comerciais com a empresa. Enquanto a primeira declarou que vai tentar achar uma produção de lã realmente livre de crueldade e sustentável para suprir a demanda, pois, segundo a diretora da empresa, Rose Marcario, a marca “rejeita a ideia que é impossível produzir lã de maneira cruelty-free”, a Stella McCartney já está, há algum tempo, em busca de uma opção sintética satisfatória.
Não é difícil reconhecer, e apoiar, as tentativas e as ações que algumas empresas, como a própria Patagonia, têm feito para garantir produtos cada vez mais livres de crueldade (animal e humana) e eco-friendly, mas se as empresas globalizadas ainda não conseguem nem garantir o bem estar humano na sua cadeia de produção, afirmar que há a possibilidade de garantir bem estar animal nos seus fornecedores de terceiro grau me parece uma pretensão utópica.